• Nenhum resultado encontrado

Retomando a História Em direção ao Sorpasso: Notas sobre o Milagre

3. UM MODELO FUNDADO NA TRADIÇÃO: O CASO ITALIANO

3.4. Retomando a História Em direção ao Sorpasso: Notas sobre o Milagre

Como vimos anteriormente, Maciel (1996) procura discutir o milagre italiano. Período que corresponde às décadas de 50-70 e 80, onde se observou um aumento considerável do PIB e dos indicadores de inovação, nas quais se constituíram boa parte dos sistemas de inovação, P&D e C&T apontados anteriormente. Neste caso, é salutar apontar que o chamado milagre se distingue em alguns períodos. O primeiro período diz respeito à segunda metade de 1950, onde Maciel data o início do milagre, pois a partir daí, em 20 anos, a Itália deixava de ser um país atrasado e rural e transformava-se num dos países industrializados mais importantes. Neste primeiro momento, que vai de 55-63 o milagre seria explicado: pela ação dos investimentos estatais e privados, sobretudo em obras de infra-estrutura; pela ação dos investimentos do Plano Marshall e pela abundante mão de obra barata (MACIEL, 1996). Os

anos 70 caracterizam-se, por sua vez, em um momento de crise econômica, mudanças sociais e emergência das PMEs. Segue-se o Sorpasso (a ultrapassagem) resultando em ganhos sócio- econômicos.

A análise de Maciel (1996) busca as raízes históricas do processo de inovação italiano dando especial atenção à capacidade desta sociedade de aliar a arte à técnica. Tal processo consiste em uma síntese histórica. Dessa forma, a emergência de parques tecnológicos (parques de inovação) decorreria de estruturas culturais estabelecidas, onde a capacidade de inovação não diria respeito tão somente à investimentos de ordem econômica, mas “no modo de aplicar produtivamente e aproveitar socialmente os resultados da aplicação do saber” (MACIEL, 1996). Logo, aponta a autora, que elementos como as tradições estéticas, técnicas comerciais milenares, diferenças regionais e até mesmo movimentos cooperativos de origem comunista ajudariam a compor o quadro explicativo do sucesso italiano. Ainda, é recorrente a idéia do estranhamento do caso italiano ao atingir um elevado grau de desenvolvimento onde acreditava-se não haver condições propícias: clientelismo, familismo, fisiologismo, privado sobre o público, etc.

Alguns desses aspectos do caso italiano, tomados como negativos a priori, podem explicar em parte o sucesso das organizações das PMEs retratadas por Farah Júnior. O familismo remete-se a idéia de que a família é a base da sociedade italiana e que mesmo relações da esfera pública costumam ser governadas por esta ótica. Esta posição possui implicações na construção de um cenário onde o privado se sobrepõe ao público. Por outro lado, esta realidade que produz a Máfia – o lado perverso das estruturas familiares (MACIEL, 1996) -, e outras patologias institucionais no país, explica também o sucesso de organizações produtivas pequenas, fundadas pela família e orientadas por relações de proximidade, cooperação e confiança, comuns na Terceira Itália. Neste sentido, a solidariedade e a lealdade familiares são tomadas como fatores fortalecedores da comunidade e do progresso econômico. O sistema econômico italiano possui bases familiares, daí a necessidade de se levar em consideração a questão familiar para a problemática do caso italiano: “Transformações na vida familiar podem indicar mudanças futuras no sistema político- econômico em níveis mais abrangente” (MACIEL, 1996). Cabe apontarmos também o cenário que causa o estranhamento ao notar o desenvolvimento italiano pré-80, expressado por Maciel:

“No campo econômico: Deficit público de 11% do PIB; mercado informal de 18% a 25%; Disparidades Regionais; evasão fiscal estimada em 45%, conservadorismo industrial convivendo com modernização produtiva; no campo político: 18% da população economicamente ativa eram funcionários de Estado; resistências das classes políticas às reformas; clientelismo e fisiologismo; setor público caótico e ineficiente; no campo cultural: forte presença da Igreja; leis que “não pegam”, falta de espírito público e de noção de bem público; nepotismo; cultura do bacharelismo; prática de seqüestro; concentração de poder nos meios de comunicação; convivência do ultra- moderno e sofisticado com o tradicional e primitivo.

