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2. PANORAMA GERAL DA REPARAÇÃO POR ESCRAVIDÃO: ASPECTOS

2.2 Princípios e conceitos legais: o Direito de Reparação, a Responsabilidade

2.2.2 Responsabilidade Internacional do Estado Medidas de Reparação e a

Como visto, o ponto de partida deste trabalho é a premissa da escravidão como crime contra a humanidade, de modo que não há dúvidas de que a reparação é imperativa. Especificamente, considera-se para fins conceituais que a expressão “reparação por escravidão” engloba as diversas facetas que a escravidão manifestou durante séculos, tais como (mas não somente):

a política de comércio de escravos, os atos cometidos durante a execução dessa política (como os horrores da passagem intermediária), a contínua privação de liberdade e o tratamento dos escravos após a chegada ao Ocidente e os efeitos de Escravidão sobre gerações sucessivas sob a forma de desigualdade social e econômica (DU PLESSIS, 2003, p. 625, tradução nossa).

De maneira abrangente, o conceito de reparação em si já “está firmemente estabelecido e ativamente perseguido pelos Estados, em nome de seus cidadãos lesados, contra os Estados transgressores” (GIFFORD, 1993, tradução nossa). A Corte Permanente de Justiça Internacional, no Caso da Fábrica de Chorzow (Jurisdição), asseverou que se trata de “um princípio de Direito Internacional que a violação de um compromisso envolve a obrigação de reparar de forma adequada”. Assim, pode-se dizer que “o princípio da responsabilidade é por natureza uma das normas substantivas do Direito Internacional” e tal responsabilidade diz respeito “aos acontecimentos e consequências dos atos ilícitos e à reparação que tais atos ilegais implicam” (DU PLESSIS, 2003, p. 629, tradução nossa). As medidas de reparação e a

responsabilidade dos Estados no âmbito do Direito Internacional estão previstas nos Artigos sobre Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícito, elaborado pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas em 2001.

Historicamente, o estabelecimento de disputas internacionais tem sido a principal fonte de formação de precedentes e doutrinas relativas às reparações, sendo igualmente verdadeiro que boa parte dos princípios que regem o Direito Internacional Público atualmente são decorrentes das práticas consuetudinárias (dentre as quais, destaca-se o entendimento de que qualquer Estado está impedido de invocar o direito nacional como uma defesa legal em uma disputa internacional em que se alegam irregularidades ou cometimento de ato ilícito por outro Estado). Neste sentido, o trabalho efetuado durante décadas pela Comissão de Direito Internacional (CDI ou Comissão) sobre a responsabilidade do Estado (apresentado na forma de Artigos), elucidou parcialmente as aplicações destes princípios, codificando-os conceitualmente e trazendo-os para a realidade do Direito Internacional tal qual é conhecido hoje. A abordagem da Comissão no que tange à justiça reparatória fundamentou-se na distinção entre restituição, compensação e satisfação que podem ser aplicadas ao caso concreto quer individualmente, quer em combinação23 (FALK, 2006).

O artigo 1o parágrafo 5o do documento editado pela CDI determina que o termo “responsabilidade internacional” abrange qualquer relação que surja, no âmbito internacional, decorrente do cometimento de um ato internacionalmente ilícito por parte um Estado. Tal relação pode se dar entre dois ou mais Estados ou entre um Estado e outros sujeitos – como indivíduos ou empresas.

Entretanto, a dificuldade de perseguir as grandes potências pelos crimes de escravidão na era colonial não pode ser negada. Neste sentido, sobre o desenvolvimento deste conceito de soberania, Antony Anghie (2004) destaca que o colonialismo foi a base sobre a qual fundou-se o Direito Internacional e a doutrina da soberania. Segundo o autor, a retórica da “missão civilizadora” europeia sustentou esse projeto através da imposição de uma diferença cultural imaginada entre os europeus e os não-europeus ou os civilizados e os não-civilizados.

“Esta distinção básica foi reproduzida, em um mundo supostamente não- imperial, nas distinções que desempenham um papel tão decisivo nas

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Especificamente no artigo 34, sob o título Formas de reparação: “a reparação do prejuízo causado pelo ato internacionalmente ilícito assumirá a forma de restituição, compensação e satisfação, quer individualmente quer em combinação”. (INTERNATIONAL LAW COMISSION et al., 2001).

relações internacionais contemporâneas: as divisões entre o desenvolvido e o desenvolvimento, o pré-moderno e o pós-moderno e (…) o civilizado e o bárbaro. O meu argumento é que a ‘missão civilizadora’, a manutenção desta dicotomia - várias vezes compreendida em diferentes fases da história do direito internacional - combinada com a tarefa de colmatar essa lacuna, proporcionou ao direito internacional uma dinâmica que moldou o conceito de soberania - e, mais amplamente, do direito internacional e das instituições” (ANGHIE, 2004, p. 311, tradução nossa)

A concepção de soberania, fundada a partir de uma perspectiva eurocentrista, não considerou as diferenças culturais, antes, foi construída por uma Europa que se identificava como soberana, ao passo que via as diferentes formas de ordem como não-soberanas, não-legais e, portanto, colonizáveis. Assim, “[a] soberania é formulada de forma a excluir o não-europeu e consequentemente, a soberania pode ser implantada para identificar, localizar, sancionar e transformar os incivilizados”. Estas manobras conceituais que excluíam sistemas de ordem não-europeus, foram impostas durante a colonização nos locais onde “a soberania era completamente livre, dirigida e controlada apenas pela ingenuidade de incivilizados”. Assim, a propria criação do Direito Internacional “em seu impulso necessariamente infinito para a universalidade baseia-se na invocação convincente deste ‘outro’”(ANGHIE, 2004, p. 311-12, tradução nossa).

Neste sentido, Anghie (2004, p. 312, tradução nossa) sustenta que o “Terceiro Mundo” é obrigado a lidar com a história colonial do Direito Internacional que “desempodera continuamente o mundo não-europeu”. Conclui-se, assim, que

a história colonial molda a estrutura subjacente da doutrina da soberania; cria, dentro da doutrina da soberania, mecanismos jurídicos (na forma, por exemplo, de doutrina de fontes, doutrina de personalidade, doutrina de consentimento e assim por diante), que resistem a qualquer desafio ao passado colonial e ao papel da soberania dentro dele. Os princípios do direito internacional, como as regras em geral, inevitavelmente têm efeitos diferentes e imprevisíveis em pessoas de diferentes dimensões (…). Essas

doutrinas foram criadas com o propósito explícito de excluir o mundo colonial, ou então, são baseadas em uma exclusão que já foi efetuada –

como quando os juristas positivistas descartam a prática dos Estados orientais ‘não civilizados’ como irrelevantes para a formulação do direito internacional. Essa exclusão, e o imperialismo que promove, constituem em parte a identidade primordial e essencial do direito internacional. (ANGHIE, 2004, p. 312-313, tradução nossa, grifo nosso).

O desempoderamento dos não-europeus pelo Direito Internacional é uma questão substancial que justifica este trabalho, uma vez que o resultado prático obrigatório desta constatação é a dificuldade de se perseguir as demandas de reparação por escravidão e colonização juridicamente nas arenas internacionais.

Dando continuidade a este capítulo, a seguir, apresentar-se-ão as medidas de Reparação apreciadas pelos Artigos sobre Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilícito da Comissão de Direito Internacional da ONU, um instrumento importante para o tema muito embora, frisa-se, também não considera explicitamente as reparações por escravidão e colonização.