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Resolução de Disputas sobre Investimentos por Cortes Domésticas

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (páginas 118-123)

9. Acesso à Justiça e Proteção Internacional de Investimentos

9.1. Resolução de Disputas sobre Investimentos por Cortes Domésticas

Antes da difusão das arbitragens investidor-Estado, os investidores internacionais dispunham de poucos métodos para resolução das disputas com os Estados receptores, surgidas no contexto de seus investimentos. Um desses mecanismos – talvez o mais intuitivo deles – era o recurso às cortes domésticas dos Estados para solucionar tais disputas. Nesse sentido, poderiam os investidores recorrer às cortes domésticas do próprio Estado onde se encontravam seus investimentos ou a cortes de outros Estados que, de alguma maneira, pudessem se conectar à sua situação de fato e àquela de seus investimentos. A primeira hipótese aqui aventada – resolução de disputas perante as cortes domésticas do próprio Estado receptor dos investimentos – parece ser a mais recorrente:

Devido à natureza específica das relações em matéria de investimentos entre uma parte privada e um Estado, é provável que estas relações sejam entendidas como tendo vínculos mais próximos com o Estado onde o investimento é feito, ou seja, o Estado receptor. Desta maneira, a maioria das regras de jurisdição aplicáveis irão apontar para as cortes domésticas do Estado receptor como sendo o foro competente para a resolução de quaisquer disputas surgidas de um investimento.247

No caso da utilização de cortes domésticas fora do âmbito do Estado receptor dos investimentos as dificuldades preliminares se mostram ainda mais evidentes. Na ausência de um acordo entre as partes – por meio de uma cláusula de eleição de foro em um contrato entre o investidor e o Estado receptor, por exemplo – as cortes nacionais geralmente entendem ser necessário demonstrar um contato mínimo da situação de fato

247No original: “Because of the specific nature of investment relations between a private party and a State, it is likely that these relations will be held to have their closest connection to the State where the investment is made, that is, the host State. Thus, most applicable jurisdictional rules will point to the domestic courts of the host State as the competent forum for the settlement of any disputes arising from an investment.” REINISCH, August; MALINTOPPI, Loretta. Methods of Dispute Resolution. In MUCHLINSKI, Peter; ORTINO, Federico; SCHREUER, Christoph. The Oxford Handbook of International Investment Law. New York: Oxford University Press, 2008, p. 696.

com suas jurisdições antes de poderem sequer averiguar se uma violação de um acordo com um Estado estrangeiro pode ser indenizada.248

Além disso – e das questões de ordem técnica que serão a seguir analisadas – a utilização das cortes domésticas, sobretudo dos próprios Estados onde se encontram os investimentos, apresenta alguns complicadores de ordem prática:

Primeiramente, dependendo do país em questão, as cortes domésticas podem carecer de independência judiciária e podem estar sujeitas ao controle do governo receptor, privando o investidor de um foro imparcial. Em segundo lugar, mesmo que o judiciário seja independente, este pode, não obstante abrigar preconceitos em relação a investidores estrangeiros [...] Em terceiro lugar, as cortes domésticas podem não ter especialização para aplicar princípios complexos do direito internacional a complexas transações de investimentos estrangeiros. Em quarto lugar, ainda que as cortes tenham tal especialização, a lei doméstica pode limitar ou proibi-las de julgar os compromissos internacionais de seu estado. E, finalmente, as cortes domésticas frequentemente têm uma enorme carga de casos e procedimentos ineficientes que impossibilitam a obtenção de justiça célere e tornam difícil a obtenção de uma decisão final.249

Contudo, não são apenas esses “inconvenientes” que verdadeiramente dificultam o acesso às cortes domésticas para resolução de disputas relativas a investimentos. Conforme será a seguir analisado, existem questões que tocam alguns dos preceitos fundamentais do direito internacional que incidem de forma significativa nesse cenário.

