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Resistência, campesinato e produção do lugar

CAPÍTULO 04: Tecendo territorialidades: família, festas e histórias

4.1 Resistência, campesinato e produção do lugar

Ao longo dos capítulos que se seguiram foi possível perceber que as temáticas discutidas giram em torno de elementos, dinâmicas e práticas articuladas pelos moradores de Pinhões na 'produção do lugar', significadas pela Associação Cultural das Mulheres como dimensões fundamentais da ‘cultura com aspas’ (CUNHA, 2009) e que fazem de Pinhões uma comunidade. Elementos e dinâmicas que revelam um exercício de resistência e autonomia, histórica e cotidianamente fundadas, formas não institucionalizadas ou racionalmente planejadas de manejo social, que evitam um confronto direto e aberto com segmentos dominantes (SCOTT, 1985), mas que nem por isso deixam de se manifestar como resistência. Podem ser identificadas como "formas não institucionalizadas e não coordenadas de resistência, marcadas por práticas informais que enfatizam a experiência e não a ação coletiva declarada" (OLIVEIRA, 2008, p.11). Uma resistência que, por seu caráter cotidiano atribuído às dimensões da prática e da experiência historicamente constituídas, pode ser tomada, como muito bem ressaltado por Oliveira (2008) sobre o aporte bourdieusiano, nas suas análises sobre as práticas de transmissão do patrimônio familiar no Médio Jequitinhonha; são "formas de resistência engendradas a partir de uma espécie de cumplicidade entre as disposições dos atores e as estruturas objetivas que as produzem, resultando em práticas que não têm como finalidade explícita a resistência, embora tal leitura possa se fazer coerente para o analista" (2008, p.11). Assumimos, então, a 'família', nos termos das famílias raízes, segundo definição local, ou como processos de 'familiarização', em nossa perspectiva de análise; e as festas, tomadas como gramática e idioma identitário, como elementos-chave na produção de Pinhões como comunidade, 'localidade'. Entendo ambos como dimensões historicamente forjadas como elos na produção do 'lugar', como experiências e práticas que informam/produzem cotidianamente a comunidade, tecendo territorialidades e historicidades e revelando aspectos de uma luta cotidiana que realiza manejos sociais das estruturas de poder em jogo na condição de ex-escravos que habitam as franjas de duas grandes glebas territoriais configuradas na condição de fazenda, nos termos definidos por Moura (1986):

A fazenda – com a roça e a casa do agregado no seu interior, a terra do sitiante nas suas extremas e a terra de posse nas áreas para onde quer expandir-se – cria diferentes tipos de dependência dessas frações

sociais em face do grande proprietário. Essa dependência, que enredava e enreda os lavradores em relações sociais que envolvem tanto o trabalho quanto outras importantes díades sócio-culturais, como a amizade, o compadrio e o compromisso ritual para com as festas de padroeiro, tem como núcleo a questão de terras dotadas de distintos regimes de apropriação em face da fazenda. (...) Empurrar essas relações sociais para o território do favor e do contrato de trabalho equivale à descaracterização da terra como reivindicação jurídica e política (...). (MOURA, 1986, p. 15 e 16).

Uma condição que orienta a ação social no sentido de um manejo das estruturas de poder e dominação nas relações estabelecidas com a Igreja Católica e com as fazendas, num exercício de produção de Pinhões como 'lugar'/'localidade', como coletividade autônoma. Ou seja, um movimento cotidiano, historicamente constituído e sustentado, que articula dimensões de resistência e autonomia.

Com experiências históricas muito próximas daquelas apresentadas pela literatura antropológica como definidoras de uma condição de campesinato, nossas análises, sobretudo da configuração histórica de Pinhões e das dimensões da 'família', são passíveis de diálogo com a literatura antropológica do campesinato (WOORTMANN;1983;1994; 1998; WOORTMANN; 1990; MOURA, 1986; por exemplo), revelando que essas dinâmicas de 'produção do lugar' não são exclusivas nem tão pouco específicas de Pinhões, o que nos permite falar na existências de um ‘ethos’ camponês em Pinhões. A centralidade da 'família' e do 'parentesco' na composição do lugar (WOORTMANN, 1994), as dinâmicas de expropriação e as relações com a 'fazenda' (MOURA, 1986), além da utilização de termos diretamente vinculados às experiências de campesinidade, como as extremas, os sitiantes e a definição de 'chão de morada', são exemplos das experiências e dinâmicas que comporiam um 'ethos' camponês, além das balaieiras e das estratégias de produção à meia e à quarta, já apresentadas no primeiro capítulo. Assim, ao longo dos anos de ocupação da terra e conformação do povoado e da comunidade de Pinhões, as dinâmicas de expropriação e especulação imobiliária do local foram cada vez mais intensificando a configuração de 'chão de morada' (WOORTMANN, 1983) e obrigando os camponeses a assumir outras atividades como fonte de renda e subsistência, uma vez que as lavouras das 'fazendas' foram sendo substituídas por pastos (MOURA, 1986) e algumas das 'fazendas' transformadas em loteamentos e chacriamentos, que criaram a figura dos sitiantes. Essas dinâmicas históricas não extinguiram as atividades ligadas ao campesinato, mas

