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REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS DE

TRABALHO DE CAMPO

46 Cada pessoa que vem aqui leva um pouco do jeito nosso, tem uma história para contar [e é importante] estar escrito na história do papel para não esquecer... Cada um vê de um jeito e para entender tem que conhecer. Liderança e professora Guarani, 2012.

Todo mundo que anda conhece. Quem não anda, não conhece.

Kaiowá ñanderu Admiro, Reserva Indígena de Dourados, 2011.

Tem que contar para aprender a história do índio, se não conta, não aprende. A gente conta para que a palavra seja levada para longe.

Kaiowá ñanderu Nelson, Reserva Indígena de Dourados 2014.

Inicio este capítulo em primeira pessoa do singular, fugindo das convenções acadêmicas por entender que o pesquisador em um trabalho acadêmico não elabora sua interpretação sobre os “outros” sem refletir sobre a ação particular de si mesmo, de quem observa, descreve, analisa, interpreta e escreve. E neste caso específico, foi-me possível realizar esses procedimentos por meio da multiplicidade de encontros com os Guarani e Kaiowá.

A importância deste capítulo está em minhas inquietações, nas interpretações que elaborei para refletir sobre a presença dos povos Guarani e Kaiowá na sociedade contemporânea, em minha própria vida e o quanto esses sujeitos contribuem para o nosso pensar, ser e fazer Geografia. Aqui, constam reflexões e contribuições sobre procedimentos de trabalho de campo e a importância dos atos de observar e descrever, muito negligenciados pelos geógrafos e geógrafas. Muitas vezes, esses se opõem a qualquer procedimento metodológico que recorde os fundamentos da ciência positiva, assim, menosprezam as “origens” de seu próprio fazer e do quanto esses dois procedimentos de pesquisa contribuem para o avanço de nossos olhares sobre o espaço, o tempo, os povos, as sociedades, as comunidades, as identidades, as diferenças e as relações que envolvem o “nós” e os “outros” - os Outros-Nós.

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1 As vicissitudes do/no trabalho de campo: experiências de vivências

Este tópico tem a finalidade de demonstrar a singularidade do meu envolvimento e experiência vivida com os Guarani e Kaiowá. Para mim, é importante esclarecer ao leitor minha posição política, ideológica e situada na Geografia ao conhecer, conviver, aprender e me relacionar efetivamente com esses povos. A Geografia permitiu o encontro com os Guarani e Kaiowá, há aproximadamente oito anos. Encontro que não somente tem possibilitado uma melhor compreensão sobre outras formas de viver e ser, mas também outros modos de pensar e sentir quem sou no mundo. Desse modo, tal encontro tornou possível a minha compreensão sobre a diversidade de como os povos Guarani e Kaiowá produzem e significam o espaço.

Considero que até adentrar ao universo da Geografia, escutei coisas sobre esses outros estranhos e desconhecidos povos. Essas coisas envolviam um imaginário que percorria, por um lado, uma visão de barbárie e, por outro, uma completa idealização do indígena, o bom selvagem de José de Alencar19, ao atribuir aos indígenas uma ingenuidade, pureza e bondade

naturalizada (mas também a rudeza, expressa na obra O Ubirajara).

A partir do meu fazer geográfico, o imaginário que eu tinha sobre os indígenas foi amoldado baseado em autores como Sandra Jatahy Pesavento (1995) e Roberto Gambini (2002). Pesavento (1995, p. 15) afirma que: “O imaginário é sempre referência a um “outro” ausente. O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente”20.

E, Gambini (2002) complementa “Todos nós criamos uma série de relacionamentos imaginários porque sempre presumimos que o mundo é tal como o vemos e os outros, tais como os imaginamos21”.

19 É importante considerar José de Alencar como um dos precursores das ideias nacionalistas e seu marco no

romantismo brasileiro com os romances indianistas. Ver livros: O Guarani (1857), marcado pela representação do bom selvagem; Iracema (1865), O Ubirajara (1974), o nobre e rude guerreiro Tupi (RAMOS, 2006). O ideário do bom selvagem também é encontrado nos trabalhos do filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).

