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FONTE: SEED – DEPARTAMENTO DE ESTATÍSTICA 2010.

III.3- Santa Maria: uma periferia constituída singularmente

III.3.1 Retração estatal e periferização urbana

A partir dos anos oitenta, apesar de já termos constatado algumas peculiaridades do Estado de Sergipe frente ao quadro geral do Brasil, inicia-se no país, em linhas gerais, uma situação de enfraquecimento estatal devido à recessão econômica iniciada com as “décadas perdidas”. Este processo, impactado pela reordenação produtiva internacional, gera, aos poucos o avanço dos Governos Neoliberais, fundamentados na lógica de um Estado Mínimo (MOYSÉS; BERNARDES; AGUIAR, 2005; MARICATO, 2008). Com efeito, aumentam, de maneira geral, as formações de “periferias urbanas”. No entanto, este processo de “periferização” encontra algumas variações que precisam ser esclarecidas. Segundo Heitor Frúgoli Junior (2000) é preciso pensar na noção de “periferia” para além da oposição binária, fundamentada restritamente na lógica geográfica, com o “centro”, uma vez que tem sido constatado o surgimento de “novas centralidades” (FRÚGOLI, 2000). Isto é, localidades caracterizadas pela alta valorização imobiliária, que ora congrega o prestígio econômico, ora o prestígio social e acabam por concentrar a tendência do

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desenvolvimento urbano das cidades. Neste sentido, ao extrapolar o “centro” tradicional como pólo de serviços e como área ocupada historicamente pelas camadas socioeconomicamente favorecidas, surgem as “novas centralidades” a partir da caracterização não necessariamente geográfica. Deste modo é possível a emergência de “novas centralidades” em áreas geográficas à margem do “centro” tradicional. Esta situação, como já demonstramos, ocorre emblematicamente na Zona de Expansão Urbana (ZEU) de Aracaju. A questão é emblemática justamente por esta área estar situada nas proximidades do bairro Santa Maria, uma das localidades historicamente “periféricas” da cidade. Este bairro, por sua vez, também não se enquadra na categorização geográfica clássica de “periferia” a partir do momento que se situa na Zona Sul da cidade, a poucos quilômetros da ZEU.

Deste modo, portanto, é por outros fatores que podemos falar do processo de periferização do bairro Santa Maria. A localidade, ainda enquanto Povoado Terra Dura, formou-se na emergência da consolidação da Região Metropolitana de Aracaju, semelhante64 ao que Lucio Kowarick (2000a) denominou por “metrópole do

subdesenvolvimento industrializado”, ao estudar a Região Metropolitana de São Paulo. Ou seja, uma expansão econômica ocorre mediante a manutenção e desenvolvimento da precarização do trabalho, do número de desempregados e da condição de vida “espoliativa”. Com efeito, surgem práticas que, na órbita da clandestinidade enfrentam o processo político de exclusão social. Trata-se assim da “subcidadania” (KOWARICK, 2000b), um dos aspectos encontrados na condição de vida caracterizada pela “espoliação urbana”:

É a somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e a moradia apresentam-se como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta desta (KOWARICK, 2000b, p. 22)

No bairro Santa Maria alguns elementos como o tempo gasto na espera dos transportes coletivos, a precariedade da moradia, ausência de equipamentos urbanos, especialmente de cultura e lazer reúnem o que Kowarick (2000b) denomina por “inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo”. Isto é reforçado na medida em que o autor deixa claro que a “espoliação urbana” tem estreita relação com a

64 É preciso ressaltar que o processo de metropolitização de São Paulo é significativamente maior que o

de Aracaju, mas a lógica, guardadas suas devidas proporções, pode ajudar a pensar a realidade aqui trabalhada.

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acumulação do capital (notadamente o poder cada vez maior dos empresários urbanos, donos de construtoras civis), a pauperização e ação do Estado (destacando intervenções urbanas como a construção de estradas, rodovias e serviços de saneamento básico). No entanto, apesar de toda esta complexa teia de fatores, que condicionam a população pobre das cidades a uma vida “espoliada”, para Kowarick (2000b), trata-se, contudo, de sujeitos ativos. Isto é,

[...] mesmo quando os graus de pauperização são mantidos inalterados, rebaixados ou minorados, os padrões de reprodução urbana poderão melhorar ou piorar em razão do que os moradores consigam obter do Poder Público em termos de serviços e equipamentos coletivos, subsídios à habitação ou facilidades de acesso à terra provida de infraestrutura (KOWARICK, 2000b, p. 23)

