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3.2 A POLÍTICA

3.2.1 Retorno aos clássicos: o começo da política

Rancière buscou demonstrar não como a política começou na Grécia, mas que a divisão política já estava constituída naquele momento inicial.

Precisamente en aquel periodo [década de 1980] se contraponía airadamente la política a lo social, la política como mundo de la acción colectiva libre y lo social como mundo de la necesidad económica miserable: en ese contexto volví, por así decirlo, al estudio de textos como los de Aristóteles. En ellos, en sus definiciones aparentemente más sencillas, como la definición del ser humano como un animal político, porque está dotado de lenguaje, encontramos ya una división, puesto que el problema consiste en saber quién hable, cuáles son las voces percibidas como lenguaje, como argumentación, como logos, y, por el contrario, cuáles son las voces que son percibidas como un mero vociferar (RANCIÈRE, 2007, grifou-se).

Aristóteles afirmava que cidadão seria aquele que toma parte no governo e é governado. Entretanto, há uma partilha que precede essa possibilidade de tomar parte: a partilha que determina quem pode tomar parte. Assim, dizia Platão que os artesãos não podiam participar das coisas comuns porque não tinham tempo para se dedicar a outra coisa que não ao seu trabalho. A partilha do sensível possibilita, justamente, essa visualização:

(…) faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum etc (RANCIÈRE, 2009a, p. 16).

desentendimento (La Mésentente, 1995), Jacques Rancière constrói sua argumentação em defesa da política como a atividade que tem por princípio a igualdade. Esse princípio da igualdade se transformaria em repartição das parcelas (do francês part - designa a parte que cabe a alguém em uma divisão ou distribuição) do comum – ou partilha do sensível – ao modo do embaraço: “de quais coisas há e não há igualdade entre quais e quais? O que são essas 'quais', quem são esses 'quais'? De que modo a igualdade consiste em igualdade e desigualdade?” (RANCIÈRE, 1996a, p. 11).

A política seria, assim, um embaraço para a filosofia e um escândalo teórico por ter como racionalidade própria a racionalidade do desentendimento. Desentendimento no sentido de um conflito, uma disputa sobre o que se quer dizer e sobre a própria situação dos que falam: situação em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto.

Entretanto, Rancière entende que a filosofia política rejeita isso que a política tem de próprio, esse escândalo, esse embaraço, o desentendimento. Rancière busca evidenciar que enquanto Platão rejeitou o que é próprio da política, de certa maneira, Aristóteles se apropriou disso.

Aristóteles constrói essa apropriação ao definir o logos como próprio da política. O homem seria, para Aristóteles, um animal eminentemente político por ser o único entre os animais que possui a palavra. A posse do logos (palavra) possibilita manifestar os sentimentos propriamente humanos do bem e do mal, do justo e do injusto, em que já estaria presente a percepção do útil e do nocivo. De maneira diferente, a voz, presente em outros animais, apenas indica os sentidos do prazer ou sofrimento. O homem possuiria, assim, um modo próprio de participar do sensível, que fundaria uma politicidade de tipo superior, da família e da pólis. Aristóteles busca deduzir, então, das propriedades do homem portador de logos, os fins do animal político: “O que a palavra manifesta, o que ela torna evidente para uma comunidade de sujeitos que a ouvem, é o útil e o nocivo e, consequentemente, o justo e o injusto” (RANCIÈRE, 1996a, p. 17).

Porém, expõe Rancière, a política não existe devido a essa oposição entre os animais fônicos e os animais lógicos. O que funda a política é um duplo dano, um conflito fundamental que se assenta sobre essa divisão, um litígio que, nunca considerado enquanto tal, dá-se em torno da relação entre a capacidade do ser falante sem propriedade e a capacidade política.

Segundo Platão, o povo, enquanto multiplicidade dos seres falantes (portanto, não lógicos) anônimos prejudicaria a distribuição ordenada dos corpos em comunidade. Rancière explica que há uma distribuição simbólica dos corpos, que os divide em duas categorias: aqueles que se veem, portadores de logos e aqueles que não se veem, que apenas possuem voz para exprimir dor e prazer. Por isso é que há um dano que inaugura a política (e não a divisão entre animais lógicos e falantes), um dano que é uma falsa contagem:

Há política porque o logos nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a contagem que é feita dessa palavra: a contagem pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra é apenas percebida como barulho que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta (RANCIÈRE, 1996a, p. 36).

