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Representações Sociais e Literatura: correlatos e afins

1 GILKA MACHADO: SUA POESIA E SEU TEMPO

3.3 Representações Sociais e Literatura: correlatos e afins

Moscovici (apud SANTOS, 1994) considerava o homem uma máquina que processa informações; ele deixa de ser um animal racional e se torna uma máquina pensante. Porém, essa máquina tem problemas: como ele processa informações que recebe de fora, as teorias que ele elabora sobre o outro são ingênuas, sem profundidade, e ele termina percebendo e a- preendendo apenas os elementos que confirmam sua teoria.

Em conjunto, o efeito desse fenômeno se multiplica e se fortalece. As pessoas que par- ticipam dessa forma de conhecimento comum limitam-se a ele; não raciocinam nem analisam seu conteúdo a distância, para observá-lo melhor. Não há uma observação sem implicações pessoais, o que leva o estado desse conhecimento a permanecer quase igual ou dentro de vari- ações que não incluem grandes mudanças. E vários fenômenos da vida cotidiana, centrados nesse tipo de conhecimento, contribuem para que as representações originadas dele continuem em seu papel.

As Representações Sociais necessitam associar-se a outras categorias da realidade co- tidiana para se fixar, resistir e permanecerem fortes. Mas a despeito da proximidade, as Re- presentações Sociais não se confundem com tais categorias no nível simbólico. Elas são dife- rentes, porque nascem do cotidiano, que é considerado “realidade por excelência”, por se im- por à consciência dos sujeitos.

Elas atuam em interface com fenômenos concorrentes, como: senso comum, imaginá- rio, mito, opinião pública e ideologia, entre outros. O senso comum é um conjunto fragmenta- do de concepções sobre o mundo, contraditórias ou não, generalizadoras, envolvendo signifi- cados, valores, conceitos e explicações. Esse conjunto penetra nas mentes e na afetividade, interferindo no modo de agir e na prática diária das pessoas de forma tão intensa, que não se questionam possibilidades de outras explicações para os fenômenos cotidianos. (LUCKESI, 1994)

O olhar acostumado do senso comum reduz a percepção de mundo, criando preconcei- tos e estereótipos. É um conhecimento adquirido pelo fato de se viver em conjunto, nas mes- mas condições sociais, de crença e de valores. Como nasce naturalmente, ao mesmo tempo que a gramática da língua materna, a relação entre esses é estreita e justifica tanto a fluidez de novas ideias como a manutenção das velhas. Para o senso comum, o erotismo é algo que per- turba a ordem simbólica, organizada segundo proibições e repreensões de uma sociedade mo- ralista que trata o sexo ora de forma idealizada, como segredo, ora como libertinagem, peca- do. Daí as Representações Sociais do erótico na Literatura feminina também estabelecerem, de certa forma, uma relação negativa com a imagem de Eros: ou porque havia silêncio (como o das poetas contemporâneas de Gilka) ou porque foi expressamente dito (como Gilka o fez em seus poemas). Esse silêncio encontra eco nas mesmas questões religiosas e de poder que revestem a abordagem do erótico e que George Steiner (1988, p. 31) confirma:

A primazia da palavra, daquilo que pode ser falado e comunicado no discurso, era característica do gênio grego e judaico e foi trazida para o cristianismo. O sentimen-

to do mundo clássico e cristão esforça-se por ordenar a realidade no interior do do- mínio da linguagem.

Nesse conetexto, a Literatura (como outras artes) representa um dos empenhos de cir- cunscrição da experiência humana aos limites do discurso racional lógico e contido, servindo- se da união entre representação e mimesis. A Literatura reproduz abstratamente imagens, tan- to de uma realidade social e psicológica reconhecida, as quais existem antes mesmo de serem representadas, quanto de uma realidade ideal e mítica. Ela reproduz traços e características dessas realidades, num contexto diverso do que é estritamente literário, ou seja, da Literatura como resumo de sintaxe, versificação, rima e outros.

O estereótipo, produzido pelo senso comum, é mais uma representação coletiva “da qual existem muitas cópias, cópias idênticas da representação”, segundo Pedrinho Guareschi (2003, p. 196). As Representações Sociais têm em conta a articulação do psiquismo do sujeito singular com sua posição na sociedade da qual é membro. Há, então, formações intermediá- rias, organizadas socioculturalmente de modo mais preciso, como disse Lane (2004).

O imaginário também faz parte da representação como um tipo de tradução mental da realidade percebida. Seu processo ultrapassa o mental, indo além da representação intelectual ou cognitiva. As produções simbólicas sempre decorrem de práticas sociais, conforme La- plantine & Trindade (1997). O imaginário sustenta-seno simbólico, numa relação profunda e imediata: aquele se utiliza desse para se expressar ou mesmo para existir, passando do virtual para algo mais próximo do real, como disse Castoriadis (2000), a partir dosmovimentos dessa realidade.

