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RESSURREIÇÃO

No documento ASCESE MÍSTICA PRIMEIRA PARTE (páginas 33-35)

É realmente trágico alguém sentir em si mesmo este desfa- zimento físico, ver diante de si ainda um imenso trabalho e vi- ver ansiosamente, no temor de que lhe venham a faltar as for- ças. E ter que consumir-se no trabalho humilde e pesado que a vida impõe, e ter que esbanjar-se a mãos-cheias na luta estúpida a que o constrange a filosofia dos demais. A natureza humana é lenta e preguiçosa; arrasta-se a custo e segue de má vontade. Tem a teimosia do asno, tem todos os vícios, a inércia e a fra- queza da animalidade. A matéria é sombria, não compreende. O inimigo está dentro de mim. O meu corpo é um meu irmão me- nor, que arrasto atrás de mim, com coragem e esforço E, no en- tanto, tenho de lhe dar o que ele precisa, para que dê seu rendi- mento. Às vezes, lhe digo: “Ponhamo-nos de acordo irmão! Não me dê atribulações inúteis! Vamos! Vença o peso de sua matéria, e caminhemos juntos”. Mas ele para, tropeça, não aguenta. Dorme facilmente, e não sonha senão com curtas e fá- ceis descidas. Cada vibração de entusiasmo, cada arrepio de al- ta paixão, todo o incêndio do meu espírito se desfaz rápido nes- se meio denso e inerte. Que luta entre o espírito ativo e a carne inimiga e sonolenta, que condena estas relações intolerantes en- tre ambos! A animalidade pretende impor a todo o ser a sua lei, e o espírito se atormenta para impor seu dinamismo. Onde um é ardente, o outro é glacial. Pobre companheiro embrutecido! Meu espírito espera tranquilamente tua aniquilação, para reali- zar seu sonho de fuga. Pobre corpo! Não és feito para voos. Corres e ficas verdadeiramente extenuado! Consomes-te nesta marcha absurda, que não é feita para ti. Eu bem o sei! O edifí- cio orgânico não suporta tão intensos e rápidos desenvolvimen- tos dinâmicos, tais tempestades de concepção, tais fulgurações de paixões. Vejo-o às vezes tombar, dominado de exaustão do- lorosa, mas o espírito é insaciável, sem piedade. Esquece-o até que ele chegue a extremos intoleráveis, e então a alma, também sofrendo, observa a sua dor, acaricia-o, e ele se acalma; acom- panha-o na marcha, coloca-se ao seu flanco e leva-o junto, co- mo um irmão. E a matéria opaca se ilumina de sacrifício, es- plende nos reflexos do espírito e, em longa agonia, se oferece em holocausto ao triunfo do irmão maior, porque sabe que ele é o único e legítimo herdeiro de sua síntese de vida e que a ele

pertence o futuro; sabe que esta é a Lei: pelo aniquilamento da vida física nasce e cresce a vida espiritual.

O corpo não pode viver nas altas temperaturas que o espírito atinge em contato com o divino; naquela altíssima tensão, as fi- bras humanas se rompem; naquele fogo espiritual, o corpo arde e se consome rapidamente; brilha subitamente numa chama vio- lenta e se aniquila. No entanto, se é vencido ou triunfa, se morre ou revive, se sofre ou é feliz, é belo. Ao declinar das forças físi- cas, o canto sobe do fundo da alma, cada vez mais doce, mais sutil, mais belo. Afina-se pela dor, harmoniza-se com a harmo- nia do universo, conquistando novas ressonâncias em sintonia com o infinito. É intuitivo que certas elevações espirituais, cer- tas realizações supremas não possam ser alcançadas senão à cus- ta de repercussões no estrato inferior do próprio ser. É lógico que toda a unidade da pessoa seja arrastada no turbilhão da asce- se. Só a morte, com sua proximidade, pode dar ao espírito certa luminosidade. Só um corpo quotidianamente açoitado pode faci- litar certas transparências próprias da última purificação. Os que leem não podem saber de que sulcos de tormento desponta esta nova flor de vida; de que destruição humana nasce a amplitude conceptual e passional que alimenta certos trabalhos literários; de que massa de vida se deve dotar a palavra, para que seja quente e ativa. Não pode compreender que bases de angústia sustém o ímpeto festivo e exuberante da criação.

Conheço esse tormento e o aceito. Cada volume me parece o último, mas sei que haverá outro amanhã, embora hoje o ig- nore. E retomarei o livro de minhas confissões; diante de mim, uma resma de folhas em branco; dentro de mim, a minha pai- xão. Viver, evoluir, escrever. Caminha, caminha! E esta fatal caminhada não cessará senão pela extrema exaustão. O futuro é infinito; diante do eterno amanhã, todo o passado é sempre um prelúdio. Conheço o tormento da criação, mas torno a dar-me, torno a abandonar-me àquela febre que me dá a vida e a morte, que me eleva e sustém na sublime exultação das intensas reali- zações e que, no entanto, me destrói e me foge do corpo. Este trabalho me despedaça, mas eu abro para o mundo uma nova janela no céu, e o espírito vence. É a sua hora.