20O pensamento de Pesavento é influenciado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, pelo filósofo Paul Ricoeur e pelo

historiador Roger Chartier, sobretudo em suas reflexões sobre o simbólico20, ao correlacionar o imaginário com

discussões sobre representação e identidade.

21 Gambini ([1988] 2002, p. 90) entende que “De uma perspectiva histórica, é natural a existência de uma imagem

negativa do homem primitivo, porque o contraste assegurava ao civilizador a confirmação de sua duvidosa superioridade. Os relatos de Colombo e dos viajantes do século XVI eram, portanto, a validação “empírica” de um mito eterno, e nesse sentido a catequese dos indígenas assume ares de uma repetição da Criação. Civilizá-los seria o mesmo que moldar de novo a argila corrupta à imagem do autor. Os jesuítas fincaram o pé no Novo Mundo com esse objetivo, e convencidos de que a argila era má. Nada está em discussão. Os índios já eram conhecidos muito antes de serem encontrados, porque a imagem por meio da qual seriam percebidos sempre existiu na psique do

48 Esses autores, ao correlacionarem o imaginário com questões referentes à psicologia, à representação e à identidade, atestaram que o imaginário envolve uma significação para além do aparente, um conjunto de ideias e imagens que percorre o modo em que eu imaginava os povos indígenas. Portanto, as imagens, os imaginários e as representações sobre os outros são como um espelho em projeção sobre os outros, de modo que “Tudo que é inconsciente em nós mesmos descobrimos no vizinho22” (JUNG apud GAMBINI, [1988] 2002, p. 28).

Sobre esse debate, as contribuições do livro “O poder simbólico”, de Pierre Bourdieu (2006), contribuiu para o pensamento de Pesavento (1995, p. 15) ao alegar que “as representações objetais, expressas em coisas ou atos são [também] produto de estratégias de interesse e manipulação”. O imaginário não está dissociado de um imaginário hegemônico de projeto civilizatório europeu, imposto ao mundo no processo de constituição da moderna- colonialidade23, por isso a visão distorcida, racista, idealizada, estereotipada e naturalizada

sobre os indígenas.

O meu imaginário sobre os indígenas era, então, construído a partir das imagens que chegavam a mim por meio da televisão e da escola, uma vez que antes de entrar na universidade essa era a única possibilidade de me conectar com o mundo. É claro que essa conexão era muito diferente do que é hoje, sobretudo com a popularização da Internet, por exemplo. As informações sobre os povos indígenas traziam grandes inquietações e um imaginário muito próximo do que eu havia obtido na escola. Assim, recordo o indígena que me era apresentado nos livros didáticos de História, exatamente como registrou o escrivão Caminha, em carta ao Rei Dom Manuel ([1451-1501], 2000, p. 25): “Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas; e estão em relação a isto com tanta

homem civilizado, aguardando apenas o momento certo para ser projetada - o que se deu com a velocidade de uma flecha”.

22A projeção “[...] é um fato que ocorre involuntariamente, sem qualquer interferência da mente consciente, quando

um conteúdo inconsciente pertencente a um sujeito (um indivíduo ou grupo) aparecesse como se pertencesse a outro indivíduo ou grupo. A projeção ocorre involuntariamente e inconscientemente – o sujeito não sabe que ela está ocorrendo, não é capaz de produzi-la e nem de impedi-la” (GAMBINI [1988] 2002, p.36).

23 Conceito discutido a partir das contribuições teóricas do semiólogo Walter Mignolo, sociólogo Aníbal Quijano

e, sobretudo, do sociólogo Immanuel Wallestain, o qual criou a metáfora Sistema-Mundo Moderno-Colonial. Sobre o imaginário, a partir do martinicano Édouard Glissant, Mignolo (2005, p. 33; 43) entende que “dever-se-ia entender por imaginário do mundo moderno/colonial as variadas e conflitivas perspectivas econômicas, políticas, sociais, religiosas, etc., nas que se atualiza e transforma a estruturação social”. O autor dá um sentido geopolítico para a compressão de imaginário na constituição da moderna-colonialidade, de modo que “a imagem que temos hoje da civilização ocidental é, por um lado, um longo processo de construção do “interior” [e “exterior” desse imaginário]” (2005, p. 44), o que, neste caso, permite um diálogo com Gambini ([1988] 2002) e Pesavento (1995).