(MACIEL, 1996, p. 19)

O ambiente da inovação estava inserido neste cenário confuso e complexo. Apesar de Maciel constatar o panorama caótico da formação de recursos humanos para C&T existia grande capacidade de produção e eficácia na aplicação dos resultados realizados em pesquisa (MACIEL, 1996). Em síntese Maciel relaciona a mudança social à inovação. Põe que a sociedade italiana do norte conseguiu construir um esforço coletivo de adequação das novidades tecnológicas à conquista de qualidade de vida, melhorias dos padrões produtivos e eficiência (FARAH JÚNIOR, 2001). Ainda, estes fatores são concatenados de modo que o Estado também esteja inserido, embora o germe das associações de PMEs não tenha gozado de estímulo por parte deste último.

O modelo italiano obedeceu a uma dinâmica própria e complexa como vimos nas posições anteriores. Dada a discussão do cenário italiano da inovação, passando pelas considerações do pós-guerra e os desdobramentos do Estado e da sociedade civil, é salutar a entrada na discussão do quadro social dos anos 70, caracterizado pela crise econômica e transformações sociais. Neste sentido, Maciel (1996) nos dispõe de posições concernentes, sobretudo, ao operariado e suas derrotas e conquistas dentro de um sistema econômico e político complexo. O operariado italiano possui como uma de suas primeiras vitórias a ocupação das fábricas pela Resistência Italiana. Este evento histórico forneceu a primeira etapa de um processo no qual o trabalhador italiano passaria a ter voz ativa, dada a gerência das empresas por parte dos primeiros no período de beligerância (Segunda Guerra). No entanto, o incipiente poder do operariado italiano, que nasceu com a Resistência diluiu-se no tempo devido à ação do patronato das grandes empresas.

No decorrer dos anos 60, a ação do operariado muda de figura - como vimos, o germe do movimento sindical tinha apenas a intenção de diminuir a jornada de trabalho e aumentar

os rendimentos dos trabalhadores -, os trabalhadores passam a reclamar maior participação nos processos decisórios das empresas. Então, eclode o movimento de 1968, o mais forte da classe operária (MACIEL, 1996), sob o qual revoltas sociais garantem a instituição do “Statuto di Lavoratori” que garantiu conquistas como direito de assembléia no local de trabalho, de organização de sindicato na fábrica, proteção ao trabalho perigoso e direito de apelar à justiça em caso de suspensão contratual (MACIEL, 1996). Estes acontecimentos são procedidos pela vitória sindical de 1973, a qual estabeleceu um marco: trabalhadores passam a poder gozar de 150 horas anuais livres e remuneradas para aperfeiçoamento profissional e aquisição de cultura geral.

Os anos 70 no mundo foram caracterizados pela incerteza econômica, falência do sistema de Bretton Woods, crise do dólar, crise do petróleo e crise do modelo fordista. Na Itália, o período caracterizou-se pela crise econômica e transformações sociais. Neste cenário orbitavam governos frágeis, havia falta de fontes de energia e existia um empresariado dependente do Estado (relações corporativistas econômico-partidárias). Cenário este que resultava em um contexto de economia paralela, diminuição da produção e déficit público (MACIEL, 1996). A crise econômica mostrou a superioridade das PMEs em se organizarem para o enfrentamento da crise. Estes anos se caracterizaram pelos movimentos contestatórios, os quais criticavam a distribuição desigual de poder e de recursos ao longo da península (MACIEL, 1996). No entanto, Maciel aponta para o fato de, ao lado desses movimentos de caráter mais revolucionário, coexistirem aqueles que emergiram da sociedade civil, os quais traduziam as novas idéias correntes, materializadas nas práticas comunitárias (feiras, creches, postos de saúde, clubes, consórcios de P&D, etc.). Ainda, nos anos 70, enquanto o Estado se ausentava do planejamento econômico e social, a administração local o fazia, através de um diálogo frutífero entre esta e a sociedade civil (MACIEL, 1996) – resultado de uma falta de alternância partidária no contexto nacional (imobilismo Democrata Cristão), o que parece ter sido uma coisa boa para o nível local (municípios e regiões). Estes fatores acabam por endossar as PMEs lotadas na Terceira Itália, gozando em parte de apoio governamental por meio dos distritos industriais e das práticas comunitárias que emergiram juntamente com os movimentos radicais.