Para Platão, assim como Aristóteles, a polis, que tem como telos o bem comum, está assentada em uma superioridade que é exercida em conformidade com as regras da ordem natural: uma distribuição ordenada dos corpos em comunidade.104

A justiça, assim, não corresponderia a impedir que aqueles que vivam em comunidade causem danos recíprocos e em reequilibrar, quando houver dano, os lucros e as perdas. A justiça é a “ordem que determina a divisão do comum”: “começa ali onde se trata daquilo que os cidadãos possuem em comum e onde se cuida da maneira como são repartidas as formas de exercício desse poder comum” (RANCIÈRE, 1996a, p. 20). Na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, essa noção fica bem clara: “a justiça consiste em não pegar mais do que sua parcela nas coisas vantajosas e menos do que sua parcela nas coisas desvantajosas” (RANCIÈRE, 1996a, p. 20).

Assim, segundo os “fundadores da política”, para que a comunidade política seja mais do que um contrato entre quem troca bens e serviços, para que seja uma comunidade do bem comum, “é preciso que a igualdade que nela reina seja radicalmente diferente daquela segundo a qual as mercadorias se trocam e os danos se reparam” (RANCIÈRE, 1996a, p. 21). Os clássicos buscam repartir as parcelas do comum de acordo com uma “proporção geométrica” que harmonize as

104 O justo da pólis é fundamentalmente um estado em que o sympheron (do grego: vantagem que um indivíduo ou coletividade obtém ou espera obter de uma ação) não tem por correlato nenhum blaberon (também do grego: consequência negativa ou dano que um indivíduo recebe decorrente da ação de outrem). Para Rancière, com a instituição dessa ausência de correlação os clássicos produziriam a supressão de um dano, de um regime do dano.

parcelas da comunidade e os títulos (axiai) para se obter essas parcelas. Submetem a igualdade aritmética (preside as trocas mercantis e as penas judiciárias) à igualdade geométrica que, “para a harmonia do comum, coloca em proporção as parcelas da coisa comum possuídas por cada parte da comunidade à parcela que ela traz ao bem comum” (RANCIÈRE, 1996a, p. 21).

Aristóteles enumera três desses títulos de comunidade que dão acesso às parcelas do comum: a riqueza dos poucos (oligoi); a virtude ou excelência dos melhores (aristoi) e a liberdade que pertence ao povo (demos). Cada um desses títulos fornece unilateralmente um regime particular de governo que é constantemente ameaçado pela sedição dos outros: oligarquia dos ricos, a aristocracia dos melhores e a democracia do povo. A combinação exata desses títulos proporcionaria, em contrapartida, o bem comum.

Segundo Rancière, com essa teorização os clássicos da política permitem visualizar que:

(…) a política não se ocupa dos vínculos entre os indivíduos, nem das relações entre os indivíduos e a comunidade, ela é da alçada de uma contagem das “partes” da comunidade, contagem que é sempre uma falsa contagem, uma dupla contagem ou um erro na contagem (RANCIÈRE, 1996a, p. 21).

O erro na contagem torna-se perceptível ao se avaliar os títulos para distribuição das parcelas do comum. Título facilmente reconhecível é dos oligoi, a riqueza, que depende apenas das trocas aritméticas. Entretanto, o que é a liberdade trazida pelo povo à comunidade? A abolição da escravidão por dívidas em Atenas fez com que qualquer um que nascesse na polis ateniense, qualquer “corpo falante fadado ao anonimato do trabalho e da reprodução”, fosse contado enquanto povo. Essa é a aparência de liberdade que seria o título próprio do povo. Sobre isso, explica Laclau:

La dificultad aquí, como señala Rancière, reside en que los tres principios [títulos] no son categorías regionales dentro de una clasificación ontológica coherente. Mientras que la riqueza es una categoría determinable objetivamente, la virtud lo es menos, y cuando abordamos la libertad como principio axiológico es, por un lado, un atributo de los miembros de la comunidad en general, pero también, por otro lado, es el único rasgo definitorio – la única función comunitaria –

de un grupo particular de personas. Por lo tanto, tenemos una particularidad cuyo único rol es ser la simple encarnación de la universalidad. Esto distorsiona todo el modelo geométrico que describe a la buena comunidad. (LACLAU, 2011, p. 304)

Assim, essa liberdade própria do demos não se enuncia por alguma propriedade positiva e, ainda, não lhe é absolutamente própria:

O povo nada mais é que a massa indiferenciada daqueles que não têm nenhum título positivo – nem riqueza, nem virtude – mas que, no entanto, têm reconhecida a mesma liberdade que aqueles que os possuem. A gente do povo é de fato simplesmente livre como os outros (RANCIÈRE, 1996a, p. 23).