49 inocência como têm de mostrar o rosto”. Sob essa visão, é como se os indígenas tivessem parado no tempo e no espaço aguardando a conquista e o colonialismo, imobilizados no século XVI.

Sobre esse imaginário, Gambini (1994, p. 338) entende como:

O resultado do processo histórico sobre o qual se funda nossa sociedade, desse modo de lidar com o Outro que é ensinado a nossos filhos nas escolas como sendo uma obra civilizatória, é o progressivo extermínio da alma indígena. Ou seja, nossa sociedade se constrói sobre os escombros de um genocídio psíquico que vai da quebra da cultura e das relações sociais até a quebra da mitologia e das representações da alma. Quer dizer, em suma: no próprio processo histórico brasileiro podemos ver desde o começo como é tratada a questão da alteridade - não há reconhecimento, mas quebra do Outro.

Posso afirmar que o reconhecimento do indígena em minha vida começa no início da graduação em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - campus de Três Lagoas, no ano de 2005. O indígena era um sem-terra, um camponês que eu também só ouvia falar sobre e nada entendia, sujeito que era ao mesmo tempo diferente e igual, esse foi o contexto em que eles se aproximavam de minha experiência com a Geografia, era extremamente confuso. Entendo que há uma dificuldade por parte de muitos pesquisadores em compreender a multidimensionalidade de homens, mulheres, meninos e meninas no campo, entender as lógicas das comunidades tradicionais e as múltiplas formas de se organizarem no espaço-tempo. Nesse sentido, Paul E. Little (2002) traz uma importante contribuição diante da diversidade cultural brasileira, ao esclarecer que ela é acompanhada por uma diversidade fundiária, que inclui as terras de pretos, terras de santos, terras de indígenas, terras de praieiros, terras de sertanejos, terras de caipiras, terras de campeiros, terras de pantaneiros, terras de pescadores artesanais... Logo, são muitas terras e muitas gentes!

Em específico, esses imaginários homogeneizadores sobre as populações indígenas são mobilizados, no caso de nossa pesquisa, no município de Dourados, como instrumentos políticos para negar direitos sobre as terras que eles reivindicam como seus territórios étnicos ancestrais. Daí a imagem de bugre24, como ser decadente, contraposto à imagem do índio

amazônico (o “índio verdadeiro”, um nítido discurso de que lugar de índio é na Amazônia, um imaginário do indígena que vive no meio da floresta intocada aguardando ser conquistado), ou mesmo o índio situado e recuado no tempo histórico, no início do século XVI. Enfim, não há lugar para o índio na sociedade sul-matogrossense, ele é deslocado no espaço e no tempo, desde

50 o período inicial da colonização para dignificar a empreitada civilizatória dos colonizadores. Posso afirmar que esse imaginário também é extremamente frequente na sociedade e na Geografia.

A graduação em Geografia ampliou o modo em que eu enxergava o mundo, principalmente os espaços rurais. Ainda, esse momento foi marcado pelo encontro com o amigo Mieceslau Kudlavicz, que me apresentou a questão agrária em Mato Grosso do Sul por meio das geografias do pé25. Também foi em sua companhia, no ano de 2007, que comecei a descobrir

um mundo totalmente diferente do meu, conheci a cidade de Dourados. Lugar que posteriormente se tornou meu lar, com certeza a maior expressão de um lugar que entendo como meu até agora, onde pela primeira vez encontrei com os famosos Guarani e Kaiowá por meio de uma atividade de formação de agentes da CPT/Mato Grosso do Sul.

Esses sujeitos eram famosos porque eram frequentes a sua presença (tristes presenças) em minha iniciação científica, ao discutir a questão da violência no campo no estado de Mato Grosso do Sul, a partir de relatórios anuais lançados pela CPT, o que me permitiu uma análise dos dados entre os anos de 1985 a 2010 por meio de tabulações de dados, elaboração tabelas e interpretações das ocorrências de ocupações, conflitos e despejos, a partir de políticas de governos estaduais e federais.

