• Nenhum resultado encontrado

O gosto romanista de D. Catarina expressa menos uma sua apregoada austeridade de gosto e, sim, uma inequívoca admiração pelo romanismo imperante, tese que importa ser melhor desenvolvida. Em Belém é o

Maneirismo romano que impera, tanto no cadeiral do coro (com lavor de marcenaria por Diogo de Carca e Filipe de Vries, 1550-1552, bem como a escultura de Cristo, pelo último)36, como nos baixos-relevos do cruzeiro

(em scicciato italiano de autor desconocido), como nos altares do claustro (obras perdidas, confiadas aos pintores Campelo e Gaspar Dias), na no- tável decoração pétrea da platabanda do claustro (c. 1542-1548, dirigida por Diogo de Torralva, com tondi, troféus, centauros, máscaras, cartelas e grottesche) e na original “traça” miguelangelesca da capela-mor, do arquitecto Jerónimo de Ruão, que tantas expectativas criou a Filipe II, ao ponto de solicitar aos seus agentes em Lisboa que lhe levassem um debuxo fiel...37 É a bella maniera de Roma que perpassa nos programas

artísticos de Santa Maria de Belém no tempo de D. Catarina, mostrando uma clara internacionalização da arte portuguesa de então, em unísono con os passos em favor de um absolutismo ibérico centrado na figura da Raínha.

O programa definiu para a fiada superior do retábulo tres cenas da Paixão de Cristo e para a inferior uma Adoração dos Reis Magos triparti- da. Perdeu-se a tábua central da fiada inferior, como se sabe, aquando da colocação o sacrário de prata, obra do ourives João de Sousa, em tempo de D. Afonso VI. Como se sabe, D. Catarina discutia desde 1568 o modelo a seguir: se devia optar por uma pintura “incorruptivel”, ou seja, sobre pedra negra de Génova, a exemplo do que, com tanto sucesso, fizera Sebastiano del Piombo, ou se painéis sobre madeira adaptados à super- fície curva da ousia, hipótese que acabou por prevalecer, recorrendo-se ao pintor Salzedo.

A Raínha, apesar do que também se tem dito, estimava a asrte da Pintura: além de estar ligada à encomenda de retratos da sua corte ao célebre Anthonis Moro, em 155238, a Francisco de Holanda, em 1554,

36. Cf. Sylvie DESWARTE, “Francisco de Holanda e o Mosteiro de Santa María de Be- lém”, Jerónimos - quatro séculos de pintura, exposição, 1994, p. 57; Diogo Maleitas CORREIA, O Cadeiral do Mosteiro dos Jerónimos, entre o Humanismo e a Contra-Re- forma, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002; António de ORIOL E TRINDADE, Capela-Panteão de Santa Maria de Belém ao Real Mosteiro de Sao Vicente de Fora, tese de Mestrado, Faculdade de Letras de Lisboa, 2002.

37. Carmen ALMADA ed alii, cit., pp. 15-77.

38. Cf. Annemarie JORDAN-GSCHWEND, Retrato de Corte em Portugal. O Legado de Antonio Moro, cit.; Agustín BUSTAMANTE GARCÍA, La Octava Maravilla del Mun- do: estudio histórico sobre El Escorial de Felipe II, Madrid, Editorial Alpuerto, 1994;

ao flamengo Joozis van der Straeten (Jorge de Estrada), em 1556, e a Cristóváo de Morais, en 1571, possuía una galería de retratos de pode- rosos do seu tempo e reuniu no Palácio real, aos modos de um Rudolfo II de Praga, uma gallerietta de peças extravagantes, e sempre tomou conselho de seu sobrinho Filipe II em negócios artísticos. A sua capela- panteão de Belém, uma das obras-primas da arte maneirista europeia, será aliás alvo de elogio por D. Juan de Borja, embaixador espanhol em Lisboa, como “capilla de admirable piedra colorado, pardo, verde y blanco

y de columnas de marmol blanco, y el suelo de piedras de las mismas colores com quatro sepulturas puesta cada una sobre dos elephantes”, y con “un muy grande retablo y vidrieras que mandó traer de Venecia para

las ventanas de vidrio christalino”39.

O desejo de internacionalizar o modelo da capela exigiu contac- tos na corte madrilena, e em Janeiro e Fevereiro de 1568 seu sobrinho Filipe II discutia consigo algumas hipóteses de nomes para a pintura do retábulo, através de cartas trocadas com o embaixador D. Francisco Pereira em que surgem os nomes de Franz Floris (excluído por haver dúvidas sobre a sua fidelidade católica), Gaspar Becerra (entretanto falecido) e o fresquista genovês Francesco de Urbino (mais habilitado nessa modalidade que na de óleo). A Rainha decidiu pelo seu pintor Salzedo. Tinha bons artistas ao seu serviço na corte e não precisava de recorrer a intervenção externa. O projecto de Salzedo, aliás, assegurava a modernidade requerida. Em Junho de 1571 a pintura estava avançada e a Rainha ordenava para Roma, através do embaixador D. João Telo de Meneses, a compra de tintas requeridas, incluindo o raro “azul ultrama-

rino”, pigmento essencial para se ultimar a obra, e que se pedia com a maior brevidade. Noutra carta enviada ao mesmo embaixador, a 6 de Dezembro de 1571, a rainha trata não só de um retrato do malogrado D. Sebastião que se ia pintar (por Salzedo ?), mas também das cores do

“azul ultramarino” que tinha solicitado para as tábuas de Belém, conti- nuando a faltar a “laca”, que voltou a pedir. Em Outubro de 1572, enfim, toda a obra da capela-mor, retábulo incluído, estavam prontos, sendo solenemente inaugurada, seguindo-se a traladação dos ossos dos reis da dinastia Avis-Beja para o novo espaço. Sabemos por um relato anónimo

Fernando BOUZA ALVARES, Palabra y imágen en la Corte. Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro, Madrid, Abada editores, col. Lecturas, 2003; Fernando MARÍAS, “Revisando a Antonio Moro, entre España y Portugal”, Actas do Simpósio Internacional El modelo italiano en las artes plásticas de la Península Ibérica durante el Renacimiento, 2004, coood. de Maria José Redondo Cantera, Universidade de Va- lladolid, pp. 11-52.

39. Cf. DESWARTE-ROSA, Ideias e Imagens em Portugal na Época dos Descobrimentos. Francisco de holanda e a teoria da arte Lisboa, Difel,1992, pp. 40-67.

que narra o “traslado de los cuerpos de los reyes”, guardado no Archivo de Simancas que o recinto foi consagrado por D. Jorge de Ataíde, bispo de Viseu, em festiva cerimónia a que assistiu toda a corte portuguesa e, entre otras dignidades estranjeiras, o embajador D. Juan de Borja, com missa celebrada pelo Cardeal-Infante D. Henrique e sermão pre- gado pelo teólogo Diogo de Paiva de Andrade. Adivinha-se a admiração havida na ocasião para com o retábulo de Salzedo, recém-exposto na capela-mor que se inaugurava.

Com a crise sucessória de 1578-1580 e o início da Monarquias Dual, a capela-panteao dos Jerónimos tende a perder importância políti- ca, o que explica que, prevalecendo os critérios de decorum estabelecidos pela Contra-Reforma, e dada a flagrante audácia compositiva das tábuas