Dessa simples identidade da liberdade com aqueles que em tudo mais lhes são superiores, o povo atribui-se, como sua parcela própria, a igualdade, que pertence, também, a todos os cidadãos. E, assim, o demos traz à comunidade o litígio:

(…) a liberdade – que é simplesmente a qualidade daqueles que não têm nenhuma outra (nem mérito, nem riqueza) – é ao mesmo tempo contada como virtude comum. Ela permite ao demos – ou seja, o ajuntamento factual dos homens sem qualidade, desses homens que, como nos diz Aristóteles, “não tomavam parte em nada” – identificar-se por homonímia com o todo da comunidade. Tal é o dano fundamental (…): o povo apropria-se da qualidade comum como sua qualidade própria. O que ele traz à comunidade é, propriamente, o litígio (RANCIÈRE, 1996a, p. 24).

Essa litigiosidade presente na política deve ser entendida num duplo sentido, alerta Rancière. O título que o demos traz é litigioso porque não lhe pertence propriamente (pertence a todos), e, além disso,

(…) a massa dos homens sem propriedades identifica-se à comunidade em nome do dano que não cessam de lhe causar aqueles cuja qualidade ou propriedade têm por efeito natural relançá-la na inexistência daqueles que não tomam “parte em nada”. É em nome do dano que lhe é causado pelas outras partes que o povo se identifica com o todo da comunidade. Quem não tem parcela – os pobres da Antiguidade, o terceiro estado ou o proletariado moderno – não pode mesmo ter outra

parcela a não ser o nada ou tudo (RANCIÈRE, 1996a, p. 24, grifou-se).

A exposição desse dano é a própria política. Há, então, política e não apenas dominação, porque há uma conta malfeita nas partes do todo.

Também aparece como um equívoco a propriedade própria dos aristoi, a virtude. Para Rancière, trata-se tão somente de um outro nome para os oligoi. Segundo ele, o próprio Aristóteles confessa (no livro IV da Política e na Constituição de Atenas) que a polis tem, na verdade, apenas duas partes – os ricos e os pobres. Mas, adverte Rancière, o dano não pode meramente ser reduzido à luta de classes. A política é que vai instituir os pobres enquanto entidade, enquanto parcela dos sem-parcela:

A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela. Essa instituição é o todo da política enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não há política. Há apenas ordem da dominação ou desordem da revolta (RANCIÈRE, 1996a, p. 26-27).

O povo não é, assim, realmente o povo, mas os pobres. E os pobres não são verdadeiramente os pobres, mas o “reino da ausência de qualidades, a efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio da liberdade, a propriedade imprópria, o título do litígio” (RANCIÈRE, 1996a, p. 29). Esse povo, esses pobres, são o sujeito político que enuncia o dano constitutivo da política como tal.

A liberdade vazia que esse povo apresenta, expondo o dano, é portadora de uma igualdade diferenciada – diferenciada porque suspende à aritmética simples, mas sem se fundar numa ordem geométrica, como querem os clássicos.105 Trata-se da igualdade de qualquer um com qualquer um, ou seja, que não há título que autorize a dominação. Significa, em última instância, a “pura contingência de toda ordem social”. Assim, para Rancière, o fundamento da política não é natureza e nem tampouco convenção, mas a total ausência de fundamento.

105 “A diferença qualitativa inexistente da liberdade produz essa equação impossível, que não deixa compreender na divisão da igualdade aritmética que governa a compensação dos lucros e das perdas e da igualdade geométrica que deve associar uma qualidade a uma posição. O povo é, assim, sempre mais ou menos do que ele próprio” (RANCIÈRE, 1996a, p. 25).

