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PARTE I: SAINDO DA LAMA

CAPÍTULO 2. SOCIABILIDADE VITALIZADA: A FESTA DA PARTICIPAÇÃO

2.2 E a flor rompeu a lama: o início de uma década perdida ou de uma belle époque?

2.2.3 Repressão e resistências numa Brasília de Teimosinhos

Bem diferente das realidades geográficas do Ibura e de Casa Amarela, que se encontram em áreas de morros distanciadas do centro da cidade, Brasília Teimosa é uma comunidade periférica menor, uma península fincada na faixa litorânea da zona sul, ladeada por áreas muito valorizadas economicamente e de ocupação verticalizada, como Pina e Boa Viagem, e o próprio Centro do Recife.

Em 1957, época da construção da cidade de Brasília, ocorre uma invasão da área então usada por colônias de pescadores, outorgada por Getúlio a estas em 1954. Pela constante

teimosia da população que reconstruía os barracos durante a noite, quando a polícia os

derrubava à luz do dia, completou-se o nome da comunidade. Em 1958, depois de mobilizações das famílias que passaram a ocupar a área, os moradores conseguiram permissão para permanecer na região, entretanto, sem maiores garantias do Estado, onde até hoje permanecem sendo alvo constante da especulação imobiliária126.

O chamado Projeto Teimosinho foi pensado e elaborado por um grupo de moradores, em meados da década de 1970, com o intuito de conseguir a legalização dos terrenos e a urbanização do bairro, inclusive propondo indenizações aos proprietários com mais de uma residência por parte da Secretaria de Habitação, sendo muitos destes últimos, moradores de outros bairros.

126 Ver: ALBUQUERQUE. Janice Maria Smrekar. Só deixo de luta quando morrer. Povo, terra e

A prefeitura, do então prefeito Gustavo Krause, ao elaborar um projeto para incluir na Comissão de Legalização e Posse da Terra a União de Moradores – entidade paralela que representava proprietários e dissidentes do Conselho de Moradores, derrotados nas eleições – geraria revolta na maioria da população local.127 Após muita discussão nesse sentido e considerável pressão das mobilizações por parte do Conselho, veio a aprovação do projeto. Era hora de fazê-lo sair do papel, e a comunidade pronunciava-se com seu jornal:

É bom lembrar aqui o que diz o Projeto Teimosinho, veja bem, “Não aceitamos mais a expulsão de moradores em hipótese alguma.” Diz o projeto ainda: “O pessoal que mora numa casa de aluguel, vai receber o terreno em seu nome e vai comprar a casa por um preço justo. Pra quem não pode pagar, o governo financia a compra e depois a gente paga aos poucos de volta”. Tá tudo claro e o poder público aprovou e se comprometeu a executar tudo isso.128

Brasília Teimosa, dentre muitos conflitos nos bairros do Recife, irá representar aquele mais centrado na problemática habitacional da cidade, ao colocar em lados opostos, e claros, inquilinos e proprietários, inclusive no que se refere à formação das chapas que disputavam o Conselho de Moradores do bairro, sobretudo, no início da década de 1980.

Nestes anos, o bairro será testemunha do continuísmo das práticas repressivas por parte das forças policiais, sobretudo com a intimidação em relação aos inquilinos eleitos e que atuavam no interior do conselho através da ação do grupo do Teimosinho. Tais práticas podem ser vislumbradas, por exemplo, como quando da invasão de agentes do DOPS-PE da sede da Associação, com o intuito de prender Lindacy Freitas, inquilina de uma das casas do bairro e integrante do conselho de moradores. Lidancy denuncia em entrevista que inclusive já havia sido surpreendida dias antes, na própria casa, enquanto tomava banho. Além de seu marido também ter sido detido, e da mesma forma ela, ou seja, sem razões ou motivos aparentes, quando foi chamado à delegacia para depor:

127 Briga por liderança tumultua bairro. Diário de Pernambuco. 14 de maio de 1982. APEJE-PE:

Hemeroteca.

128 SEHAB continua na dela. A Voz de Brasília Teimosa. Ano 1. Nº 2, dezembro de 1981, p. 04.

O presidente do conselho de Moradores acredita que o caso tem origens no conflito observado na área entre moradores e proprietários [...] Com a aprovação do Projeto Teimosinho, ficou determinado que seria legalizada a posse dos moradores, medida que vem desagradando os proprietários que em alguns casos dispõem de até 50 imóveis e não estão dispostos a abrir mão da fonte de renda129

O presidente do Conselho do bairro era Moacir Luis Gomes Filho, nesse mês de janeiro de 1982, quando destas operações do DOPS. Um morador que viria inclusive a disputar novamente as eleições, dali a apenas três meses, em abril daquele ano. Dessa forma, percebem-se as tentativas de coações em relação a este grupo de moradores da Chapa 1, que provavelmente se reelegeria, como inclusive aconteceu, com resultados numericamente incontestáveis: “Foi uma lavagem. A chapa 1 – que defende o Projeto Teimosinho – venceu a

chapa 2 nas eleições de domingo [...] O total de votantes foi de 3187; a chapa 2 conseguiu 700 votos e a 1, 2100 votos.” 130

