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As teorias sobre linguagem e religião, que segundo Vico são geradoras de cultura e não geradas por ela, podem ser analisadas à luz do trabalho de Eugène Nida80. Nas suas observações referentes às técnicas tradutórias, encontramos uma advertência quanto ao perigo da visão etnocêntrica por parte do mundo ocidental que impede a compreensão do outro

cultural; no caso especifico de Nida, seu empenho em traduzir a Bíblia para mais de duzentos

idiomas, inclusive línguas indígenas, acabou por definir o papel real da linguagem na sociedade e sua relação com a cultura. Nos cursos de técnicas tradutórias, seu trabalho aparece como referência e sua contribuição não pode ser ofuscada.

Nida defende a idéia de que é necessário procurar significados fixos ou essências em textos, a fim de garantir a fidelidade da mensagem autoral a ser transmitida de uma língua para a outra. A procura de significados fixos garante a preservação de um “resíduo”, com o qual podemos aceder às informações originais. Desde que sejam mantidos alguns critérios de “fidelidade” – que incluem uma visão despretensiosa do outro cultural –, o “resíduo” é responsável pela transmissão do conteúdo do texto de partida, mesmo que se perca boa parte da mensagem autoral.

No caso de textos considerados sagrados, o "resíduo" advém de um autor cuja origem é divina e, para a maioria dos tradutores, captá-lo torna-se uma empresa impossível. Eugène Nida, ao traduzir a Bíblia para centenas de idiomas, decidindo abraçar as dificuldades que toda transmissão de imagens e signos de uma língua para outra pode acarretar, tornou-se uma referência para os estudos de técnica tradutória81 e nos coloca diante da problemática da

80 Eugène Nida (1914 - ) – E.U.A - Lingüista-antropólogo-missionário-tradutólogo

81 É claro que desde as primeiras traduções da Bíblia – a partir das tradições orais traduzidas para o hebraico,

conservação da memória judaica, registrada na Torá. Para os judeus - que preservaram suas memórias desde o princípio – o ”resíduo” é aquilo que lhes confere a identidade de povo. Para a história dos gentios, Vico enfrentou a dificuldade de ter de recolher o material - até então considerado como lenda e fábula – buscando “traduzir“ a história que estava sendo contada por meio desses textos.

Avaliando o modo de argumentar de Vico que, assim como o dos rabinos, observa casos particulares, explorando as idéias sugeridas no texto, compreenderemos o pioneirismo desse grande filósofo, evidenciado nesta afirmação de Alfredo Bosi:

“Vico percebeu o caráter específico do discurso histórico que procede observando casos individuais e situações prováveis e infere tendências por meio de tópicos (topoi), em vez de obedecer a critérios de evidência e a regras dedutivas como as da Geometria fixadas desde e para sempre.” 82

O discurso histórico possui um caráter específico que foi revelado na Ciência Nova. O pensamento metafísico de Vico (que se apóia na existência de um Deus criador e na separação dos povos entre hebreus e gentios), aliado à filologia (ferramenta de certificação da veracidade do fato), lança a teoria viquiana para além das especulações religiosas: observações de caráter mitológico, literário, histórico, jurídico, dão corpo às imagens aparentemente lendárias dos relatos “fabulosos”. A atitude, pouco etnocêntrica e bastante especulativa de Vico ao interpretar o texto de Gênesis 6, (e os capítulos anteriores também) o conduz a uma concepção da história obscura do início adâmico e do recomeço gentílico que complementa ou oferece um novo aspecto além do naturalístico; assim fazendo, Vico dita as regras para o estudo da história e consegue faze-lo porque considera o modelo de aculturação judaico, que será verificado nas outras civilizações.

O historiador Flavio Josefo compila a história do povo judeu levando em consideração as tradições Jawista e Elohista83; Vico re-compõe a história dos latinos

novos e, sem dúvida, boa parte da equivalência se perdeu. Acredita-se, porém, que o resíduo tenha sido preservado, tendo ou não sido ditado por “inspiração divina”. - “ Teorie contemporanee della traduzione”.

82 A.Bosi – “O ser e o tempo da poesia”. Cap.: “Vico anti-Descartes”- pag.197

83 As tradições Jawista e Elohista são as mais conhecidas popularmente. Durante as aulas da professora Ruth

resgatando as tradições e textos antigos. A Torá foi contada, cantada e regularmente estudada nas sinagogas desde que se tem notícia da existência da comunidade judaica, e somente os conhecedores da língua santa puderam aceder à mensagem bíblica “residual” até que o Ocidente recebesse a tradução conhecida como Septuaginta (que Vico chama de “versione dei

Settanta” 84). Vico, embora não conhecesse outras línguas além do italiano e o latim85, entra

em contato com a literatura judaica acessando as traduções e os comentários em circulação na sua época; acreditamos que o filósofo napoletano mantêve-se cuidadoso com relação ao seu interesse por textos e escritores condenados pela igreja católica. Podemos afirmar, no entanto, que o interesse de Vico pela história e pela literatura judaica ultrapassa o simples diletantismo e a busca por respostas às perguntas de caráter religioso: porque pretendia encontrar nos textos, sagrados ou não, o embasamento científico para seus postulados, GV empreende sua busca por pressupostos eternos e universais nas “mensagens residuais” dos relatos antigos; seu conhecimento eclético e filológico serão as ferramentas de base de seu trabalho, que naturalmente inicia-se pelo documento mais antigo: as memórias registradas pelo povo hebreu.