9.1.1. A Doutrina da Imunidade de Jurisdição dos Estados

Ainda que não existisse qualquer dificuldade, insuficiência ou inconveniente na utilização de cortes domésticas para resolução de disputas relativas a investimentos, um

248 SORNARAJAH, M. The Settlement of Foreign Investment Disputes. Kluwer Law International, 2000, p. 341.

249 No original: “First, depending on the country concerned, local courts may lack judicial independence and might be subject to the control of the host government, depriving the investor of an impartial forum. Second, even if the judiciary is independent, it may nonetheless harbor prejudice towards foreign investors […] Third, local courts may not have the expertise to apply complex principles of international law to complicated foreign investment transactions. Fourth, even if courts have such expertise, domestic law may limit or prohibit them from adjudicating their state’s international commitments. And finally, local courts often have a heavy backlog of cases and inefficient procedures that deny expeditious justice and make obtaining a final judicial determination difficult.” SALACUSE, Jeswald D. The Law of Investment Treaties. 2ª Ed. London: Oxford University Press, 2015, p. 397.

aspecto de enorme importância no âmbito do direito internacional, e os obstáculos por ele impostos, teriam que ser levados em consideração no momento de avaliação da utilização das cortes nacionais para disputas dessa natureza. Trata-se da questão da imunidade de jurisdição dos Estados no plano internacional. Não faz parte do escopo do presente trabalho analisar todos os fundamentos e implicações desse conceito, o que mereceria, certamente, esforço de enorme fôlego, sendo, contudo, pertinente, uma breve elucidação a respeito do mesmo, de modo a se contrapor com algumas das características das arbitragens investidor-Estado que serão posteriormente analisadas.

De modo a corretamente compreender a doutrina da imunidade de jurisdição dos Estados é preciso, antes de tudo, ter em mente que o conceito de jurisdição orbita em torno dos princípios de soberania dos Estados, igualdade e não interferência.250 Dessa maneira, a maioria das razões para o exercício ou não de jurisdição podem ser relacionadas com os requisitos, segundo o direito internacional, de respeito à integridade territorial e independência política de outros Estados.251 É nesse contexto que o princípio da imunidade de jurisdição dos Estados pode ser assim conceituado, considerando, inclusive parte de sua evolução histórica:

Imunidade por soberania é uma defesa contra a jurisdição de uma corte. No direito mais antigo, existia uma proibição absoluta para se demandar contra um soberano estrangeiro ou uma entidade soberana estrangeira perante cortes domésticas. Esta regra absoluta foi substituída pela emergência de uma teoria restritiva da imunidade soberana, que confina a defesa a atos puramente de governo por parte dos estados estrangeiros.252

A ideia de imunidade de jurisdição, portanto, se relaciona à noção de que não pode um Estado ser demandado perante cortes domésticas de outro Estado, em respeito à sua soberania e ao princípio de igualdade que rege, de modo geral, as relações internacionais. As origens dessa noção são assim apresentadas por Malcolm Shaw:

250 SHAW, Malcolm N. International Law. 6ª Ed. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 697. 251 SHAW, Malcolm N. International Law. 6ª Ed. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 697. 252 No original: “Sovereign immunity is a plea against the jurisdiction of the court. In earlier law, there was an absolute prohibition against impleading a foreign sovereign or foreign sovereign entity before domestic courts. This absolute rule has been displaced by the emergence of the restrictive theory of sovereign immunity, which confined the plea to purely governmental acts of foreign states.” SORNARAJAH, M. The Settlement of Foreign Investment Disputes. Kluwer Law International, 2000, p. 344-345.

Soberania, até recentemente, era tida como dizendo respeito a um indivíduo em particular em um estado e não como uma manifestação abstrata da existência e do poder do estado. O soberano era uma pessoa definida, a quem era devido fidelidade. Como uma parte dessa mística, o soberano não poderia ser sujeitado a um processo judicial em seu país. Logo, fazia sentido que ele não pudesse ser processado perante cortes estrangeiras. A ideia da soberania pessoal seria, sem dúvidas, abalada se as cortes pudessem exercer jurisdição sobre soberanos estrangeiros. Essa personificação foi gradualmente substituída por um conceito abstrato de soberania do estado, mas a mística permaneceu.253

Em sua construção mais antiga, aproximadamente nos séculos XVIII e XIX, a ideia da imunidade de jurisdição se mostrava bastante abrangente e descomplicada, dando azo ao conceito de imunidade absoluta, pelo qual o soberano era completamente imune às jurisdições estrangeiras, em todos os casos e independentemente das circunstâncias.254