A detração dos movimentos sociais realizada pelos grandes meios comunicativos, nos anos do pré-golpe de 64, não deixará de estar também presente nestes embates mais recentes. O discurso difamatório é recorrente. As estratégias se repetem. A volta das mobilizações em bairros pobres em finais da década de 1970 não foi uma reconstrução pacífica. A declaração de Newton Carneiro publicada no Diário de Pernambuco, por exemplo, é interessante para se pensar na permanência dessa política de difamação, com o intuito de fazer os conselhos e as associações perderem legitimidade frente a outros setores da sociedade e aos próprios moradores que representavam. O então deputado peemedebista afirmava à época que “Brasília Teimosa seria uma verdadeira Moscouzinho dentro do Recife”, e completava:

Hoje Brasília Teimosa é um campo de experiências das várias facções do Partido Comunista. Há vários grupos infiltrados dentro deste bairro, que antes era calmo e tranquilo. Hoje existe luta de classe violenta entre

129 Agentes da SSP invadem associação de moradores. Diário de Pernambuco, 27 de janeiro de

1982. APEJE. Acervo DOPS-PE. Recorte de Jornal. Prontuário Funcional: 30.411. Conselho de Moradores de Brasília Teimosa, 1982.

130 Chapa 1 vence em Brasília Teimosa. Diário de Noite. 28 de abril de 1982. APEJE. Acervo

DOPS-PE. Recorte de Jornal. Prontuário Funcional: 1618. Paróquia Coração Imaculado (Boletim Paroquial) Brasília Teimosa, sem data.

proprietários e inquilinos, certamente pelo famigerado MR-8 e outras siglas radicais.131

Nas eleições do ano seguinte àquela vitória incontestável, em 23 de abril de 1983 a chapa 1 novamente sai vencedora. Os membros da chapa “Teimosinho”, chamados de

elementos pelo relatório policial, têm suas fotos e todos os seus dados pessoais, endereços,

filiações, profissões e atuações políticas espionadas e bem descritas nas respectivas fichas. José Osmar Ferreira da Silva, Cristina Maria Valença de Mendonça, Aluísio Lins Paes Barreto, Dorgival da Silva Lira, Carlos Veríssimo dos Santos e Ary Soledade Duarte. Todos e todas, membros da chapa, mais uma vez vencedora, “Teimosinho”, foram fichados, já no ano de 1983, por atuação política em um conselho de moradores.132

Fonte: APEJE. Acervo DOPS-PE. Prontuário: 1061. Conselho de Moradores. 1971-1983.

131 Comunistas tomam conta de Brasília. Jornal do Commercio. 15 de julho de 1981. APEJE-PE:

Hemeroteca.

132 Ofício. IV Exército. 17 de maio de 1983. APEJE. Acervo DOPS-PE. Prontuário Funcional:

1061. Conselho de Moradores,1971-1983.

Portanto, repressão e intimidação existiam em fins da ditadura, e, como se vê, estavam de braços dados com a vigilância dos órgãos de segurança, que continuaram atuando nos bairros pobres nestes anos.

2.3 Diversos são os bairros, uma é a festa: multiplicidade geográfica e confluência cultural

Vários sujeitos, inclusive de partidos ilegais sem espaço no cenário político oficial, entraram nos movimentos sociais e adensaram as lutas por direitos nos bairros mais pobres da cidade. Entretanto boa parcela deste movimento foi conduzida por moradores sem vinculação partidária e por setores da Igreja Católica, como se observou. Ademais, o bairro popular, neste período, torna-se um aglutinador de inúmeras mobilizações e de variadas tendências e agrupamentos políticos. De modo que os movimentos que ali surgiam estavam vinculados, por exemplo, a comissões de fábricas ou a organizações que refletiam sobre questões ecológicas ou acerca dos direitos das mulheres, além de presenciarem a atuação, por vezes conjunta, de forças como a Igreja Católica, o PMDB, o MR-8, o PT, o PCB ou o PCdoB. Constrói-se assim, gradativamente, um campo de forças políticas consideráveis dentro dos movimentos populares dos bairros no cenário recifense. No que se refere ao nível mais amplo de organização, este se desdobrará, por exemplo: na Federação das Associações, Centros Comunitários e Conselhos de Moradores de Casa Amarela (FEACA), em 1978; na Comissão de Lutas do Ibura, em 1982; na Assembleia dos Bairros, 1984, posterior Federação Metropolitana dos Bairros (FEMEB) em 1987, sendo esta última federalização a mais comemorada conquista no campo organizacional destes movimentos na época; além de outros movimentos organizados que apoiavam as mobilizações nos bairros populares, como o Movimento de Defesa dos Favelados, além de ONG’s como a ETAPAS.133

De um modo oposto ao que se percebe hoje na organização dos movimentos de bairros pobres do Recife, foi grande a força política alcançada por esta rede de mobilizações no

133 ETAPAS: Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social. Uma entidade civil sem fins

lucrativos, criada em 1982, que assessorava parcelas do movimento popular de bairro na Região Metropolitana do Recife, através de capacitação, estudos, pesquisas e apoio técnico-pedagógico junto às Associações e Conselhos de Moradores. Estava no conjunto do que se chamava à época de

Interentidades, uma reunião de entidades de assessoria aos movimentos populares em Recife,

sobretudo no que se refere aos aspectos jurídicos e organizacionais. Formavam esse conjunto, além da ETAPAS, a FASE – Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional; o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social; a CJP – Comissão de Justiça de Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife; o