• Nenhum resultado encontrado

TEXTOS EM TORNO DE ‘SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRAMORAL’

1.2 Da retórica

De modo geral, a retórica é vista com tons pejorativos, algo que vai do ornamento linguístico à intenção de ludibriar o interlocutor. Nas palavras do próprio Nietzsche: “Chamamos ‘retóricos’ um autor, um livro, um estilo, quando notamos neles uma aplicação constante de artifícios do discurso – e isso sempre com uma nuance pejorativa. Pensamos que não é natural e que dá impressão de algo forçado”90. Todavia, essa visão tem sido, aos poucos, revertida recentemente, sobretudo a partir da publicação, em 1958, de "Tratado da Argumentação - a Nova Retórica", de Charles Perelman e, posteriormente, na década de setenta e oitenta, com os estudos de Michel Foucault e Jacques Derrida. Vale ressaltar que o próprio Nietzsche, no final da década de sessenta e início da década de setenta do século XIX, debruçando-se sobre as questões da linguagem, enfatizou a importância da retórica. Mais do que isso: como veremos, para Nietzsche, a retórica é a própria essência da linguagem. Segundo Tito Cardoso Cunha, em prefácio à edição portuguesa dos cursos de retórica que Nietzsche proferiu entre 1872 e 1874, a história, o passar dos anos, empobreceu a retórica, ou melhor, reduziu seu papel a adorno da linguagem. Uma das tarefas de Nietzsche nestes cursos é, de certa forma, resgatar a memória de uma retórica original como teoria da argumentação.

Vale destacar que o contexto social, histórico e cultural foi decisivo para o florescimento da retórica na antiguidade grega. É nesse sentido que Nietzsche escreve, logo no início do seu texto, que a retórica “é uma arte essencialmente republicana: tem de se estar habituado a suportar as opiniões e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradição”91. Em outras palavras, só em um contexto em que haja distinção entre a coisa pública e a privada faz-se possível convencer outrem, usar-se a persuasão. Se concordarmos que ser cidadão é poder convencer e ser convencido, a retórica só poderia ter nascido em irmandade com a cidadania.

90 NIETZSCHE, F. Da retórica. Tradução e prefácio: Tito Cardoso e Cunha. Vega: Lisboa, 1995. p. 43 91 Idem, p. 27-28

Nietzsche analisa a retórica em dois planos: no primeiro, como disciplina, como arte do discurso, tão bem executada por gregos e romanos. E, nesse sentido, sucintamente, ela possuía três finalidades básicas: ensinar ou informar, comover os sentimentos e encantar ou seduzir. As três finalidades nos levam a duas constatações importantes à nossa dissertação: (i) a retórica, enquanto comoção, atua pela eficácia simbólica da palavra e (ii) a retórica não se preocupa com a verdade, mas com a verossimilhança, ou seja, um símbolo da verdade, uma aparência de verdadeiro92. No segundo plano, Nietzsche não se contenta em fazer uma história da retórica ou descrever como os antigos concebiam discursos convincentes. É aí que o filósofo disseca a retórica como modo para a compreensão da arte, da linguagem e do próprio conhecimento de mundo; é aí que emerge a tese fulcral do curso de retórica: os tropos não são um simples acréscimo à linguagem, mas sua mais íntima natureza. Dito de outra maneira, parafraseando o próprio Nietzsche: a retórica não é mais que um aperfeiçoamento dos artifícios já presentes na linguagem. E, conforme observa Oswaldo Giacoia, “a natureza essencialmente metafórica (ou tropológica) da linguagem desfaz qualquer pretensão cognitiva de apreender conceitualmente a estrutura ontológica do real, no sentido tradicional da concepção de verdade como correspondência entre a representação intelectual e as ‘coisas mesmas’”93.

A linguagem é, em sua origem, marcada pelos tropos, pelas figuras retóricas. A linguagem conceitual, aquela que pensamos exprimir um sentido ao mundo, é apenas um esquecimento dessa linguagem figurativa original.