Foi nesse momento marcante de minha vida que conheci a Kaiowá Fátima, que ao contar sobre a complexidade do modo de vida contemporâneo Guarani e Kaiowá meu coração acelerava de angústia e surgia a vontade de saber mais sobre esses povos. Rememoro sempre uma frase dela: “se você quer entender, tem que conviver”, e por isso busquei conviver com esses povos. Esse momento foi um marco em minha trajetória e vivência junto aos indígenas, a partir daí busquei criar condições para mergulhar em um universo novo, instigante e emocionante que se misturava com certa aventura em conhecer os estranhos Guarani e Kaiowá. Em 2009, fui morar em Dourados, isso se efetivou porque iniciei o mestrado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Esse momento retratou uma significativa mudança em minha vida, trilhada pelos caminhos da Geografia: expectativa, ansiedade e vontade enorme de conviver com os Guarani e Kaiowá. Aproveito e relato os primeiros encontros com esses povos na Reserva Indígena de Dourados, marcados pelo estranhamento, aflição e curiosidade, não só referente a eles, mas, sobretudo, na relação entre o Outro-Eu.

25 Expressão de Ariovaldo Umbelino de Oliveira (1994) em suas conversas com um camponês, no Bico do

51 O meu encontro com os Guarani e Kaiowá ocorreu através de uma multiplicidade de deslocamentos até a Reserva e acampamentos (apesar de muitas vezes eles se deslocarem até à minha casa), principalmente de bicicleta e carro (o lindo fuscão amarelo), foram várias incursões, mesmo que ainda esporádicas. Também advirto ao leitor que não vivi com os Guarani e Kaiowá na Reserva ou acampamentos (nos termos propostos pela etnografia de Malinowski, por exemplo), mas nossos encontros ocorreram em diferentes lugares que permitiram experiências de vida singulares. Muitos desses encontros e vivências foram extremamente casuais, ocorreram em minhas idas (e vindas) até suas casas, mas também, a partir de minha participação em algumas reuniões dos povos Guarani e Kaiowá, no movimento étnico socioterritorial26 Aty Guasu, em várias Terras Indígenas, em Mato Grosso do Sul, indo até as

escolas da Reserva e nos acampamentos, mediante o envolvimento com as atividades do CIMI (Campanha Povo Guarani, Grande Povo) e da CPT, por meio da presença desses povos em alguns espaços políticos da universidade e da experiência em sala de aula. Durante três anos, período de realização do mestrado, o encontro com esses povos foi muito intenso, permitindo que eu interagisse com as pessoas, compartilhassem histórias de vidas, práticas espaciais, suas linguagens, imaginários, sonhos e esperanças.

Nos primeiros encontros, eu falava tanto que não deixava a comunidade expressar suas curiosidades e elaborar suas próprias perguntas sobre a minha presença. Assim, estar com eles também percorria a necessidade de quebrar o gelo, o que muitas vezes me colocou em situações complicadas. Era importante para mim que eu falasse quem era, de onde vinha, o porquê de estava ali...

Depois de um tempo, com a experiência quase cotidiana, aprendi que o mais importante é saber escutar do que propriamente fazer-se ouvido. Diferente de outros momentos, eu estava diante de sujeitos que falavam uma linguagem completamente diferente da minha e, muitas vezes, faziam questão de fazê-la ser estranha para mim. Não me refiro somente à língua guarani, mas todos os códigos culturais que me eram estranhos. Hoje, entendo que não seria diferente, basta se colocar no lugar do outro, imagine uma pessoa que você não conhece em sua casa, falando sem parar e fazendo diversas perguntas.

26 O conceito de movimento socioterritorial discutido por Fernandes (2005; 2008) colabora para essa discussão na

perspectiva de que as estratégias do movimento Guarani Kaiowá, por meio da Aty Guasu, têm como principal luta a demarcação de seus territórios étnicos ancestrais. Para isso, diferente dos movimentos socioterritoriais camponeses discutidos pelo autor, esses povos não só tem o território como trunfo, mas o passado é o legitimador desse direito.