dificultaram a sua realização como atividade exclusiva de sustento da 'família', configurando Pinhões como uma localidade com características que transitam entre a ruralidade e a urbanidade. Assim como as balaieiras que produzem e escoam produtos agrícolas por meio de pequenas produções nos quintais das casas, alguns moradores de Pinhões, a fim de manter suas atividades vinculadas ao campo, assumem funções de pedreiros ou vinculam-se a firmas no regime de trabalho de 12 por 36, uma estratégia para manutenção das atividades ligadas ao campo (criação de aves e algumas poucas cabeças de gado para leite e/ou corte, bem como plantio de hortas, pomar, plantas medicinais, etc.) e da aquisição de renda financeira para o sustento da família.

Nesse sentido, as dinâmicas de constituição de Pinhões revelam uma multiplicidade de territorialidades historicamente constituídas que transitam entre as condições de urbanidade e ruralidade, assumindo fluxos, percursos e práticas que fundam territorialidades constituídas pelas dimensões que articulam 'as famílias', as festas, as dimensões do sagrado e as estratégias de subsistência, fundando uma 'localidade' em exercícios de resistência para a produção e reprodução social do grupo. Identificam-se configurações que estabelecem um 'território de parentesco' produzido pelos processos de 'familiarização' que articulam os vários 'núcleos familiares', promovendo 'territórios de parentesco' em múltiplas escalas. Um 'território' de vizinhança articulado na produção da 'localidade', como nos foi possível observar no capítulo dois. Na esteira dos processos de 'familiarização' foi possível observar também a composição de um 'território sagrado', produzido e alimentado pelas festas em devoção aos santos, que assim como a produção de 'territórios de parentesco' se dá em múltiplas escalas, que articulam os territórios, de certa forma nucleares, de cada 'família' na produção da comunidade. Uma composição de territórios que se amarra nos processos de 'familiarização' por meio do compadrio, das trocas de comida e das dinâmicas que envolvem as produções das festas. Sacralizam-se os territórios da 'família' numa devoção ao santo com o qual se construiu uma obrigação e articulam-se essas 'famílias' na produção de um 'território comum' por meio dos percursos e das dinâmicas promovidas pela produção da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Pinhões, como discutido no capítulo três.

Vamos então, neste capítulo, articular as dimensões discutidas na composição da dissertação, a fim de refletir as dinâmicas de 'produção do lugar' e da 'localidade' com os

aspectos do estabelecimento das territorialidades constitutivas de Pinhões. Portanto é importante ressaltar que, assim como as noções de produção do lugar, a noção de territorialidade aqui tomada se pretende processual e dinâmica, articulando-se espaço- temporalmente, de modo que ao tomar a localidade como categoria, como qualidade fenomenológica, assumimos esta como uma dimensão que se realiza. Nesse sentido:

Considero a localidade mais relacional e contextual do que escalar ou espacial. Vejo-a como uma qualidade fenomenológica complexa constituída por uma série de vínculos entre o sentido da imediatidade social, a tecnologia da interactividade e a relatividade dos contextos. Esta qualidade fenomenológica, que se exprime em certos tipos de ação, socialidade e reprodutibilidade, é o principal predicado da localidade como categoria [...] (APPADURAI, 2004, p.238).

A localidade, assim, se produz e reproduz como qualidade fenomenológica de realização da vida, e se faz como aspecto da vida social ao constituir-se a partir de experiências de socialidade. Dizer que a localidade apresenta-se como qualidade fenomenológica é levar às últimas consequências a noção de que o mundo constitui-se a partir e por meio de relações sempre situadas, um mundo de sujeitos e intersubjetividades, sempre passíveis a objetificações, por exemplo, a afirmação da identidade quilombola. O espaço não existe antes de identidades/entidades e suas relações. De um modo mais geral, eu argumentaria que identidades/entidades, as relações ‘entre’ elas e a espacialidade que delas faz parte são todas constitutivas (MASSEY, 2008, p, 30).

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