Não existe de maneira nenhuma a “naturalidade” não retórica da linguagem à qual se pudesse apelar: a linguagem ela mesma é resultado de artes puramente retóricas. A força que Aristóteles chama retórica, que é a força de deslindar e de fazer valer, para cada coisa, o que é eficaz e impressiona, essa força é ao mesmo tempo a essência da linguagem: esta reporta-se tão pouco como a retórica ao verdadeiro, à essência das coisas; não quer instruir, mas transmitir a outrem uma emoção e uma apreensão subjetivas. (NIETZSCHE, 1995, p. 44- 45)

De acordo com Nietzsche, o que costuma se chamar de pensamento racional já está preparado, inconscientemente, na linguagem. Os próprios tropos são pré-formados pelo inconsciente. Segundo observação de André Garcia, “essa arte inconsciente pré-

92 Em A visão dionisíaca do mundo, texto preparatório de O nascimento da tragédia, Nietzsche entende que a tragédia grega está entre a beleza e a verdade, ou melhor, a tragédia está assentada no verossímil, permitindo que o objeto representado aja como verdade. Trataremos deste texto adiante.

93 GIACOIA, Oswaldo in Apresentação de “Símbolo e Alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche, de Anna Hartmann Cavalcanti, 2005. p.16.

figurada na linguagem condicionou, por meio de um processo de transposição, pelos tropos, o surgimento de estados de consciência”94. Para Nietzsche o procedimento mais importante da retórica refere-se aos tropos, ou seja, às “designações impróprias”. A designação própria é, na tradição, aquela que caracteriza a coisa de modo mais completo, é seu significado primeiro; é esse significado que a retórica vem substituir com seus tropos, retomando artificialmente a expressão original. Porém, Nietzsche inverte a primazia da propriedade e da impropriedade da linguagem, ressaltando que a trópica é a configuração primeira da linguagem: “todas as palavras são, desde o seu começo, quanto à significação, tropos”.95

Segundo Rosana Suarez, no discurso persuasivo, o uso da linguagem própria seria marcado por duas características essenciais: a clareza (que está ligada à compreensão do ouvinte) e a conveniência (que diz respeito à aceitação do ouvinte em relação ao discurso, por este ser talhado à sua medida). Acontece que, recorrentemente, em nome destes comandos, a propriedade daria lugar à impropriedade, utilizando-se do tropo para enfatizar a clareza e a conveniência.96 “Acentua-se a clareza pelo uso de imagens e comparações, ou de atalhos muito expressivos e amplificação. Seguidamente as sentenças e as figuras como artifícios do discurso, que reforçam a conveniência”.97

A persuasão está intimamente ligada à “aparência de sinceridade” do discurso. A palavra “aparência” nos leva a outra que será muito relevante para nós em VM: dissimulação, já que nesse texto Nietzsche afirmará que o próprio intelecto é dissimulador. É nesse sentido que Nietzsche afirma a retórica como mimética, uma “imitação da natureza”:

Na boca daquele que fala para si ou por uma causa, o discurso deve parecer totalmente adequado e natural; deve-se dissimular a arte da substituição, senão o auditor torna-se desconfiado e teme estar sendo enganado. Há portanto, na retórica também, uma “imitação da natureza” como meio capital de persuasão: é só quando o que fala e a sua linguagem são adequados um ao outro o auditor acredita na seriedade e verdade da causa defendida; entusiasma-se com o orador e acredita nele – isto é, crê que o próprio orador creia em sua causa e esteja sendo, por conseguinte, sincero. (NIETZSCHE, 1995, p. 58)

Segundo Nietzsche, Aristóteles teria mostrado que a retórica não deve ser concebida como téchne ou como epistême, mas como dynamis (que, no entanto, poderia

94Metáforas do corpo: reflexões sobre o estatuto da linguagem na filosofia do jovem Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2008, p. 165.

95 Idem, p. 46

96 SUAREZ, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a retórica. O que nos faz pensar, n 14, agosto de 2000. 97NIETZSCHE, F. Da retórica. Tradução e prefácio: Tito Cardoso e Cunha. Lisboa, 1995. p. 62

se elevar ao nível de téchne). Assim sendo, a retórica para o grego é uma faculdade, uma potência (que, em Nietzsche, talvez possamos chamar de força), um “poder-fazer”, uma dinâmica estética capaz de desenhar o destino de um povo: o povo do discurso. O povo que é do discurso porque tem uma tendência agônica. A palavra “agon”, que aparece na Ilíada quando os heróis combatem entre si nos campos de batalha, pode ser aplicada à existência grega de modo geral, porque o grego era educado na disputa, procurando sempre superar a si mesmo e aos outros: disputa (dominação) combinada ao lúdico (beleza, dissimulação).