As representações, ainda imagens, encontram no imaginário a rede simbólica institu- cionalizada de que necessitam para se tornar Representações Sociais. Socialmente sancionada, essa rede combina o componente simbólico com diversas variáveis temáticas e se materializa na realidade por meio do pensamento, das opiniões e do comportamento, entre outros. O i- maginário é o campo também da ficção literária, e a aliança entre eles, segundo Costa Lima (apud FERNANDES, 1999, p. 2), “cria um espaço de tensão entre o objeto real e a cópia, porque o imaginário, ao reproduzir o real, desdobra-o e não só o repete.” Mas seja desdobra- mento, seja repetição, o imaginário é expresso tal como se constitui: em forma de imagens, de símbolos.

Quanto ao mito – “fundador da vida e da ação do homem e da sociedade”, segundo a perspectiva antropológica de Laplantine (1988, p.115), – Moscovici (1978) diferencia sua re- lação com as Representações Sociais, explicando que ele tende a gerar inércia e submissão,

principalmente diante da cultura dominante. Essa passividade é mais condizente com as re- presentações coletivas, tanto que Guareschi (2003), citando Jahoda, afirmou ser o mito é mais identificado com as representações coletivas, devido a sua pouca dinamicidade.

Confirmamos isso nos longos séculos de império masculino, sustentado pelo mito de Maria (a inércia feminina ante a busca da castidade) e de Eva (a submissão pelo pecado origi- nal). Na Literatura, outros mitos, em sentido lato, podem ser associados às representações co- letivas: o de Francisca Júlia, encarnando a “parnasiana boa demais”, e o de Júlia Lopes de Almeida, poeta, “impecável mulher e mãe”.

As Representações Sociais não imobilizam; atuam a partir de observações, de análise dessas observações e das formas da linguagem de que se valem para se difundir e se reforçar. Elas constituem vias de apreensão do mundo concreto e circunscrito, desde os alicerces até as consequências. Guareschi (2003) explicou que, nas sociedades modernas (típica das Repre- sentações Sociais), os mitos representacionais espalham-se rapidamente nas sociedades, mas têm um período curto de vida, por serem logo substituídos; são comparáveis aos modismos.

Outro fenômeno que pode ser associado às Representações Sociais é a opinião públi- ca, definida por Guareschi (2003, p. 193) como “uma situação multiindividual, em que os in- divíduos se expressam ou são chamados a se expressar, a favor ou contra uma condição espe- cífica [...]”. Não há uma preocupação em saber como se forma a opinião pública sobre algo. As Representações Sociais se voltam para as dimensões da construção e da mudança social que trazem novas ideias sobre determinado tema e demandam um novo processo de familiari- zação em relação ao paradigma existente. Foi o que ocorreu com a poesia de Gilka Machado.

Quanto à ideologia – “processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam idei- as de todas as classes sociais [...]“ (CHAUÍ, 1984, p. 92) –, ela é a ideia nuclear de uma repre- sentação e aponta o rumo das práticas sociais com relação às transformações advindas dessa representação. Nas Representações Sociais, a ideologia está no direcionamento que elas dão ao comportamento social.

Além de esses fenômenos possibilitarem a fruição de novas ideias e temas até esses se transformarem em representações, no que tange ao erotismo, ele, por si só, favorece esse pro- cesso. Como disse Foucault (1988, p. 98), “nas relações de poder, a sexualidade não é o ele- mento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior nú- mero de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estra-

tégias.” E isso era bem observado na sociedade da época, quando a expressão erótica feminina foi associada a um lado “negro” da mulher (como dissemos anteriormente).

Pelo que vimos, as Representações Sociais se mantêm por se assentarem em vários fe- nômenos do conhecimento popular e por aspectos que permeiam esse conhecimento (como o poder). Elas têm em comum com eles o ambiente e as bases operacionais, o simbólico e a lin- guagem, mas diferenciam-se nos respectivos processos de articulação e de desenvolvimento. A Literatura pode ou não refletir essa articulação.

Na Literatura, a simbologia da linguagem, poética ou antipoesia, tem levado a conclu- sões sobre uma estrita afinidade entre ela (a Literatura) e outras áreas de estudo, como a Psi- canálise (que busca o “rastro” do inconsciente nos escritos) e a Antropologia (a relativização das interpretações imprime especificidades socioculturais à obra literária) e agora, as Repre- sentações Sociais (que cristalizam conceitos nas falas e nos comportamentos). Isso porque nosso cotidiano se passa no plano dos conteúdos manifestos, portanto no imaginário. E esse, para manifestar-se, além dos recursos individuais, pode valer-se do inconsciente, da interpre- tação e de expressões de fenômenos sociais.

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