A igualdade assenta, em última instância, toda ordem social, pois só há ordem porque alguns mandam e outros obedecem. Essa relação de mando e obediência exige, ao menos, que se compreenda a ordem e que se compreenda que é preciso obedecê-la. Para isso é preciso que aquele que obedece seja igual ao que manda:

É essa igualdade que corrói toda a ordem natural. (…) O que comumente se atribui à história política ou à ciência do político na verdade depende, com frequência muito maior, de outras maquinarias, que por sua vez provêm do exercício da majestade, do vicariato da divindade, do comando dos exércitos ou da gestão dos interesses. Só existe política quando essas maquinarias são interrompidas pelo efeito de uma pressuposição que lhes é totalmente estranha e sem a qual, no entanto, em última instância, nenhuma delas poderia funcionar: a pressuposição da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, ou seja, em definitivo, a paradoxal efetividade da pura contingência de toda ordem (RANCIÈRE, 1996a, p. 31).

A política é, portanto, uma situação de enfrentamento, o conflito em torno da existência e qualidade daqueles que estão presentes. É, primeiramente, o conflito em torno da existência de uma cena comum. A cena existe para o uso de um interlocutor que não a vê e não tem razões para vê-la, já que, para ele, ela não existe. As partes não preexistem a esse conflito, pois o conflito diz respeito à própria situação de fala, de palavra e aos seus atores. A política não existe porque os homens, graças ao privilégio da palavra, colocam seus interesses em comum, mas porque:

(…) aqueles que não têm direito de serem contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada (RANCIÈRE, 1996a, p. 40).

A política só existe, portanto, mediante a efetuação da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa na liberdade vazia de uma parte da comunidade que desregula toda e qualquer contagem das partes.

A igualdade é a condição não-política da política e não se apresenta ali enquanto tal, aparece pela figura do dano. A política está sempre torcida pela refração da igualdade em liberdade.

Fenômeno que apareceu a primeira vez na Grécia Antiga, quando os pertencentes ao demos (aqueles sem um lugar claramente definido na hierarquia da estrutura social) não só exigiram que sua voz fosse ouvida frente aos que exerciam o controle social, ou seja, não só protestaram contra a injustiça que padeciam e exigiram ser ouvidos, formar parte da esfera pública em pé de igualdade com a oligarquia e a aristocracia dominantes. Mas os excluídos também se postularam como os representantes, os porta-vozes, da sociedade em seu conjunto, da verdadeira Universalidade. Aqueles considerados o nada, que não contava na ordem social se auto-declararam “o povo” e se opuseram àqueles que só defendiam seus próprios interesses e privilégios. O conflito político designa, assim, a tensão entre o corpo social estruturado – em que cada parte tem seu lugar – e a “parte sem parte”, que desajusta essa ordem em nome de um vazio princípio de universalidade: L'Égaliberté, o princípio de que todos os homens são iguais enquanto seres dotados de palavra. A verdadeira política, portanto, traz sempre consigo uma sorte de curto-circuito entre o Universal e o Particular: o paradoxo de um singular universal que aparece ocupando o Universal e desestabilizando a ordem operativa “natural” das relações no corpo social.

Ao tomar a dimensão do comum e associá-la à partilha do sensível, Rancière expõe, assim, a repartição desigual que existe entre os iguais: o pensar, o falar, o perceber, o produzir dispõe-se em relações de desigualdades. Ao priorizar a igualdade de qualquer um com qualquer um, Rancière pensa a reconfiguração dessa partilha do sensível, em que se redefinem a comunidade e o comum. A relação entre comunidade e separação define a partilha do sensível (cf. RANCIÈRE, 1996a, p. 39). Essa reconfiguração é política porque insere no comum sujeitos novos e objetos inéditos de modo a dar visibilidade àquilo que até então não se fazia visível. Assim, passam a serem percebidos como seres falantes aqueles que eram somente “animais ruidosos”106 (como um possível

106 Sobre a expressão animais ruidosos: “esta expressão do filósofo carrega toda a carga de redução prescrita aos que, numa partilha em vigor, são rebaixados à condição daqueles cuja fala é sempre decodificada como mero barulho, sem significação e interesse para o campo do comum” (PALLAMIN, 2010, p. 7). O ruído representa um barulho que não é capaz de transmitir uma mensagem, aqueles que não têm voz porque não lhes corresponde um lugar social que permita falarem. “Há política porque o logos [palavra que se manifesta, enquanto a voz apenas indica] nunca é apenas a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a

falar dos artesãos, que Platão dizia impossibilitados de participar da coisa comum). Essa reconfiguração não opera, entretanto, uma inserção de maneira definitiva, de uma vez por todas, na ordem policial. Ao enunciar o que entende por política, Rancière demonstra que ela possui uma especificidade, que se diferencia daquilo que comumente se coloca sob esse nome, mas que o filósofo vai nomear de polícia.