Dentro do quadro apontado tanto o PCI (Partido Comunista Italiano) quanto a Democracia Cristã, alcançaram eficiência administrativa no nível local (MACIEL, 1996), diferentemente do que acontecia no contexto nacional. Neste sentido, aponta Maciel, que o

PCI conseguiu demonstrar no governo da Emilia-Romagna (na Terceira Itália) que é possível uma associação entre o empresariado, o operariado e a administração pública. Sendo assim, os comunistas estabeleceram incentivos para a classe média (ceti medi) e para as pequenas empresas da região, na forma de subsídios, ao mesmo tempo em que garantiam serviços sociais de qualidade e transportes públicos de baixo custo (MACIEL, 1996). O sucesso do PCI na Emilia-Romagna acabou por permitir que este partido aumentasse a sua área de influência, conquistando as regiões da Toscana e da Umbria.

Compondo o quadro dos anos 70, temos o surgimento das Brigate Rosse , as Brigadas Vermelhas. Tal grupo se notabilizou pela radicalização da violência como instrumento de mudança política e social, tendo como principais alvos os empresariados e membros do DC (Democratas Cristãos), além de policiais, jornalistas e juízes, e tendo por objetivo a destruição do Estado (MACIEL, 1996). As ações da BR culminaram com o seqüestro de Aldo Moro (ex- primeiro ministro) em 1978, evento sobre o qual a ação do governo foi emblemática, posicionando-se de maneira contrária à qualquer negociação com a BR, resultando no assassinato do referido ex-ministro. Maciel coloca que este evento foi importante para que a sociedade italiana se posicionasse contrária às ações da BR.

Não nos esqueçamos das questões relativas ao operariado. Acima apontamos algumas vitórias do operariado e do movimento sindical. Maciel nos chama atenção para a derrota que sofreu o operariado no evento da greve da Fiat. Neste caso, o empresariado estabeleceu uma cooperação com seus empregados por meio da central sindical CGIL (Confederazione Generale Italiana Del Lavoro), ligada ao PCI, onde o empresariado se comprometeu a reduzir o desemprego enquanto os empregados, em contrapartida, passavam a aceitar as implementações do controle de salário e aumento de produtividade (MACIEL, 1996). Neste sentido, os sindicatos perderam bastante do seu apelo, pois terminavam por ceder demais. Dessa forma, Maciel coloca que as derrotas sindicais representaram o abandono das vias de ação coletiva e a vitória do riflusso (volta à esfera privada em detrimento da ação coletiva), apesar de haver um contexto de melhoria dos indicadores econômicos. Porém, o caso italiano rege-se pela contradição e pela complementaridade existindo sempre os dois lados da mesma moeda, como se vê:

“A outra face dessa retirada da contestação política é o deslocamento do foco para a sobrevivência – e mais, para a prosperidade – econômica.

Reforçam-se as estratégias familistas de autodefesa. Concentram-se os italianos em sair da crise, com investimentos, legislação e, sobretudo, criatividade”

(Maciel, 1996, p. 71)

Por conseguinte, Maciel, evocando Ginsborg (1990 apud MACIEL, 1996), coloca que a modernização italiana não se deixou definir pelos movimentos de 68-78 que tinham pretensões essencialmente anticapitalistas, coletivistas e igualitárias. De maneira contrária, triunfou-se o capitalismo e o familismo. Ainda, dialogando com Ginsborg, Maciel coloca que este não credita à ação coletiva o triunfo modernizante da Itália, mas sim às oportunidades que se ofereceram às famílias individualmente. Porém, Maciel adiciona que apesar dessas considerações é impossível não considerar as práticas comunitárias e associativas entre as empresas familiares e as administrações locais, fato que, segundo a autora, é “crucial nessa modernização” (MACIEL, 1996).

Assim o sucesso do caso italiano, da Terceira Itália, estaria fundado na cooperação entre os diversos atores envolvidos no processo produtivo. Esta cooperação obedeceria a uma dinâmica histórica própria e teria como objetivo a conquista de certas metas culturais, como o desenvolvimento em si e a qualidade de vida as quais seriam conseqüências dos próprios esforços coletivos. Estes, por sua vez, são consolidados pelos instrumentos de participação na vida social, os quais podem ser traduzidos em associações de toda sorte (PUTNAM, 2006) ou até mesmo nas próprias empresas.