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2. Pelos caminhos da Residualidade rumo à Compadecida

2.2. A Residualidade e algumas confinações

2.2.2. Residualidade versus Intertextualidade

Neste tópico faremos uma abordagem inicial dos estudos da intertextualidade. Posteriormente, reforçaremos a distinção entre intertextualidade e residualidade.

Foi a lingüista e semióloga Julia Kristeva quem, fundamentando-se nos estudos de Mikhail Bakhtine sobre as relações dialógicas entre textos, designou intertextualidade a esse dialogismo textual.148

Partindo das análises de Kristeva, Vítor Manuel de Aguiar e Silva apresenta “interação semiótica de um texto com outro(s) texto(s)”149 como definição de intertextualidade.

A lingüista Ingedore G. Villaça Koch, em entrevista concedida em 02 de maio de 2007 a José Anderson Sandes, editor do periódico Diário do Nordeste, salienta que “a

145 O poema de Bandeira está incluído no livro O Ritmo Dissoluto, publicado em 1924, ao lado de A Cinza

das Horas e Carnaval, num volume cujo título geral é Poesias.

146 PONTES, Roberto. Em torno de um resíduo: Santa Maria Egipcíaca. In: 2º Colóquio do PPRLB -

Relações Luso-Brasileiras; deslocamentos e permanências, Rio de Janeiro, 2004. Programação das Sessões Simultâneas no Liceu Literário Português & Caderno de Resumos. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2004.

147 Idem, Ibidem. 148

Idem, Ibidem.

149 SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8ª ed. Vol. I. Coimbra: Livraria Almedina, 1996,

intertextualidade no sentido estrito é quando se menciona no espaço de um texto um outro já produzido”. E acrescenta já ter apontado dez ou doze textos cujos sentidos foram tirados de versos da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. “Encontramos estas marcas em Casimiro de Abreu, Murilo Mendes, José Carlos Paes (sic). Nestes casos, é proposital a presença do texto do outro. É o que chamo da intertextualidade possível ou o diálogo possível”150, diz a lingüista. E para ilustrar suas palavras, relembremos o poema de Gonçalves Dias e trechos de alguns outros que com ele dialogam:

Gonçalves Dias: Canção do Exílio (Coimbra,1843)151 “Kennst Du das Land, wo die Citronen blühen

Im dunkein Laub di Gold-Orangen glühen, Kennst du es wohl? Dahin, dahin!

Möcht’ich… Ziehn.” (Goethe)

Minha terra tem palmeiras Onde canta o Sabiá: As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossas vidas mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá: Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar — sozinho, à noite — Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que eu desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.

150 KOCH, Ingedore G. Villaça. “Não existe nada totalmente novo sob o sol. Nunca somos originais”.

Entrevista com para o Caderno 3 do Diário do Nordeste, edição de 02 de maio de 2007. Fortaleza: Ed. Verdes Mares, 2007. Matéria assinada por José Anderson Sandes.

151 DIAS, Gonçalves. Poesia Completa e Prosa Escolhida. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar Ltda, 1959.

Casimiro de Abreu: Exílio (Lisboa, 1855) 152

[1ª estrofe]

Eu nasci além dos mares: Os meus lares,

Meus amores ficam lá! — Onde canta nos retiros Seus suspiros,

Suspiros o sabiá.

Oswald de Andrade: Canto de regresso à Pátria (1925)153

Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá. [...]

Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo.

Carlos Drummond de Andrade: Nova Canção do Exílio (1945)154

Um sabiá

Na palmeira, longe. Estas aves cantam Um outro canto. [...]

Ainda um grito de vida e voltar Para onde tudo é belo

E fantástico: A palmeira, o sabiá, O longe.

Mário Quintana: Uma Canção (1962)155

Minha terra não tem palmeiras... E em vez de um mero sabiá, Cantam aves invisíveis Nas palmeiras que não há.

Murilo Mendes: Canção do Exílio (1930)156

Minha terra tem macieiras da Califórnia Onde cantam gaturamos de Veneza [...]

Nossas flores são mais bonitas Nossas frutas mais gostosas Mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

152 ABREU, Casimiro de. Obras completas de Casimiro J. M. de Abreu. Livro primeiro. Colligidas e

anotadas por J. Norberto de Souza. 5ª ed. mais correcta e augmentada. Rio de Janeiro/ Paris: H. Garnier Livreiro-editor, 1877, p. 157.

153 ANDRADE, Oswald de. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 154

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record, 1987. 155 QUINTANA, Mário. Poesias. Porto Alegre: Globo, 1962.

E ouvir um sabiá com certidão de identidade!

José Paulo Paes: Canção do Exílio Facilitada (1973)157

Lá? Ah! Sabiá... Papá... Maná... Sofá... Sinhá... Cá? Bah!

Joaquim Osório Duque Estrada: Hino Nacional Brasileiro (1909)

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos, lindos campos têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida

Nossa vida, no teu seio, mais amores.

O dialogismo entre os referidos textos é considerado intertextualidade poética por Leyla Perrone-Moisés. A autora inicia o artigo “A intertextualidade crítica”158 perguntando se “poderá haver uma verdadeira intertextualidade nesse discurso entre textos que é a crítica”. E dá uma resposta:

Em princípio, a crítica sempre foi intertextual (...). Sempre se tratou de escrever um texto sobre outro texto, um texto que dialoga com outro. Assim, mesmo no caso mais simples (evidentemente hipotético, como todas as “formas simples”), há no discurso crítico um entrecruzar de dois textos, o texto analisado e o texto analisante.

Em seguida, a autora faz uma diferenciação entre intertextualidade crítica e intertextualidade poética, no intuito de responder à indagação posta no início do texto:

A primeira evidência é que a intertextualidade crítica é declarada (...), enquanto a intertextualidade poética pode ser tácita. O crítico declara (confessa) que escreve sobre uma ou várias obras. (...) O crítico é alguém que entra em propriedade alheia (...) e isso pressupõe o respeito de certas regras (...).

157

PAES, José Paulo. In: Meia Palavra. São Paulo: Cultrix, 1973.

158 PERRONE-MOISÉS, Leyla. “A Intertextualidade Crítica”. In: Poétique – Revista de teoria e análise

Ora o escritor passeia pelos territórios da literatura com uma desenvoltura que não é permitida ao crítico: nada declara, pode dialogar com escritores sem os chamar pelo nome, utiliza os bens alheios como se fossem seus.

A intertextualidade pode ser de forma ou de conteúdo. Ocorre a intertextualidade de forma quando o autor repete expressões, enunciados ou fragmentos de outros textos. Já a intertextualidade de conteúdo ocorre quando há indicação do texto-fonte, citações e referências, resumos e resenhas, traduções etc.

A intertextualidade se refere ao conhecimento prévio de outros textos. O nível intertextual é um reflexo da bagagem de experiência e cultura do escritor e do leitor. Compreende a inter-relação da temática de um texto com outros, de modo semelhante ou divergente.

Portanto, há intertextualidade quando Ariano Suassuna afirma ter-se baseado em romances e histórias populares do Nordeste brasileiro: O Castigo da Soberba, O

Enterro do Cachorro e História do Cavalo que Defecava Dinheiro, inclusive

transcrevendo trechos desses três folhetos como epígrafes do Auto da Compadecida. No entanto, quando ele fala de sua surpresa ao descobrir que uma história semelhante ao

enterro do cachorro tinha sido usada por Cervantes no capítulo intitulado “As bodas de

Camacho”, de Dom Quixote, já está na área da residualidade, pois este é um tema que

remanesce de uma época anterior.

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