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CAPÍTULO II: INTERPELAÇÕES ENTRE A ÉTICA DO JUDAÍSMO

2.2 A FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICO-TALMÚDICA DA ÉTICA DA ALTERIDADE

2.2.1 O resgate de uma ética bíblico-talmúdica

A hermenêutica rabínica resgatada por Levinas confere à Lei a dignidade de uma Palavra genuinamente reveladora da alteridade de Deus e que se traduz na responsabilidade que emerge da relação com outrem. Nas palavras deste filósofo, referindo-se à lei mosaica, “é somente a partir da ordem ética que se pode encontrar um sentido para o amor de Deus,

273 Sobre o tema cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia

cristã.

274 Ibidem, p. 27.

275 Cf. PONTIFICIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, n. 2. Cf. PONTIFÍCIA

COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã, n. 22-23.

276 Cf. LEVINAS, Emmanuel. Difficile Liberté, p. 151.

sua presença e suas consolações. A ordem ética não é uma preparação, mas o acesso à divindade. O resto é quimera” 278.

Tal afirmação só encontra sentido dentro da compreensão cristã quando se admite que a Lei, enquanto Palavra amorosa de Deus, é ela própria reveladora do Rosto (de Deus)

279. Como a teologia bíblica afirma, a Lei mosaica é “mais que um código de

comportamentos e atitudes. Ela apresenta-se como “um ‘caminho’ (derek) revelado, presenteado [...] que designa a Lei como dom de Deus”280. De fato a teologia compreende

que Jesus Cristo, o definitivo dom de Deus, é a expressão máxima da revelação deste

Rosto281.

Contudo, entre os cristãos transita certa oposição ao modo judaico de compreensão da Lei e consequentemente de vivência da Torá.. A judia Catherine Chalier e o cristão Marc Faessler, ao tratarem esta temática afirmam que o apego exagerado às leis e preceitos por parte de certos grupos deveria ser lido na chave das vicissitudes ou contingências históricas

282. Chalier afirma ainda que certa ideia de oposição entre observância da Lei e salvação pela

fé serviu, “desde os primeiros cristãos, para valorizar a mensagem de Jesus em detrimento da religião judaica e, logo, a proclamar caduca a constância na obediência às prescrições do Pentateuco” 283.

No entanto o que se verifica é que para o judaísmo a Lei está imediatamente ligada à revelação e à redenção e, com isso, a obediência ao mandamento surge como resposta e adesão a Deus284. Os textos do Talmud demonstram um contraponto entre o legalismo que comumente se atribui aos judeus, presente apenas em determinados grupos judaicos e em certos períodos históricos, e à busca da formação de um caráter íntegro e piedoso que impulsiona a religiosidade judaica. No Talmud tem-se um contato menos com código penal, no sentido moderno deste termo, que com um instrumento flexível de jurisprudência bíblica285. Em seus textos constata-se que o judaísmo se define entre as “menos dogmáticas das religiões, buscando reagir de maneira sensível e humana às exigências da vida em

278 Cf. Ibidem, p. 147.

279 Cf. LEVINAS, Emmanuel. Entre nós, p. 176.

280 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Bíblia e moral: raízes bíblicas do agir cristão, n. 20. 281 Ibidem, n. 41.

282 Cf. CHALIER, Catherine. FAESSLER, Marc. Judaisme et Christianisme: L’ecoute em partage. Paris: Cerf,

2000. Apud: DOUEK, Sybil Safdie. Paul Ricoeur e Emmanuel Levinas, um elegante desacordo. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 316.

283 Cf. Ibidem, p 315.

284 RIBEIRO JUNIOR, Nilo. Sabedoria de amar, p. 11. 285 AUSUBEL, Nathan. Conhecimento judaico II , p. 854-857

transição”286, a partir da experiência do encontro entre o povo judeu e o Deus da Aliança.

Deus este, cuja voz no Sinai diz “não matarás” (cf. Ex. 20,13) e que pede especial atenção aos desfavorecidos, representados nas figuras do órfão, do estrangeiro e da viúva (cf. Dt 14, 29). Emmanuel Levinas assim exprime as consequências da relação entre o povo eleito e seu Deus: “cada rosto é um Sinai que proíbe o assassinato”287.

O filósofo medieval e rabino Maimônides, bastante recordado no ambiente judaico, afirmou que, diante das 613 leis, mandamentos e preceitos, “as recompensas da salvação, só seriam obtidas por aquele que, mesmo cumprindo só uma das 613 Mitzvot, tivesse impelido a cumpri-la não por interesse próprio, mas por ela mesma, com um sentimento de amor” 288.

Na cultura judaica, este primado do amor como responsabilidade ética não é uma referência exclusivamente étnica. Em um trecho do Talmud Babilônico se lê: "Quem te disse que o teu sangue é mais vermelho que o dele? Talvez o sangue do outro seja mais vermelho que o teu... é preferível morrer a matar outro homem” 289.

Para os judeus, e assim é também para Levinas, a Lei está irremediavelmente relacionada à justiça. O imperativo “não matarás”, ou os clamores bíblicos em relação ao

órfão, o estrangeiro e a viúva, entre outras expressões da Lei, colocam a vida humana e a responsabilidade por ela no centro de todo discurso e toda vivência moral. Levinas se refere como sendo uma convocação, ou súplica, à responsabilidade que surge a partir de outrem, caracterizando-a como palavra de Deus290. O filósofo toca assim no âmago da concepção judaica que percebe a Lei como a obrigação de ser responsável pelo outro291. A este respeito, esclarece Levinas, para o judeu, a Revelação é o amor que espera uma resposta, resposta que se traduz no amor do homem ao seu próximo292.

286 Ibidem, p. 857.

287 LEVINAS, Emmanuel. Apud: RIBEIRO JUNIOR, Nilo. Sabedoria de amar, p. 245. 288 AUSUBEL, Nathan. Conhecimento judaico II, p.566.

289 Pessachim 25b. In: WEITMAN, Y. David. A arte de ser mais gente. São Paulo: Editora Maayanot, 2009. 290 Cf. LEVINAS, Emmanuel. Entre nós, p. 176.

291 Cf. RIBEIRO JUNIOR, Nilo. Sabedoria de amar, p. 110.

292 Cf. LEVINAS, Emmanuel. Apud: Op. cit., p. 318. Um exemplo deste sentido de alteridade em relação à Lei

nos textos sagrados judaicos, se encontra nas mishnás 1,14; 2,17; 3,16; 4,1; 5,9; 5,13 do Pirkê Avót, do Talmud de Jerusalém (a numeração descreve o capítulo e a mishná indicada separados por vírgula). Estes textos se encontram citados e comentados em BUNIM, Irving M. Ética do Sinai. São Paulo: Editora Sefer. 5ª Edição, 2012.