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Representação: relação constitutiva

Num cenário onde a representação pode ser entendida como o desafio de expressar, politicamente:

“padrões de identidades sobrepostos, de forma que um grupo social não pode mais agir como se esgotasse os pertencimentos coletivos de seus integrantes.” (MIGUEL, 2010:16)

É necessário pensar em outras dimensões possíveis para abordar o problema da representação que não aquela baseada na valorização das experiências comuns de exclusão ou opressão de um determinado grupo, ou de uma essência fundamental desse grupo, ao menos não como o elemento fundamental da constituição das identidades. Pensar as identidades e perspectivas políticas como contingentes ao potencial tanto opressivo quanto criativo do campo político é necessário para se compreender de que forma as demandas dos diferentes grupos são validadas ou excluídas do discurso político legítimo.

Nesse sentido, tomar a representação política enquanto uma relação constitutiva de identidades e interesses, em sua função produtiva, surge como uma alternativa plausível frente ao problema da mobilização política dos grupos subalternizados. Pensar o problema a partir dessa perspectiva diferenciada permite responder à questão proposta acima problematizando, para além da formação da identidade ou da perspectiva do grupo, os efeitos que a decisão de levar demandas à esfera da competição política tem sobre sua definição. Ou seja, o papel da perspectiva (e de todos os elementos que ela abriga, como os interesses e as opiniões) mobilizada pelo representante no momento em que esse se apresenta como candidato ou candidata desse grupo específico enquanto elemento capaz de articular diferentes perspectivas, interesses e opiniões comuns a esses grupos: no caso específico da problemática desse trabalho, das mulheres. Essa proposta se apresenta enquanto possibilidade ao se considerar que a dimensão do reconhecimento (seja de identidade, perspectiva ou interesse) é essencial no que se refere à representação e a possibilidade de ingressar na luta pela redistribuição. O que é enfatizado como elemento comum de reconhecimento, nesse sentido, pode definir como um grupo pretende expor suas demandas e se

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posicionar nas disputas redistributivas, e, ao mesmo tempo, também definir a forma como esse grupo se organiza enquanto grupo politicamente subalternizado.

Claus Offe e Helmut Wiesenthal (1984), em sua discussão sobre a diferença na lógica de ação entre grupos capitalistas e a classe trabalhadora, afirmam a possibilidade da superação das individualidades que constituem os grupos com necessidades e interesses heterogêneos com base na definição de uma identidade coletiva. A importância na definição dessa identidade coletiva está, sobretudo, em seu potencial de se desvincular da lógica de ação das próprias relações de poder em que a dominação desses grupos está baseada, alterando os padrões de compreensão dos custos de ação nos termos das avaliações de necessidades do próprio grupo para além do indivíduo. Contudo, um dos pontos principais a serem ressaltados na idéia de Offe e Wiesenthal (1984) no contexto desse debate é que apenas os grupos “que estão relativamente sem poder é que terão razão para agir em termos não individuais, na base de uma noção de identidade coletiva, simultaneamente gerada e pressuposta por suas associações” (OFFE e WIESENTHAL, 1984:70). Dentro desse quadro desenhado por Offe e Wiesenthal, os grupos oprimidos ou subalternizados definidos por Young (2006) podem, até, serem definidos pelas perspectivas que compartilham, mas sem uma afirmação e articulação de identidade coletiva, não teriam possibilidades de alterar os padrões das relações de poder em referência aos grupos dominantes.

O que Offe e Wiesenthal (1984) põem em questão frente à discussão na teoria política feminista é a preservação da individualidade na ação política, mesmo quando pensada sob a ótica dos grupos. Phillips (1991) e Young (2002) criticam a afirmação de uma identidade do grupo como um elemento de limitação, ou, no caso de Young (2002), uma política de identidade, referente apenas às diferenças culturais, e que não questiona os elementos estruturais da opressão e da dominação. Para Offe e Wiesenthal (1984), por sua vez, é preciso pensar a forma atomizada de se pensar a ação como restritiva à possibilidade de alcançar mudanças por parte dos grupos mais fracos. Assim:

“a lógica da ação coletiva dos relativamente destituídos de poder difere daquela dos relativamente poderosos, na medida em que a primeira implica um paradoxo que está ausente na segunda – o paradoxo de que interesses só

podem ser defendidos na medida em que são parcialmente redefinidos. Por isso, as organizações nas quais a ação

coletiva dos relativamente destituídos de poder tem lugar precisam sempre ser construídas – e de fato sempre o são – de modo que simultaneamente expressem e definam os

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interesses dos membros” (OFFE e WIESENTHAL, 1984:71, grifos meus).

Nesse sentido, Offe e Wiesenthal podem trazer para a discussão da teoria política feminista uma questão central: ao questionamento epistemológico “qual é o sujeito do feminismo?”, que orienta também a questão de quais as são suas demandas, precisaríamos acrescentar a pergunta, “e a qual interesse responde esse sujeito?”, ao pensarmos no feminismo enquanto projeto – ação coletivamente organizada – emancipatório.

