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UTOPIA SELVAGEM E EM A IDADE DA TERRA

3.3 REVISITANDO A ANTROPOFAGIA EM UTOPIA SELVAGEM

No âmbito da bibliografia crítica sobre Utopia Selvagem, destacam-se dois textos que estudaram a antropofagia na fábula de Darcy Ribeiro. O primeiro é da autoria de João Domingues Maia213 e o segundo é de Susana Célia Leandro Scramim.214

João Domingues Maia aborda a paródia em Utopia Selvagem mostrando as alusões e as apropriações que Darcy Ribeiro faz de textos europeus como: Hans Staden,215 Thomas Morus,216 Rousseau217 e Voltaire.218 Com base na subversão das relações hierárquicas entre os textos do colonizado em relação ao colonizador, João Domingues Maia trata da antropofagia.

Ao enfocar o personagem Calibã, de Darcy Ribeiro, João Domingues Maia se reporta ao texto Calibán y otros ensayos, de Roberto Fernández Retamar, ampliando o sentido da antropofagia para a América Latina. Partindo desse aspecto, crê-se que a antropofagia deixa de ser apenas estudada, no âmbito da linguagem, com base na paródia, para se estender a um campo político. Essa abordagem tem confluência com o sentido da antropofagia para Glauber Rocha, como ato político.

No livro Calibán y otros Ensayos, Roberto Retamar retoma William Shakespeare relendo o Calibã como símbolo de resistência latino-americano. O filósofo cubano afirma que até então os latino-americanos estiveram aficcionados a essa versão européia da selvageria que aqui existia, provando o envolvimento profundo na “ideologia do inimigo”.219

O prefácio, em português, ao livro Calibã e outros ensaios foi escrito por Darcy Ribeiro. Segundo o antropólogo, o livro de Roberto Fernández Retamar é importante, pois “no plano intelectual, Roberto, a seu modo, encarna a consciência crítica latino-americana

213 MAIA, 1985. 214 SCRAMIM, 2000. 215 MAIA, op. cit., p. 62. 216 Ibidem, p. 63. 217 Ibidem, p. 63. 218 Ibidem, p. 64.

como cubano assumido, Martiniano professo e fidelista fiel”.220 Darcy Ribeiro compartilha com Retamar da crença em uma América Latina unida e descolonizada, conforme Nossa América, de José Martí.221 Ainda no prefácio do livro do autor cubano, Darcy Ribeiro afirma:

Roberto recapitula conosco a Shakespeare e Montaigne, a Thomas Morus, a Rousseau, e a quantos pensadores mais se ocuparam de nós, lendo e relendo seus textos, bem como os escritos de Andrés BelloK, de Sarmiento, de Martí, ou de Alfonso Reyes, de Ureña, de Mariátegui e de Marinello.

Num esforço ingente com base nestas vivências, nestas leituras e em suas meditações, o filósofo Retamar recompõe os caminhos pelos quais viemos sendo o que fomos; configura o ser que hoje somos; e ainda antevê as promessas que portamos, delineando destinações que a história teima em negar e a filosofia insiste em postular.222

Não cabe dizer que Darcy Ribeiro se espelha no intelectual cubano para trazer ficcionalmente as críticas tecidas aos olhares sobre a América Latina, mas é inegável a aproximação que se dá entre essa obra e Utopia Selvagem, principalmente pelas referências que os ensaios de Retamar possuem, textos também assimilados e modificados pelo antropólogo, como se viu através de João Domingues Maia. Nessa direção, em “A recepção crítica de Darcy Ribeiro na América Latina”, Haydée Ribeiro Coelho mostrou que: “Retamar recorda que Darcy, tendo lhe enviado a fábula Utopia Selvagem, escreveu à frente do texto: ‘Para mi Hermano cubano, que me servió de modelo para crear Pitum’.”223 Ressaltou, ainda, que “no texto antropológico Calibã e outros ensaios, o crítico cubano afirma, em nota de rodapé, que se baseou em algumas idéias, expressas pelo antropólogo brasileiro, em Américas e a civilização”.224

A partir do que foi estudado por João Domingues Maia, pode-se dizer que o crítico contribui para a identificação da antropofagia no texto do antropólogo assim como sinaliza para a sua ampliação no âmbito da América Latina.

220 RIBEIRO, 1988, p. 7. 221 MARTÍ, 1891.

222 RIBEIRO, op. cit., p. 9. 223 COELHO, 2000b, p. 95. 224 Ibidem, p. 95.

Tanto no texto de Heloisa Toller Gomes como naquele de João Domingues Maia, a antropofagia está relacionada ao conceito de utopia. Para Susana Célia Leandro Scramim, com base na obra de Darcy Ribeiro, a utopia possui vários meandros como: espacial, temporal, educacional, revolucionária, e nacional. Nesse trabalho, é importante que sejam destacadas perspectivas que estão relacionadas à idéia de antropofagia como utopia nacional e revolucionária, que acenam para um futuro.

Para a autora, Darcy Ribeiro propunha uma utopia educacional, a partir de um projeto para a educação, que seria o agente desse discurso de transformação. A nação seria, por fim, esse objetivo utópico maior no pensamento do antropólogo, objetivo esse que é esmiuçado pela autora no intuito de relacionar o pensamento de Darcy Ribeiro com suas variantes políticas, filosóficas, educacionais e literárias.

Susana Célia Leandro Scramim, no entanto, não chega a desenvolver uma análise de Utopia Selvagem com base nos discursos da fábula. Ela se detém no que chama de “identidade flutuante”, a partir do estudo do personagem Carvalhal/Pitum/Orelhão e suas mudanças identitárias entre as Icamiabas e entre os Galibis.

A tese de Susana Scramim se concentra no estudo da antropofagia textual que ocorre na fábula, algo já realizado por João Domingues Maia; porém, sua novidade está em identificar que essas apropriações feitas por Darcy Ribeiro dizem respeito a uma utopia do futuro, organizando elementos do presente, para que essa utopia se concretize.

Para concluir, a respeito dos estudos existentes sobre Utopia Selvagem, é necessário lembrar que a análise de João Domingues Maia sobre a fábula foi a primeira no Brasil, destacando, de forma pioneira, o diálogo de Darcy Ribeiro com a América Latina, em decorrência da remissão ao texto de Roberto Fernández Retamar. Sob essa perspectiva, é possível refletir sobre a antropofagia em A Idade da Terra, relacionando-a também à América Latina.