52 O contato com os Guarani e Kaiowá apresentava dificuldades distintas sobre o modo com que eu, por exemplo, aproximei-me dos camponeses durante a graduação, com a companhia alegre do Mieceslau, que conhecia “na palma das mãos” os caminhos por nós percorridos durante esse período. As primeiras conversas e tentativas de me fazer presente na vida desses povos e de algumas famílias, que posteriormente criei muitos vínculos afetivos, seja na Reserva ou nos acampamentos, mostraram que eu pouco sabia sobre eles, que meus conhecimentos sobre esses povos estavam pautados em dados estatísticos coletados em relatórios de violências, em dissertações e teses acadêmicas. Com o tempo fui percebendo a importância do convívio e do envolvimento cotidiano, o quanto estar com eles me fazia bem, permitia-me aprender (interpretando ao meu modo) outras formas de entender o mundo e redefinir a Geografia que busco construir.

Ressalto, ainda, que os Guarani e Kaiowá são acostumados com a presença de antropólogos e, por muitas vezes, confundiam-me como tal, por essa razão, faziam-me muitas perguntas sobre a questão fundiária em relação à demarcação de seus territórios. Quando eu dizia que era geógrafa, por alguns momentos ficavam em silêncio, logo em seguida vinha a seguinte pergunta: “Você pode ajudar a demarcar nosso tekoha?”. Tal pergunta nunca consegui responder. As perguntas referentes à demarcação de Terras Indígenas, diante da atual situação em que vivem esses povos são frequentes, inicialmente me colocavam em uma situação complicada, com um sentimento de onipotência enorme. Ficava a imaginar quais poderiam ser as contribuições do meu trabalho para possíveis transformações da precariedade vivida por muitas famílias.

No início dos encontros com os Guarani e Kaiowá sentia um enorme medo de não corresponder às expectativas desses povos sobre minha presença. Eu, chegando em Dourados, vivendo as primeiras experiências com esses povos e sabendo pouco (ou quase nada) de toda a realidade vivida por eles. A respeito das perguntas que muitas vezes não sabia responder ou entender o que me perguntavam, confesso que existem muitas outras que ainda não consigo responder, e tampouco entender tais perguntas ou quais perguntas fazer quando estou com eles. Entretanto, agora, sem medos.

Também revelo que quando me aventurei a esse encontro, imaginei que tudo seria fácil, acostumada com a linguagem campesina, acreditava que estava diante de sujeitos muito similares. Não que os camponeses sejam fáceis de serem compreendidos, ou sejam menos complexos. Digo isso porque a primeira impressão que tive, quando fui à Reserva Indígena de Dourados, é que a mesma estava dividida em pequenos sítios ou chácaras e em meu imaginário

53 não tinha nenhuma relação com a organização territorial dos povos indígenas na Amazônia, como possível realidade de todos os povos indígenas no Brasil. O que eram? Camponeses? Tudo que aprendi na universidade pouco ou nada falava dessa particularidade que envolve a questão fundiária no Brasil diante das especificidades indígenas. Ou ainda, por analisar relatórios de violências, dados estatísticos onde homens e mulheres eram encaixados e pareciam ser todos “iguais”, o que diferia era o esclarecimento sobre quem era o sujeito que estava envolvido na situação de conflito e violência.

Na verdade, hoje entendo que eu buscava o indígena das cartas de Caminha e dos livros de José de Alencar, mas não encontrei esse ideal e naturalizado indígena. Ao retomar os primeiros encontros com os Guarani e Kaiowá, alguns deles percebendo de início a minha dificuldade em dialogar, tentavam de algum modo me inserir nas rodas de conversas, sempre acompanhadas com tereré, mate ou chimarrão (preparados com erva mate - Ilex

paraguariensis). Ali, me explicavam a situação em que vivem, de um modo muito introdutório

e extremante didático. Aprendi um pouco a complexidade do que é ser Guarani e Kaiowá, o que não foi possível compreender em profundidade mesmo diante de leituras de uma vasta bibliografia sobre os povos Guarani e Kaiowá e laudos antropológicos sobre demarcação de Terras Indígenas. O que escutei e aprendi são palavras de homens, mulheres, crianças, jovens,

ñanderu, ñandesy27, que narram suas vidas de modo muito distinto da universidade. Estamos

diante de linguagens muito diferentes e cada uma delas tinha sua própria e significativa importância.

27 É importante considerar as categorias geracionais entre os Guarani e Kaiowá, o que dificulta traçar de forma

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