Toda produção do indivíduo em público é uma competição; mas, para o combatente, não basta possuir armas robustas, é preciso também que elas sejam brilhantes. As armas que temos em mãos não devem ser apenas adequadas, é também preciso que sejam belas; e que não sirvam apenas para vencer, mas para vencer com “elegância”; essa é a exigência de um povo agonal. (NIETZSCHE, 1995, p. 59)

Faz-se preciso dizer que a concepção nietzscheana de que a linguagem é essencialmente trópica é, em grande medida, herdeira da obra Linguagem como Arte (Die Sprache als Kunst), de Gustav Gerber. Para este autor, a linguagem é, sobretudo, uma construção artística, como nota Santiago Guervós:

A tese indicada no título da obra – A linguagem como arte – baseia-se em uma série de autores como Herder, Humboldt, Grimm, Jean Paul, Hegel, etc., sem esquecer os antecedentes do romantismo alemão, acima de tudo, F. Schlegel. Para ele, ao descrever a linguagem “viva” não se pode recorrer à sintaxe e ao léxico, que são abstrações justificáveis para a ciência da linguagem, senão à linguagem “como uma forma de arte”. O que é fundamental é o impulso artístico (Kunsttrieb) cujo produto é essa arte inconsciente ou criação inconsciente. No fundo, o que Gerber já começa a questionar é que a linguagem é essencialmente um meio de comunicação; seu caráter original, agora esquecido pelo homem, é ser uma “obra de arte”. (SANTIAGO GUERVÓS, 2000, p.17)98

Seguindo os passos de Gerber, Nietzsche concebe a retórica como uma espécie de prolongamento consciente dessa forma de arte inconsciente que é a linguagem e que, pelo fato de a linguagem ser essencialmente artificial, figurativa, não somos capazes de apreender por meio dela a essência das coisas. Além da estrutura categorial e gramatical, os tropos que repousam na linguagem são formados previamente pelo inconsciente.

98Na Introdução, já falamos sobre o Kunsttrieb (impulso artístico) mencionado neste trecho por Guervós e o contrapusemos à noção de Erkenntnistrieb (impulso ao conhecimento). Ainda neste capítulo, exploraremos mais esta oposição. Ela será novamente colocada em pauta na segunda parte do segundo capítulo.

Não é difícil de se provar, à luz clara do entendimento, que aquilo que se chama “retórica”, para designar os meios de uma arte consciente, na linguagem e no seu devir, e mesmo que a retórica é um aperfeiçoamento dos artifícios que repousam na linguagem. (NIETZSCHE, 1995, p. 44)

Em consonância com Da Origem da Linguagem, Nietzsche concebe que o que comumente se chama de pensamento ou consciência já está, inconscientemente, na linguagem. E vai além: por um processo de transposição, a arte inconsciente que subjaz à linguagem, faz emergir o pensamento consciente. Conforme nota André Garcia, os tropos são registros linguísticos sobre os quais “assentam-se nossas percepções sensíveis” 19 [217]. Trata-se de uma capacidade natural do homem de traduzir um estímulo em uma imagem que lhe seja semelhante, uma imagem em um som, em uma palavra que tenha significado análogo99. Noção que mantém semelhanças com a que consta em VM, ensaio que exploraremos no próximo capítulo, no qual Nietzsche afirma que a palavra é “um estímulo nervoso, primeiramente transporto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em som! Segunda metáfora”.100

Novamente de acordo com Rosana Suarez, a percepção lança comparações e recortes rítmicos não sobre o mundo, mas sobre as marcas impressas nas memórias dos indivíduos a partir das primeiras excitações que aferem, seguindo a gradação prazer- desprazer101. Para Nietzsche, portanto, a percepção está relacionada a uma força criadora, uma força artística. A partir desse registro, podemos observar a concepção nietzscheana de que a linguagem é, em seu substrato, retórica. As expressões verbais só se produzem a partir de uma sensação experimentada e, no lugar da coisa, a sensação percebe apenas uma marca. “Em vez do que verdadeiramente tem lugar, instalam-se uma massa sonora que se dirija no tempo: a linguagem nunca exprime nada da sua integridade, mas somente uma marca que lhe parece saliente”102.

Dando continuidade, Nietzsche analisa três figuras de linguagem: a sinédoque, a metáfora e a metonímia. A sinédoque, grosso modo, é a substituição de um termo por outro, ocorrendo uma redução ou ampliação do sentido desse termo. Para Nietzsche, é pela sinédoque que conseguimos relacionar duas imagens. A linguagem faz uma seleção parcial, enfatizando um ou outro aspecto do objeto. A sinédoque, afirma 99 GARCIA, André Luis Muniz. Metáforas do corpo: reflexões sobre o estatuto da linguagem na filosofia do jovem Nietzsche. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2008.

100NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. Trad.: Fernando de Moraes Barros, São Paulo, Hedra, 2008, p. 32.

101 Nietzsche e os cursos sobre a Retórica. Revista “o que nos faz pensar” nº 14. Agosto de 2000. 102NIETZSCHE, F. Da retórica. Tradução e prefácio: Tito Cardoso e Cunha. Lisboa, 1995, p. 46

Nietzsche, é “muito poderosa na linguagem” que “nunca expressa algo de maneira completa, mas em toda parte destaca apenas a característica mais sobressalente”103. Podemos ler: “Um animal provido de dentes ainda não é um elefante, um animal com crina não é necessariamente um leão – e, no entanto, o sânscrito chama o elefante de dantín [a partir de dan, dente] e o leão kesin [de ke, cabelo]”104. Ou ainda: “(...) quando serpens designa a serpente como aquilo que rasteja; mas por que serpens não quer dizer também caracol?”105. É difícil observar tais passagens e não se lembrar do ensaio Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral:

Como designamos usualmente as coisas? Por ênfases e omissões, por preferências parciais. Quando nos referimos à serpente, destacamos apenas um de seus aspectos, que nos parece mais notável, o movimento de torção, o ‘serpentear’, tomamos a parte pelo todo, realizamos a sinédoque. Mas um tal movimento, que percebemos na serpente, poderíamos também perceber no verme, que se move como a serpente; a ele damos, no entanto, um nome diferente (NIETZSCHE, 2007, p. 32)

Em relação à metáfora, Nietzsche afirma que é uma “comparação breve”106. A metáfora não cria palavras novas, mas causa um deslocamento semântico. Trata-se, portanto, de uma transposição de significado. Nietzsche traz como exemplo a montanha: ao falarmos dela, usamos expressões como pés, cabeça, flancos etc.107.Esse é um dos motivos que fazem com que o filósofo considere a metáfora como tropo por excelência. Mas não é o único motivo nem o principal. Eis sua constatação: o conhecimento é uma representação derivada de uma metáfora. Assim sendo, sua visão sobre a metáfora nesse texto é próxima à concepção encontrada tanto em fragmentos póstumos do período quanto em VM. Comparemos. Em Da Retórica, Nietzsche toma de Gerber uma ilustrativa citação da obra Vorschule der Aesthetik de Jean Paul:

Assim como na língua escrita os hieróglifos precederam o alfabeto, na linguagem oral a metáfora – enquanto aquilo que designa relações e não objetos – constitui a palavra mais antiga, que não precisou mais do que perder paulatinamente sua cor para se converter na própria expressão. A espiritualização e a corporificação constituíam uma unidade, porque o eu e o mundo todavia se confundiam. Por isso, do ponto de vista das relações espirituais, toda língua é um dicionário de metáforas extintas. (NIETZSCHE, 1995, p. 71) 103 Idem, p. 75 104 Idem, p. 75 105 Idem, p. 46 106Idem, p. 73 107 Idem, p. 47

Em VM, Nietzsche concebe que há uma espécie de lacuna entre a palavra e a coisa. Esse hiato é preenchido pela metáfora e constitui o caráter artístico da linguagem: a metáfora se não é a mãe é a avó de todo conceito.

Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e desprovida de seu correlato, e, por isso, sabe sempre eludir a todo rubricar, o grande edifício dos conceitos exibe a inflexível regularidade de um columbário romano e exala na lógica aquela dureza e frieza que são próprias da matemática. Aquele que é baforado por essa frieza mal acreditará que mesmo o conceito, ossificado e octogonal como um dado e tão rolante como este, permanece tão-somente o resíduo de uma metáfora, sendo que a ilusão da transformação artística de um estímulo em imagens, se não é a mãe, é ao menos avó de todo conceito. (NIETZSCHE, 2007, p. 38-39)

E no fragmento 19 [228], escrito entre o verão de 1872 e o início de 1873, Nietzsche afirma:

O imitar contrapõe-se ao conhecer enquanto este não quer fazer valer nenhuma transposição, mas fixar a impressão sem metáforas e sem consequências. A tal fim, a impressão resulta petrificada: presa e delimitada por conceitos, depois morta, esfolada, mumificada e conservada em forma de conceito. No entanto, não existem expressões ‘apropriadas’ nem conhecimento apropriado sem metáforas. Contudo, subsiste a ilusão sobre o particular, ou seja, a fé em uma verdade da impressão sensorial. As metáforas mais habituais, as usuais, valem agora como verdades e como medida para as mais raras. [...] Conhecer não é mais do que trabalhar nas metáforas prediletas, ou seja, um imitar não percebido já como tal. (KSA VII, 19 [228], 1872-1873)

Sobre a metonímia, pode-se dizer que se trata de uma figura de retórica que promove a “substituição” de um termo por outro, mantendo-se, evidentemente, uma relação semântica. Três aplicações são mais constantes: a parte pelo todo, a consequência pela causa e o concreto pelo abstrato. Segundo Nietzsche, é graças a essa figura retórica que conceitos podem ser representados como a essência das coisas, e para demonstrar isso evoca a “substantivação abstrata” de nomes, adjetivos, verbos e até advérbios. É por meio dessa substantivação que se coloca no lugar do que é dito a causa pela qual se diz.

Pressupôs-se que esses conceitos, devendo o seu nascimento apenas às nossas sensações, são a essência íntima das coisas. Substituímos às aparências como sua razão aquilo que é apenas consequência. Os abstrata provocam a ilusão de que são a essência, quer dizer a causa das propriedades, quando é apenas na sequência dessas propriedades que lhes atribuímos uma existência figurada. (NIETZSCHE, 1995, p. 77)

Quando dizemos, por exemplo, que a bebida é amarga, fazemos uso da metonímia porque transferimos ao objeto uma sensação, um parecer subjetivo. Num fragmento póstumo desse período, Nietzsche escreve sobre o sentido de metonímia: “O

juízo sintético descreve uma coisa de acordo com suas consequências, isto é, essência e consequências são identificadas, quer dizer, uma metonímia”108. Aos olhos de Nietzsche, é a metonímia que nos faz acreditar num ser inerente das coisas.

Com essas três figuras de linguagem, o jovem filólogo aprofunda-se na análise da relação entre os tropos e o conhecimento racional (discursivo), temática que, de certo modo, abriu caminhos para suas especulações em VM na medida em que Nietzsche admite o conceito como uma abstração da sensação e que o conhecimento depende de uma transposição do estímulo para a representação.

O homem que forma a linguagem não apreende coisas ou processos, mas

excitações: não restitui sensações, mas somente cópias das sensações. A

sensação que é suscitada por uma excitação nervosa não apreende a própria coisa: essa sensação é figurada no exterior por uma imagem. (NIETZSCHE, 1995, p. 45)

Se a linguagem é essencialmente retórica, como vimos, e jamais transmite a coisa mesma, mas somente uma marca, ela é ilusória. Em outras palavras, ela não transmite um conhecimento verdadeiro, mas apenas uma crença, uma opinião109: “a linguagem é retórica porque apenas quer transmitir uma dóxa e não uma epistême”110. Esse ponto de vista será crucial para compreendermos a empreitada de Nietzsche em VM, já que lá ele aponta que a crença na verdade é fruto do esquecimento da nossa tendência metafórica originária.

À guisa de conclusão deste tópico, gostaríamos de fazer uma observação. Alguns estudiosos da obra de Nietzsche, como Lacoue-Labarthe, afirmam que sua preocupação quanto à retoricidade da linguagem está circunscrita a um período específico (de 1872 a 1875). Nós, juntamente com Paul de Man e Manuel Casares, discordamos desta interpretação. Embora Nietzsche não retome literalmente o tema da linguagem como fundamentalmente trópica em suas obras posteriores a 1875, grande parte de suas reflexões está inscrita nesta perspectiva linguística, na medida em que o autor critica as ilusões metafísicas da linguagem e o modelo de verdade como adequação, afirmando que

108Nachlass/FP 1872-1873, 19[242], KSA 7. p. 495

109 Há, obviamente, um desdobramento ético desta asserção: se a linguagem não transmite um conhecimento verdadeiro, mas apenas uma crença, uma opinião, todas as supostas verdades morais também estão comprometidas. As noções de bem e mal seriam uma espécie de recorte rítmico não sobre o mundo, mas sobre as marcas impressas na memória dos indivíduos a partir das primeiras excitações que aferem, seguindo a gradação de prazer e desprazer. É este o sentido da subjetividade e a anulação da possibilidade de universalidade objetiva.

a metaforicidade é inerente a toda atividade de conhecimento, inclusive à ciência. Como

Documentos relacionados