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REVOLUCIONÁRIOS E APAIXONADOS: OS DE LA GARZA VIVEM A REVOLUÇÃO

É possível dizer que a revolução aparece de três formas distintas ao longo do romance, sem que uma se oponha a outra, pelo contrário, essas diferentes visões acerca do conflito e seus envolvidos se completam e nos fornecem subsídios para construção de uma malha interpretativa sobre os episódios.

O rancho da família de La Garza, situava-se no extremo norte do país, na zona rural de Piedras Negras, em Chihuahua. Do outro lado da fronteira com os EUA, Eagle Pass, onde residia o Doutor Brown, médico da família. Essas referências geográficas são importantes para entendermos que tipo de menções encontramos no romance. Desde a primeira vez em que é citada, no segundo capítulo, a Revolução deflagra batalhas no território próximo ao rancho, fecha a fronteira com os EUA e impede produtos e pessoas de circularem pelo país, como

162 podemos perceber no momento do casamento entre Pedro e Rosaura: “Realmente tiveram sorte de ter conseguido seda francesa nessa época de instabilidade política. A revolução não permitia que um [sic] pessoa viajasse de maneira segura pelo país.” (ESQUIVEL, 2015, p. 34). Ou no momento do nascimento do primeiro filho do casal, quando Pedro viaja a Eagle Pass e é preso pelos federais, enquanto Mamãe Elena e Chencha se abrigam na casa dos Lobo ao irem à cidade comprar mantimentos, devido a um tiroteio.

Essas primeiras passagens narram como a vida da população se alterava com a presença dos exércitos na região, porém, com a proximidade dos combatentes, crescia em número e grau a quantidade de boatos e histórias a respeito deles. São histórias que projetam uma visão muitas vezes irreal dos revolucionários e de seus líderes. Esses boatos contavam por exemplo com uma certa fama e curiosidade romântica, causada pela “aventura” revolucionária, como o trecho em que Gertrudis foge com um soldado: “Começou a suar e a imaginar o mesmo que sentiria se estivesse sentada no lombo de um cavalo, abraçada por um soldado villista, um desses que tinha visto uma semana antes entrando na praça da cidade, cheirando a suor, terra, a amanheceres de perigo e incerteza, a vida e a morte.” (ESQUIVEL, 2015, p. 49).

Entretanto, nem sempre esse imaginário incidia sobre uma curiosidade. Na verdade, era muito mais comum – e acontece no romance com mais frequência – que os boatos fossem sobre a violência e barbárie causada pelos insurgentes villistas:

“[...] Chencha tentava assustá-la com histórias de enforcados, fuzilados, desmembrados, degolados e inclusive sacrificados aos quais se arrancava o coração em pleno campo de batalha! Em outro momento teria gostado de se entregar ao sortilégio da graciosa narrativa de Chencha e terminar por crer em suas mentiras, inclusive a de que Pancho Villa levara os corações sangrando de seus inimigos para que os comesse, mas não agora” (ESQUIVEL, 2015, p. 64)

Em que pese a hipérbole, o romance nos permite inferir sobre o real nesses boatos. Não sobre Pancho Villa ser um comedor de corações, mas sobre existirem histórias a seu respeito que o projetavam dessa forma, um louco sanguinário, movido pela violência. Barbosa (2010), ao traçar um perfil do líder nortista, revela que sua biografia é quase toda composta de mitos e histórias mirabolantes sobre ele. Aqui, cabe nos atermos um pouco mais a essas lendas. Segundo o professor Barbosa (2010), existem três conjuntos de mitos sobre Pancho Villa: 1. Há um Villa que é um homem honrado e digno, porém vítima do sistema social mexicano. Essa primeira versão é criada principalmente pelo livro Memórias de Pancho Villa de Martín Luis

163 Guzmán; 2. Pancho Villa é um bandido sem escrúpulos, ladrão de gado e assassino sanguinário. Essa versão que demoniza o líder revolucionário é criada por Celia Herrera no livro Francisco

Villa ante la Historia; 3. Há para além dessas duas versões, uma que é criada dentro do próprio

processo revolucionário, principalmente após as vitórias contras os exércitos federais, o Pancho Villa como grande herói popular, atuante antes mesmo da revolução. É possível perceber nessa passagem que há uma dupla percepção da imagem de Villa. Chencha apresenta a versão do louco sanguinário, não aceita por Tita, que até se divertia com as histórias, mas entendia que eram mentiras.

Tita e Gertrudis, acabam sendo as personagens que de alguma forma mais simpatizam com a Revolução. A caçula, mente para a mãe no dia em que Gertrudis foge com um soldado Villista, diz que ela foi raptada pelos exércitos federais a fim de não “culpar” os revolucionários. Gertrudis por sua vez, se junta as tropas e lidera exércitos em batalhas: “Gertrudis falou com Tita por longo tempo, lamentando não poder ficar para ajudá-la no infortúnio, mas lhe havia chegado ordens de atacar Zacatecas.” (ESQUIVEL, 2015, p. 170). Mamãe Elena, por sua vez não simpatizava em nada com a revolução. Mulher afeita às tradições, como a que impôs a sua filha, ela os entendia sob a ótica de desordeiros, um grupo de bandoleiros saqueadores. Essa percepção acaba por mudar quando os soldados chegam ao rancho.

“No dia em que chegaram os rebeldes só estavam no rancho Mamãe Elena, Tita, Chencha e dois peões: Rosálio e Guadalupe. [...] Rosálio chegou a galope para informar que uma tropa se aproximava do rancho. Imediatamente Mamãe Elena pegou a escopeta e, enquanto limpava, pensou em esconder da voracidade e do desejo destes homens os objetos mais valiosos que possuíam.” (ESQUIVEL, 2015, p. 80)

Ela os enfrenta com espingarda em punho e os homens a reverenciam e vão embora. Essa “falta de violência” deixa Mamãe Elena desconcertada, que muda de opinião sobre os revolucionários a partir daquele dia, mas claro, ela nunca mais opinaria sobre a revolução.

Em suma, a revolução é abordada de diferentes maneiras, ora como entrave ao cotidiano, ora a partir de boatos sobre a violência e também a partir da simpatia das personagens com o processo. Essas referências convergem para um ponto comum, criar uma versão da Revolução Mexicana alicerçada na história de Tita. Mesmo que sem intencionalidade, o romance provoca o leitor a pensar sobre esses acontecimentos, e à medida que a história se desenvolve, fica nítido como o Revolução é mostrada de maneira positiva a partir da contraposição entre os boatos e a

164 convivência que os De La Garza passam a ter com os revolucionários. Há de se reforçar que existem alguns saltos cronológicos e que a posição geográfica do rancho nos permite falar sobre um lado da revolução popular, uma vez que no Sul, os comandados de Emiliano Zapata atuavam de maneira diferente dos revolucionários do Norte.