A evolução do direito internacional e o crescimento das atividades nas quais o Estado passou a atuar, criou problemas que, gradualmente, levaram à modificação da regra da imunidade absoluta de jurisdição.255 Com isso, foi-se criando uma abordagem mais restritiva em relação à imunidade de jurisdição dos Estados, sendo esta hoje confinada aos atos puramente de governo e não se aplicando a questões de natureza comercial.256 Desta maneira, “atos do governo em relação aos quais a imunidade se aplicaria são denominados atos jure imperii, enquanto aqueles relacionados a atividades privadas ou comerciais são denominados atos jure gestionis.”257

Contudo, a despeito da aparente diminuição da abrangência da teoria da imunidade de jurisdição dos Estados, resta ainda um grande complicador à submissão

253No original: “Sovereignty until comparatively recently was regarded as appertaining to a particular individual in a state and not as an abstract manifestation of the existence and power of the state. The sovereign was a definable person, to whom allegiance was due. As an integral part of this mystique, the sovereign could not be made subject to the judicial processes of his country. Accordingly, it was only fitting that he could not be sued in foreign courts. The idea of the personal sovereign would undoubtedly have been undermined had courts been able to exercise jurisdiction over foreign sovereigns. This personalisation was gradually replaced by the abstract concept of state sovereignty, but the basic mystique remained.” SHAW, Malcolm N. International Law. 6ª Ed. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 697-698.

254 SHAW, Malcolm N. International Law. 6ª Ed. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 701. 255 SHAW, Malcolm N. International Law. 6ª Ed. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 701. 256 SORNARAJAH, M. The Settlement of Foreign Investment Disputes. Kluwer Law International, 2000, p. 345.

de um Estado à jurisdição de cortes nacionais de outro Estado, que parece não ter sido resolvida de forma homogênea pelas diferentes fontes do direito internacional: a distinção entre atos de governo e atos comerciais, na qual se assenta a teoria restritiva da imunidade de jurisdição dos Estados, tem sido difícil de ser traçada:

A interferência no curso futuro do andamento de investimentos estrangeiros frequentemente se daria por meio de diretivas administrativas ou executivas que são especificamente dirigidas a contratos ou impedem a execução do contrato. Também esses atos devem ser vistos como atos de governo, uma vez que são realizados no curso da execução de deveres de governos. A possibilidade de cortes domésticas exercerem jurisdição sobre tais situações é remota.258

Ao que parece, portanto, mesmo a partir da visão mais moderna da teoria da imunidade de jurisdição dos Estados, que aceita, em tese, que um Estado possa responder perante cortes nacionais de outro Estado por algumas categorias de atos por ele praticados, no âmbito da proteção de investimentos, caracterizar os atos dos Estados como um desses atos pelos quais pode o Estado responder, pode se mostrar tarefa difícil. Desta maneira, em adição às dificuldades e inconvenientes de se resolver uma disputa sobre investimentos em uma corte doméstica, parece provável que tal situação possa encontrar uma barreira quase instransponível, consubstanciada na teoria da imunidade de jurisdição dos Estados.

Por fim, cabe ressaltar que ainda que se pudesse cogitar que a imunidade de jurisdição dos Estados pudesse ser superada e cortes domésticas pudessem enfrentar e resolver questões relativas a investimentos, o mero acesso às referidas cortes não é garantia de que será conferida ao investidor estrangeiro tutela jurídica compatível com o direito internacional. Nos casos em que tal situação ocorre e ao estrangeiro não é garantido o seu efetivo direito de acesso à justiça, origina-se a ideia da denegação de justiça no direito internacional, conforme será a seguir analisado.

258 No original: “The future course of interference in the working of foreign investment would often be through administrative or executive directives which are specifically directed at contracts or hinder the carrying out of the contract. These too must be regarded as governmental acts as they are done in the course of carrying out governmental duties. The possibility of domestic courts exercising jurisdiction over such takings is remote.” SORNARAJAH, M. The Settlement of Foreign Investment Disputes. Kluwer Law International, 2000, p. 348.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (páginas 118-123)