Sendo assim, a “espoliação urbana” varia em decorrência tanto da acumulação de capital e das características das intervenções do Estado quanto da dinâmica das lutas sociais travadas nas reivindicações por terra e/ou por serviços coletivos. Nota ainda o autor que mesmo em situações em que são obtidas melhorias urbanas, é possível a permanência de “espoliações urbanas”. Ao estudar as periferias paulistanas, nos anos 30, Kowarick (2000a) observa que com as chegadas das políticas de requalificação urbana as áreas antes ignoradas pelo Poder Público começam a sofrer um aumento no custo econômico de vida. Este processo incorre como “ônus social” submetido ao “espoliado”, que vive agora sob algumas melhorias urbanas e tem a manutenção de sua sobrevivência paradoxalmente dificultada. Segundo o autor, com frequência, estes processos tendem a gerar a saída dos antigos moradores, que embora não marcados com o mesmo estigma anterior, acabam por não ter condições de pagar pelo preço dos serviços (impostos, alimentação, lazer, etc.) necessários para viver no local. Sendo assim, o processo de requalificação ocorre paralelo à permanência da “espoliação urbana”. No caso do bairro Santa Maria, embora seja possível observar algumas melhorias urbanas resultantes das políticas urbanas implantadas nos últimos dez anos, bem como o aumento nos preços dos imóveis, não é notável, ao menos ainda, o processo de migração de antigos moradores em virtude do aumento no custo de vida da localidade.

Ao contrário, no bairro Santa Maria o que se observa são melhorias urbanas fragmentadas, não contemplativas a toda a população do bairro. A característica da “subcidadania” (KOWARICK, 2000b), apesar dos empenhos dos “construtores da cidade” na produção de uma imagem modelo do bairro, é ainda muito pertinente à

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realidade encontrada na localidade. Segundo Lucio Kowarick (2000b) a condição de “subcidadania” gera por outra via o imaginário de marginalidade e violência nos contextos de comunidades pobres e por vezes também geograficamente periféricas. “Subcidadania urbana” é a

Irregularidade, ilegalidade ou clandestinidade em face de um ordenamento jurídico-institucional que, ao desconhecer a realidade socioeconômica da maioria, nega o acesso a benefícios básicos para a vida nas cidades. Não se trata apenas do inconsciente perverso de tecnocratas bem intencionados. Trata-se de um processo político que produz uma concepção de ordem estreita e excludente e, ao fazê-lo, decreta uma vasta condição de subcidadania urbana (KOWARICK, 2000b, p. 54)

O “subcidadão” é fundamental na manutenção da ordem vigente, na medida em que permite que sua condição o identifique como marginal, a matizar e estigmatizar sua condição social, isto é, política, econômica, habitacional e moral.

Portanto, observamos que a periferização do bairro Santa Maria ocorre no povoamento mais intenso surgido na localidade, ainda quando se chamava Povoado Terra Dura, na segunda metade da década de 80, a partir da reorientação territorial do que viria a se transformar na Região Metropolitana de Aracaju. O surgimento de novas moradias se deu, destacadamente, mediante a modalidade de habitação “autoconstruída” (KOWARICK, 2000b) que se intensificou até os anos oitenta e teve início em boa parte do país a partir do período do Pós II Guerra. Segundo Kowarick (2000b) esta modalidade de habitação contribuiu na caracterização de uma cidade típica do “subdesenvolvimento industrializado”, onde a reprodução das classes trabalhadoras se estabeleceram a baixos custos públicos. Com a reorientação territorial este tipo de moradia foi facilitado através do desenvolvimento dos transportes de ônibus coletivo. Deste modo, formavam-se habitações precárias (erguidas em localidades desprovidas de benfeitorias urbanas e oportunidades de trabalho) com transporte coletivo.

Em nível nacional, a partir da II Guerra Mundial, a crise na habitação, dominada pelos aluguéis e cortiços passou a ser enfrentada com a moradia “autoconstruída” e com o desenvolvimento do transporte coletivo (KOWARICK, 2000b). Deste modo, foi sob estes pilares que o sistema produtivo capitalista conseguiu manter e reproduzir sua mão de obra assalariada e precarizada. As más condições vivenciadas nas “décadas perdidas” e o prelúdio cada vez mais emergente de uma era neoliberal no Brasil intensificaram a retração Estatal no provimento de políticas públicas, inclusive em setores como habitação. Mesmo com o surgimento das moradias “autoconstruídas” e a valorização da

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imagem dos indivíduos “vitoriosos” – aqueles que vencem as dificuldades e conseguem construir sua casa própria –, a ausência de infraestrutura urbana, como saneamento básico, água e energia elétrica apresentava-se como uma realidade inescapável à periferização urbana no Brasil.