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Contudo, percepções de riscos muito altos derivados do engajamento diminuem o nível de participação dos militantes.

2.2. Retribuições, afetos e mudanças na percepção de si

O engajamento é o produto de um encontro entre as disposições e as experiências construídas com um grupo ou uma instituição. Pode-se dizer que o grupo fabrica seus militantes e vice-versa. “Essa fabricação consiste em um processo de ajustamento entre as propriedades de da instituição e do campo onde ela intervém e as propriedades dos engajados” (SAWICKI, 2003, p.146).

Ao se estudar o engajamento por esse viés, como afirma Sawicki (2003), abre-se a possibilidade de analisar como se opera a “construção social do desejo” de se dedicar a esta ou aquela “causa”, encarnar uma organização, desejar que se viva a partir de uma “vocação”. A compreensão deste processo implica, não somente na observação da articulação entre as diferentes esferas de vida, mas também aos efeitos do grupamento e de sua história, sobre o agente engajado.

Gaxie (1977; 2005) aponta que tanto as contribuições dos agentes ao militantismo quanto suas recompensas/retribuições, são resultado da relação entre as propriedades sociais do agente e dos recursos da instituição à qual ele se vincula. Desse modo, a entrada de um indivíduo numa mobilização política é fruto tanto das disposições dos agentes quanto da atração exercida pelas “causas” defendidas pelo movimento e dos diversos benefícios vinculados à adesão, sob seu ponto de vista.

As proposições deste autor servem como possibilidade explicativa acerca das condições de sustentação de uma instituição dentro de uma série de lógicas de diversas ordens. A partir do entendimento de que as ações da militância são economicamente desinteressadas, Gaxie (2005) propõe que as retribuições e recompensas existentes não são somente materiais, como de ter salários, dinheiro ou desfrutar de benefícios individuais, mas podem também ser simbólicas. Esses benefícios simbólicos podem

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variar entre o reconhecimento, afeto, estima e admiração dos companheiros, sentimentos de importância e de poder transformar o mundo à sua volta.

A dimensão emocional é geralmente ocultada nos estudos sobre os movimentos sociais desde que o paradigma da mobilização de recursos, e seu aporte teórico calcado nas estratégias, estruturas e aspectos racionais, tornaram-se a principal fonte de análise e interpretação (TAYLOR, 2000; SOMMIER, 2010). Além disso, essa ocultação dos afetos também “traduz um dualismo profundo da cultura ocidental que opõe razão e sentimento, sendo esta última referida como irracional” (SOMMIER, 2010, p. 188).

Freire (2012) ao averiguar a presença de emoções e afetos nas reivindicações de manifestantes na cidade de Nova Iguaçu, estado do Rio de Janeiro, conclui que eles se fazem presentes no repertório de ações políticas para acesso aos espaços públicos e na construção das agendas políticas. Nos casos estudados a pesquisadora também registrou que os sentimentos de “humilhação”, “desemparado”, “abandono” e “descaso” foram utilizados como forma de registro do descaso público, de sensibilização, comoção e engajamento dos transeuntes em eventos públicos. Em detrimento das denúncias e das “ofensas” aos direitos civis, as manifestações utilizavam as emoções como forma de expressão de suas indignações.

A emoção constitui-se numa importante forma de comunicação e ligação num processo de mobilização política. Na ausência de redes sociais prévias ela pode, inclusive, tornar-se uma fonte de recrutamento e engajamento dos atores sociais numa ação coletiva.

Ela suscita a empatia e compartilhamento social e está, assim, no cerne das dinâmicas de grupo que conduzirão à uma reação coordenada. Os sentimentos são um instrumento de formação de um coletivo e de manutenção da lealdade ao grupo ou, inversamente, o motor do desengajamento (SOMMIER, 2010, p. 193).

A afetividade também se liga à autopercepção dos agentes, modelando um grupo de semelhanças entre o “eu” e “nós” com objetivos a manter a fidelidade ao grupo e seus princípios, através da articulação entre afetivo, o emocional, o cognitivo e o simbólico. Além disso, os movimentos sociais contribuem na reconstrução de

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identidades e emoções estigmatizadas, geralmente de vergonha e medo, em valores positivos de auto-definição (TAYLOR, 2000).

As mudanças de conceito de si (self-concept changes) promovidas pela participação em movimentos sociais, observa Kiecolt (2000), envolvem modificações na identidade e nos atributos dos atores sociais. De acordo com o modelo proposto pela autora, estas modificações vinculam-se às influências estruturais e culturais dos movimentos que atuam sobre os agentes de maneira a produzir mudanças psíquicas. Os efeitos da interação entre a mobilização e os ativistas dão-se principalmente através das narrativas, textos, rituais e confrontações.

As narrativas caracterizam-se pelas histórias dos ativistas sobre si mesmos e suas experiências, importantes fontes de legitimação e reforçamento de suas identidades. Quatro temas são destacados nessas narrativas:

(1) histórias acerca do “tornar-se consciente” das injustiças fomentam uma identidade ativista, associando os participantes a heróis, heroínas e aliados, dissociando-os dos vilões; (2) histórias de “tornarem-se ativos” descrevendo como os participantes foram recrutados; (3) histórias sobre “tornarem-se comprometidos” que narram o maior envolvimento e identificação com o movimento; (4) histórias de “tornarem-se desgastados” narram as experiências negativas que levaram os ativistas a pararem de participar (KIECOLT, 2000, p. 122).

De modo semelhante os textos presentes em panfletos, poemas, jornais, entre outros escritos produzidos pelos ativistas, servem como forma de compartilhar, afirmar e promover mudanças identitárias dos participantes. Os rituais, por sua vez, presentes nos movimentos, como a celebração de datas, eventos ou a criação de sinais e gestos, tendem a reafirmar as convicções grupais, alinhando as identidades pessoais e coletivas. Já as confrontações com oponentes terminam por ratificar as distinções entre os que compõem o grupo/movimento (“eu”) e os que estão fora deles (“eles”).

No que tange o movimento homossexual e LGBT, Broca e Fillieule (2009) evocam a importância das emoções em seus estudos sobre os movimentos de combate ao HIV/Aids na França (Act Up). Segundo eles, a literatura sobre o tema aponta duas análises. Na primeira, as emoções são fator explicativo da passagem ao ato, segundo as oportunidades políticas ou os motivos individuais do engajamento. Numa outra

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perspectiva, as emoções são vistas como “um meio de manter o engajamento pela ativação de um sentimento de adesão e de efervescência, pelo reforço das identidades e das solidariedades do grupo e, enfim, pelos efeitos socializadores que elas produzem” (BROCA e FILLIEULE, 2009, p. 142).

Nesta direção, para Britt e Heise (2000) os movimentos teriam a habilidade de modificar emoções, conectando os agentes e gerando o engajamento em torno de organizações e “causas” e, desta forma, produzindo identidades políticas. Os agentes disponibilizariam de um “capital emocional”, acionado e modificado por determinados dispositivos, como as propagandas, em proveito da mobilização política. Isto poderia ser observado no movimento gay, que transforma emoções de “estado de vulnerabilidade”, como o “medo” e a “vergonha”, em emoções como “raiva” e “orgulho”, potencializando a participação individual.

No próximo item discutir-se-á a dimensão macrológica do engajamento, recorrendo-se a dois modelos explicativos dos movimentos sociais (dos “novos movimentos sociais” e de “processos políticos”) e as relações com a esfera estatal por eles propostos.