Estou falando de morte e devia falar de vida; continuo olhando a terra enquanto o céu me chama. Este estado não é fim, mas começo; não é poente, mas alvorada; não é derrota, mas triunfo. Esta é a maravilhosa realidade que eu vivo, e hei de gritá-la cada vez mais alto. Ouça-me o leitor. Minha alma já está além da vida. Escrevo diante de Deus e da morte, nu diante de tudo o que foi criado e me vê. Não pode ser mentira. Perso- nifico, neste momento, o fenômeno apocalíptico da minha grande revolução biológica e o apresento no momento decisivo de sua maturação, carregado dos aspectos mais ricos, vivos em mim no mais forte contraste de forças antagônicas. Estamos no centro do drama. A besta e o anjo que vivem em mim empe- nham-se nos últimos assaltos. As forças da vida apertam o cer- co fatal, e todo um processo se fecha; longa travessia de milê- nios, lenta e dolorosamente seguida, se precipita num instante que tudo refaz, contém e justifica. Aqui está em mim o supremo drama humano de uma vida que se extingue; aqui está em mim o supremo drama divino de uma vida que ressurge. O sacrifício humano foi imenso, mas o resultado final do meu trabalho su- perou toda a minha expectativa. Não vem a mim apenas a luz do mistério; vem a meu encontro o amor de Deus.

Tenho a sensação de que profundos abalos se dão em mim, como se planos inteiros da minha consciência se desmoronas- sem. E, no fundo das ruínas, encontro ressurreições estupefaci- entes. Aquelas prostrações são a condição de reações profundas, que têm a virtude de trazer à luz o mistério da alma, de fazer pe- netrar o meu eu consciente nas camadas profundas. Procedo por mergulhos no abismo e ressurgimentos, como as ondas do mar, e destas grandes oscilações nasce um poder sempre maior do es- pírito. Vivo lentamente, saboreando-o e controlando-o, minuto a

minuto – o fenômeno da morte orgânica e da ressurreição espiri- tual. No aniquilamento do corpo, a crosta opaca que me aprisio- na o espírito se faz cada vez mais diáfana; na exaustão física me chega, então, e ouço-o cada vez mais límpido e mais distinto, o cântico que se eleva além das limitações. Insaciável, torno a es- cutar e a ouvir, para trabalhar e para sacrificar-me ainda, até ao último alento de minha paixão Ouço um martelar taciturno e in- cessante sobre a bigorna da minha dor. Mas cada golpe acorda nas profundezas uma ressonância nova, como o eco divino. A cada golpe se rasga um pouco a minha alma e das feridas lampe- ja luz. Ouço um cortejo sempre mais frequente de golpes e de respostas, com uma fatal aceleração de ritmo; amo e abraço mi- nha dor, que me abre as portas. A cada instante, mais me inebrio ao sentir que, além do sensível e concebível, uma pulsação nova e maravilhosa bate e responde. Cada pingo de tempo rasga um véu e destrói um obstáculo. Avanço, mas tenho medo, e me an- gustia este progressivo diminuir da distância. Mas estou em marcha e não posso deter-me. Não se interrompe um fenômeno desencadeado. Tudo converge para a unificação. Caem, um a um, os últimos diafragmas. Sinto adelgaçar-se a parte sensorial que ainda me detém. Que existirá ainda? Desfazem-se os últi- mos liames. Darei um salto e cairei nas chamas.

A fonte das emanações noúricas, da qual captei uma vez os meus registros inspirativos, era uma estrela brilhante e longín- qua que me olhava do céu. Mas o transmissor aproximou-se do receptor, que, ao longo daquele raio, se encaminhou para o céu. Agora, a estrela, sempre mais próxima, se tornou imensa, a ponto de invadir e ocultar todo o meu horizonte. Aquele fio de fria concepção aqueceu-se e tornou-se um incêndio. A luz trê- mula de uma estrela longínqua é agora um flamejar de meteoro flamejante que me atrai ao seu campo de ação e me envolve numa tempestade de forças. Sinto-o chegar, raptar-me e me ab- sorver, como uma labareda imensa, à qual não posso fugir. Quereria, mas é tarde. Quereria escapar a este último aniquila- mento, e não sei. Sinto-me preso em sua órbita; a minha massa é lançada e a trajetória se restringe. Perder-me-ei naquela luz e nem me reconhecerei a mim mesmo. Aperta-me a alma um abraço imenso, ouço as pulsações de meu coração ecoando pelo universo, e em cada ângulo do infinito responde uma palpitação fraterna. É um amor novo, inextinguível, sem fronteiras, que se recurva sobre todas as almas irmãs. É uma vida tão vasta que revive na vida de todos os seres.

Fenômeno de força astronômica. Compreendo que é uma enormidade falar de mim mesmo nestes termos. Mas, nesse fe- nômeno, me anulo. Eu o sei. Aqui em baixo, sempre se receia que o nosso semelhante seja maior do que nós. Mas não falo de minha grandeza – falo da grandeza de todos. Todos podem subir e subirão, fatalmente. Dos meus conceitos muito pouco atribuo a mim mesmo – nada mais que o esforço de ir colhê- los. Se assim falo de mim, é porque o meu eu é apenas uma centelha de vida no seio de Deus, é uma força que não pode ser separada do universal organismo. Falo, portanto, de mim e de todos, porque neste plano não se fazem distinções. Em suma, o meu novo amor me leva a falar, para guiar à libertação aqueles que sofrem. A minha experiência é perturbadora para mim. E é humano gritar a própria alegria suprema, a vitória do espírito pela qual se lutou e gastou uma vida. É humano, para quem superou o terror dos abismos e a amargura de todas as ilusões, dizer ao irmão ainda inexperiente: “Vê! Esta é a vida! Assim te falo, porque assim vivi. Pode ser que a minha verdade te con- venha”. E como posso recusar-me a alegria de evitar um peri- go aos outros, de poupar uma dor aos demais? Eu também es- tou ligado a esta lei de coesão universal, que traz unidos os mundos bem como as almas; aquele que evolui sente necessi- dade, para poder gozar de sua evolução, de voltar-se para trás e comunicá-la aos próprios irmãos. Alegria isolada não é jamais alegria: o amor é a grande lei da vida.

No documento ASCESE MÍSTICA PRIMEIRA PARTE (páginas 33-35)

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