O que se pretende levantar com esse questionamento, em relação ao debate pertinente a essa dissertação, é a condição da pluralidade dos interesses – compreendidos no sentido mais estrito, de preferências que orientam as ações – como expressos e definidos nas organizações, no caso, nas diferentes perspectivas apresentadas sobre o mesmo problema: as possibilidades da ação política das mulheres no contexto da representação formal.

Considerando essa questão, e ainda os pontos levantados por Anne Phillips (1991) em relação à necessidade de se definir uma identidade para a mobilização política tanto de eleitores quanto de eleitos, vemos que a teoria política feminista transita entre a dificuldade de estabelecer padrões estritos de identidade para orientar a ação política para além do essencialismo, abrindo mão, assim, de outros elementos possíveis de auto-determinação do indivíduo, e questionamentos sobre essa própria identidade; e a necessidade de preservar a diversidade, teoricamente e empiricamente, sem abrir mão de elementos mais concretos para a ação política.

Nesse sentido, torna-se central o papel da representação política como espaço constituinte dos interesses – mais específicos e concretos do que as perspectivas. A figura do representante passa a ser entendida como capaz de mobilizar certos elementos dessas perspectivas no momento da disputa formal pelos cargos de representação. Sendo assim, o processo de escolha do representante, e os elementos mobilizados na disputa política passam a ser centrais não apenas por seu papel em expor demandas, mas também por constituí-las e, sobretudo, por sua possibilidade de criar novos problemas políticos. Ou seja, esses representantes podem trazer novos temas e demandas para o debate, de forma a realmente constituir grupos e reuni-los, com base em um discurso comum, mas também em suas experiências concretas. O que se pretende, com essa afirmação, é reforçar a especificidade desses interesses enquanto preferências socialmente construídas e baseadas em relações de poder específicas. Também é

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importante lembrar que mobilizar alguns elementos concretos das diversas experiências das mulheres significa silenciar outras, o que reitera a importância de se investigar sobre as diferentes formas como esses interesses se constituem politicamente. A necessidade de atentar para a representação política como mobilizadora de identidades possíveis e orientadoras da ação, e conformadoras de interesses, no sentido apresentado por Offe e Wiesenthal (1984), mostra como esse instituto da democracia contemporânea é, ainda, e para além das críticas, fundamental para uma real possibilidade de transformação da realidade social, sobretudo, no que se refere às desigualdades de gênero.

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CAPÍTULO 2

PODER EXECUTIVO E GÊNERO

Dominação política institucionalizada

“Assim o velho colecionou a jovem; não poderia ter sido ao contrário. Colecionar é uma atividade sociável e ao tempo mesmo uma pirataria. As mulheres são educadas para não se sentirem competentes nem gratificadas pela procura, pela competição, pela superação dos lances que o colecionador (ao contrário de adquirir em larga escala) exige. Os grandes colecionadores não são mulheres, assim como os grandes contadores de piadas. Colecionar, como contar piadas, implica pertencer ao mundo em que objetos já prontos circulam, são alvos de competição, são transmitidos. Colecionar implica uma participação confiante e plena num tal mundo. As mulheres são treinadas para serem participantes marginais ou secundários neste mundo, assim como em muitos outros. Competir pela aprovação – não pelo competir entre si.”

Susan Sontag, O amante do vulcão.

Este capítulo pretende discutir se as possibilidades de inclusão de grupos subalternizados nos espaços de poder político formal são suficientes para que esses grupos sejam representados de forma de fato substantiva, e não apenas a partir de uma possibilidade formal de competição. Assim, a discussão se desdobra sobre o problema das desigualdades materiais e simbólicas que, em muitos sentidos, limitam as reais possibilidades de competitividade e sucesso desses grupos nos espaços de poder.

Considerando que essas desigualdades simbólicas e materiais orientam a construção dos diferentes espaços de poder me utilizarei do conceito de campo e de

habitus, extraídos da obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu, para analisar a hipótese

de que os elementos simbólicos e materiais identificados como referentes ao poder executivo enquanto campo incorporam as diferenciações de gênero de forma

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desfavorável às mulheres que concorrem à cargos nessa esfera do poder político. Buscarei analisar as conseqüências dessa diferenciação para o problema da inclusão efetiva das mulheres no campo político e da possibilidade de formação de articulações identitárias por parte desses grupos.

É preciso, contudo, manter em perspectiva a natureza diferenciada do poder executivo, que resulta, também, em uma visão diferenciada sobre a representação política no âmbito dessa esfera de poder. A importância dessa discussão está na possibilidade de que essa diferença na natureza da representatividade no poder executivo mobilize diferentes elementos na constituição das carreiras políticas com base no gênero, o que afetaria a inclusão das mulheres e de suas demandas e possibilidades de mobilização nessa arena.