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Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava de existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.

Ítalo Calvino

A cidade, para Raban (apud HARVEY 1992), é um lugar demasiado complexo, uma espécie de labirinto ou enciclopédia, um teatro, um empório; “a cidade é lugar em que o fato e a imaginação simplesmente têm de fundir” (RABAN apud HARVEY, 1992, p. 17). A cidade moderna tornou-se o espaço onde as pessoas podiam ser e tinham liberdade de agir, as identidades passaram a ser fluidas, suaves e abertas e, ainda segundo o autor, mais pareciam um teatro, um palco para múltiplos papeis.

Certeau (1994) define a cidade como um espaço por onde circulam multidões, onde os caminhantes, os pedestres, possuem corpos cheios e vazios de textos urbanos que escrevem sem que possam lê-lo. Isso ocorre em um âmbito que ele denomina “down”, abaixo da superfície, de maneira que o que submerge seriam somente os limites que se destacam no visível, “uma cidade transumante, ou metáfora, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível” (CERTEAU, 1994, p. 172).

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Tanto Certeau (1994) como Rablan (1992) apresentam a cidade como um espaço de possibilidades, um lugar aberto e passível de interpretações e encontros, trocas e simbolismos, novos significados e sensações. Se para Geertz as histórias contadas são as nossas próprias construções de outras pessoas, para Certeau (1994) “o ato de caminhar está para o sistema urbano, como a enunciação está para a língua” (CERTEAU, 1994, p. 177). Cada percurso realizado em campo se tornou um enunciado para cada espaço descoberto: novas falas, novos personagens. Caminhar nas cidades estudadas virou conhecimento, pois ao andar, não estava conversando apenas com as pessoas, mas também com o espaço que elas estavam ocupando e com a forma como se comunicavam com ele e, além disso, como comunicavam esses signos através de gestos e palavras e, muitas vezes, sem falar nada, apenas pelos signos vestíveis.

A caminhada afirma, lança suspeita, arrisca, transgride, respeita, etc., as trajetórias que “falam”. Todas as modalidades entram aí em jogo, mudando a cada passo, e repartidas em proporções, em sucessões, e com intensidades que variam conforme os momentos, os percursos, os caminhantes. (CERTEAU, 1994, p. 179)

A cidade e seus caminhantes ressignificam os espaços. O discurso, aqui, cria e, segundo Certeau (1994), dá lugar ao vazio, permite e autoriza espaços, tornando- os habitáveis. Cada um desses espaços ganha uma narrativa e um novo significado de acordo com cada discurso emitido pelos caminhantes que passam pelo espaço. O uso das peças ressignificadas em espaços como a cidade e a rua, dão voz aos espaços, que se somam aos significados primários das peças e possibilitam novas interpretações e significações.

Cada lugar se tornou, conforme Certeau (1994), uma história fragmentada e isolada em si, são tempos que desdobram novas histórias, simbolizações que ganham sentido nos usos e nos significados atribuídos por cada um, de forma isolada, mesmo que reverbere de maneira coletiva. Cada lugar vira um espaço praticado e, a sensação que tenho é de que é possível levar um pouco do terreiro para qualquer lugar em que se esteja, quase como se fosse possível carregar junto o lugar e, embora isso não ocorra, é possível carregar o significado da peça, a lembrança do espaço.

Esses caminhos, nas três cidades, se cruzam em um ponto mútuo: o mercado público, ponto de encontro das cidades, lugar de trocas, de fluxos, geralmente localizados no centro da cidade. Para Silvia Maria Pintaudi (2011), no artigo "Os

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mercados públicos: metamorfoses de um espaço", os mercados públicos, nas cidades ou fora dos seus muros, são espaços de troca necessários à reprodução da vida, nunca são um local apenas de abastecimento de produtos.

Ainda conforme a autora, os mercados públicos foram a forma encontrada pelas cidades, na antiguidade, para o intercâmbio de produtos, e que hoje dialoga perfeitamente com outras formas de comércio, de modo que “Todas as culturas adotaram essa forma de troca de produtos e o fato de se realizar esporadicamente, periodicamente ou de maneira perene e com local apropriado para esse fim” (PINTAUDI, 2011, p. 84). Muitos dos mercados surgiram como feiras que se perpetuaram e acabaram se tornando construções vivas e contínuas das cidades. Para Pintaudi (2011), o mercado público, desde os primórdios do capitalismo, foi uma maneira de centralizar o comércio em um determinado lugar, facilitando assim o controle de entrada e saídas de mercadorias.

Seguindo essa linha de raciocínio, a autora comenta que os mercados públicos e as feiras possuem um valor de tradição e, hoje em dia, têm um significado muito maior do que apenas comercial, até porque existem outras e diversificadas maneiras de comércio. No entanto, os mercados mantêm viva a tradição da cidade, o contato com a memória viva e, no caso das religiões de matiz africana, um contato mais próximo com a ancestralidade, devido ao contato direto com as lembranças e a memória a que o mercado remete: as pessoas que por ali passaram, as trocas e suas histórias. É justamente nos Mercados que o Candomblé pulsa e aparece livremente, sem estar velado em meio a preconceitos e olhares. É como se ali a religião e os sujeitos estivessem em seu espaço, em sua casa, no conforto e proteção da tradição.

O costume de ir ao mercado vira norma, deixa de ser estilo de vida para virar gênero de vida. O espaço do mercado “flexibiliza-se”, ou seja, esse espaço está sendo invadido por um novo momento da história, mais precisamente aquele em que a sociedade está totalmente submetida ao econômico e imprime uma maior velocidade às vendas. Primeiros símbolos de uma natureza dominada, os mercados se nos afiguram hoje como elementos que nos aproximam dela por intermédio da cultura, através da qual se viabiliza a rentabilidade imediata do capital. (PINTAUDI, 2011, p. 98)

Os mercados públicos se ressignificam como espaços simbólicos e espaços de troca, onde a cidade contemporânea não perde o seu contato ancestral e tradicional. Eles permitem que as pontes, mencionadas por Bhabha, ultrapassem as barreiras e as fronteiras temporais e deem uma nova significação aos espaços. Além disso, os

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mercados acabaram sendo muito significativos como pontos e espaços de encontro de pessoas com a cidade e com elas mesmas. Era como se cada mercado pudesse contar a história das pessoas por meio de narrativas vividas na cidade, no perambular das ruas, no entorno das memórias e no encontro com os questionamentos. O mercado uniu e possibilitou que cada sujeito ultrapassasse as barreiras da cidade e da religião, desvelou as pessoas, as tradições e uniu esses personagens em muitas narrativas de uma mesma história, a ressignificação.