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4. CAPÍTULO III: O DISCURSO DA PERDA DA LÍNGUA-CULTURA

4.4 REPRESENTAÇÕES DE LÍNGUA INDÍGENA: A RELAÇÃO IMBRICADA

Entendemos que o sujeito que tem o lugar ou está na posição de sujeito entre-línguas está em constante movimento, deslocamento entre línguas e culturas e, em particular, aponta para uma relação de alteridade entre uma e outra língua e por ela(s) é atravessado. A língua do

outro, do não indígena, causa estranhamentos e possibilidades de resistência, rexistência e re- existência, mas também provoca muitos des(re)encontros. Nesse capítulo foi possível identificar marcas que (d)enunciam esse conflito entre-línguas-culturas a partir do medo em perder a língua indígena. Interpretamos que esse medo em perder a língua materna esteja relacionado com o contato com a língua portuguesa e o não indígena.

Eckert-Hoff (2016) concebe que o sujeito entre-línguas é marcado por estranhamentos, encontros e desencontros com a(s) língua(s) e, ainda, um sujeito que fala e que falta. Apesar de o trabalho estar composto por um corpus de análise com tema e anos distintos, é exatamente assim que vemos o sujeito indígena participante do PIN-UFFS, capaz de dizer e (se) dizer nas redações do processo seletivo e (d)enunciar a perda da língua-cultura indígena. Dessa forma, identificamos marcas discursivas que apontam para um conflito entre-línguas-culturas, pois os participantes trazem o medo em perder a língua indígena e a necessidade de resgatá-la para se auto afirmar indígena.

Tendo isso em vista, esse capítulo foi guiado pela regularidade discursiva da perda da língua-cultura indígena, expressada, muitas vezes, pelo medo de que isso aconteça. No primeiro tópico interpretamos o discurso da perda por meio dos verbos perder, esquecer, deixar: “na questão da língua materna, também está muito fraca” (SD28), “para que não se percam o maior tesouro a ‘língua materna’” (SD29), “já não falam mais na língua Kainkang” (SD30), “deixando de lado a nossa própria língua” (SD31), “língua kainkang que ela não pode ser esquecida” (SD38). Interpretamos que a representação de língua indígena é de que ela é passível de perda assim como um objeto material e não vista como algo que o constitui enquanto sujeito. Essa representação está vinculada a uma rede de sentidos construída a partir das sequências discursivas analisadas: uma língua que pode ser perdida → uma língua que precisa ser preservada → o indígena sem a língua materna deixa de ser indígena.

Da mesma forma que aparece no segundo capítulo desta dissertação, a língua indígena é representada com muita importância na constituição identitária do indígena e as marcas de regularidade guiam para o resgate da língua indígena: “resgatando a nossa língua materna” (SD39), “preservar e conservar a nossa língua materna” (SD40), “o mais importante é que alguns preservam sua própria língua” (SD43). Com base nessa visão da língua indígena enquanto constitutiva da identidade do indígena, perder a língua-cultura indígena automaticamente faria com que o indivíduo deixasse de ser indígena, pois “ninguém mais vai ter como provar que é índio, ninguém mais dominam a língua materna” (SD28).

Ressaltamos, a partir da análise das sequências discursivas, que o contato com o não indígena influencia na possível perda da língua-cultura, visto que é o indígena que deve se

submeter e aprender a língua portuguesa para que haja uma comunicação entre ambos. Mais que isso, a universidade oferta um processo seletivo especial para o sujeito indígena, cobrando a comprovação étnica, porém apresenta uma prova de múltipla escolha toda escrita em língua portuguesa e solicita que o participante redija uma redação na mesma língua. Esse se torna um conflito entre-línguas-culturas vivenciado pelo sujeito que pode levar a perda da língua indígena. Nesse sentido, inevitavelmente o sujeito indígena precisará assumir a língua portuguesa na universidade mesmo que ele necessite “se adaptar ao lugar e acostumar falar em português e deixar de falar seu idioma por um tempo” (SD32).

Percebemos que em alguns momentos o sujeito indígena utiliza o discurso injuntivo (“temos que”) para denunciar uma imposição em assumir a língua portuguesa fora da terra indígena. Levando em conta que o sujeito se constitui nos e pelos discursos do outro, o discurso sobre o indígena, veiculado, por exemplo, pela mídia, deixa resíduos no discurso do participante do processo seletivo e emerge como uma representação do que é ser índio: sem a língua indígena ele deixa de ser indígena. Essa questão é reiterada ao longo do capítulo e se caracteriza como uma grande preocupação dos povos indígenas. As redações, portanto, se tornam um lugar para esses sujeitos se dizerem. Nessa construção, os discursos da colonização retornam: a reação e o julgamento do não indígena, enquanto superior ao indígena, se torna importante para ele. Falar a língua portuguesa, então, o faz ser aceito e ouvido pelo outro.

Após a denúncia da perda da língua-cultura, mesmo que lentamente (marcada por verbos no gerúndio “deixando”, “perdendo”, “esquecendo”), existe a necessidade de preservação e resgate dessa língua-cultura. Sustentado pelo discurso pedagógico, o professor aparece como o responsável por trazer essa língua de volta para a comunidade indígena. Em toda essa regularidade o espaço entre-línguas-culturas surge como um conflito, uma tensão, pois assumir a língua portuguesa contribui para a perda da língua-cultura. O imaginário do que é ser indígena aparece, mais evidentemente nesse capítulo, na última regularidade discursiva. A língua indígena exerce uma relação de interdependência com o sujeito indígena: sem a língua materna “o índio não é nada” (SD49). Não somente deixa de ser indígena, como também se reduz a coisa alguma, sem valor algum diante do não indígena. Nosso gesto interpretativo aponta que as escritas de si desses participantes do PIN-UFFS (re)velam marcas de uma tentativa de silenciamento vinda da imposição da língua-cultura do colonizador. Para (re)existir o sujeito indígena busca formas de resgatar e preservar a língua indígena, mesmo que o discurso do outro ainda o interpele. Vale destacar que mesmo que o participante use o discurso e o espaço do outro para se dizer e resistir, através do PIN-UFFS – que visibiliza o indígena dentro da universidade –, este ocupa tal espaço e se diz: sou indígena e falo uma língua diferente.