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O filme A Vila trata de um grupo de pessoas que se conheceram num programa de terapia de grupo (Counseling Center). Ao compartilharem suas dores, fruto de acontecimentos violentos ocorridos com cada um, coletivizaram não apenas o sofrimento e a tragédia, mas a perda da esperança de se viver ali. Um deles teve a ideia e os demais acataram: o isolamento.

Ao entrarmos em contato com essa grande imagem [a do isolamento], ela realiza dentro de nós um movimento de atualização, quase como que uma sobreposição, de todas as outras imagens que fazem do universo da cultura e que tocam, de alguma forma, no tema espaços isolados. Num primeiro instante, as associações feitas de forma mais imediatas são aquelas presentes na memória do espectador, na medida em que ele olha para o filme e se identifica com algumas de suas imagens, tornando-se assim, um espectador-personagem.

Como tal [espectador-personagem], fui ganhando familiaridade com o enredo e com os locais onde a história se passava, locais fílmicos. A estrutura narrativa do filme fez com que meu movimento de identificação com as imagens e as interpretações que delas fui realizando se dobrassem sobre elas mesmas. Foi a partir daí que inseri minhas memórias sobre as imagens que estavam sendo, aos poucos, apresentadas e delas propus aproximações de sentidos com outras, que desse movimento vieram.

Esse conjunto de imagens, ao serem “aproximadas”, me deram a possibilidade de dizer sobre como se dava a sustentação de cada local fílmico – nos quais outros foram tomando existência na medida em que o filme ia transcorrendo – e de como essa rede de relações, tanto entre os locais fílmicos e outras imagens fora do filme, quanto entre eles mesmos, foram criando/ apresentando uma espécie de território no filme, que nos é próximo daquele dito por Maffesoli (apud MESQUITA E BRANDÃO, 1995, p.47): a “expressão de um estar junto sensível”.

Esse é um território que está longe de ser estabilidade. Ele é feito de misturas, de movimentos, de relações, mais próximo da definição de “território do corpo”, feito por Sodré, apoiado em Bergson (apud MESQUITA E BRANDÃO, op. cit., p. 47). Cabe nele, o conjunto inteiro da classificação dada por Sodré [território público; território da casa, ou privado;

território interacional; além do próprio território do corpo], porque ele é um território que está relacionado com o espaço pessoal, “como o próprio corpo e o espaço adjacente”, que é, para Sodré (1988, p. 37. In: MESQUITA E BRANDÃO, op. cit. p. 47), uma “delimitação invisível do espaço que acompanha o indivíduo, sendo capaz de se expandir ou contrair-se de acordo com a situação”. Essa é uma ideia que me trouxe o pensamento de Oliveira Jr.. No ensaio O que seriam as geografias de cinema? (2005) ele afirma que os “territórios cinematográficos” são aqueles “construídos pelos passos e olhares dos personagens” (p. 04).

Ao olharmos para o percurso realizado pelos personagens [principais, dentro da trama do filme] notamos outra situação: a de que esse grande território [que, aos poucos, íamos tomando conhecimento] era “usado” de formas distintas por cada um deles, o que pode parecer obvio, num primeiro momento, mas foi pela a premissa de que são as trajetórias dos personagens que dão consistência ao espaço fílmico, que pudemos notar, dentro desse território maior, que existem outras territorialidades.

Estas territorialidades ganham existência na tensão/convivência com a organização desse território público, comum, implementado e garantido – cuidado e controlado - pelos que detêm o poder na Vila: o conselho dos anciãos.

É esse território maior, comum, que nos dá uma sensação de circularidade, posta em algumas imagens [falaremos mais diretamente sobre isso no capítulo sobre a vila4, o Dentro]. Mas há também outro fator que contribuiu para termos feito a ilustração de forma circular e não alongada, por exemplo, como pode ficar sugerido quando um dos personagens do filme situa a vila num vale. No entanto não foram as imagens de vale que mobilizaram minhas memórias quando da confecção do esquema abaixo. O próprio processo de identificação dos locais fílmicos e a nomeação dada a eles indicam quais memórias me foram mobilizadas: as de espaços de isolamento. Assim o ilustramos:

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Como o filme tem o mesmo nome de um dos locais fílmicos, para fazer a diferenciação entre eles utilizarei o minúsculo para dizer do local fílmico e o maiúsculo quando estiver falando do filme em si: vila (local fílmico) / Vila (filme).

Esse grande território nos é dado conhecer como se fosse único, natural, inclusive. No entanto, no decorrer do filme, descobrimos o quanto ele foi idealizado, pensado, planejado. Construído pelos chamados Anciãos [fundadores do pequeno vilarejo]. Acompanhamos o território feito por eles e lidamos com o isolamento que se estabelece a partir da separação de instâncias que nos dão, primeiramente, a sensação de estarmos diante de uma tradicional dicotomia, presente nas histórias de isolamento dispostas na nossa cultura: um dentro que traduz o bem, um fora que é o lugar do mal e um entre, que realiza essa separação, ao mesmo tempo em que as coloca em contato.

Há no filme três personagens [que denominamos de principais], que geram tensões diante desse território aparentemente estável. Eles são: Lucius, Noah e Ivy. Suas ações, seus passos e olhares [relembrando Oliveira Jr.] nos revelam um território feito de misturas, inconcluso, preenchido por ambiguidades. Cada um deles toma pra si esse território maior e se relaciona com ele de forma a nos chamar atenção, a criar nele fraturas, reentrâncias, fugas.

Lucius é o personagem que afirma o território criado pelos Anciãos. Por mais que desobedeça algumas regras, ele o faz muito mais por acreditar que pode atravessar pela floresta sem problema algum, do que, propriamente, para questionar a legitimidade dessa proibição. Já Noah é aquele personagem que subverte as normas, que desestabiliza a trama espacial implementada pelos Anciãos; não a compreende e, portanto, não se submete a ela. Ivy

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é, dos três, a que cria um território que é só dela. Por ser cega, ela inventa maneiras particulares de se estabelecer naquele lugar, suas referências espaciais são feitas de silêncios, passos, barulhos e luminosidades. Ao estar alijada da visão, Ivy não vivencia a forma principal de poder – regulação – daquela comunidade: a visualidade... da floresta e da cor vermelha.

Assim, estruturamos a tese e seus escritos, de forma a seguir essa organização que nos foi dada pela narrativa. Num primeiro momento, falamos desse território maior, território de poder, que gira em torno desses três locais fílmicos: dentro, fora e entre. Em cada um deles, circulam sentidos que deslizam, fluem diante de um universo cultural além-cinema.

Nessa parte, tanto a forma textual, bem como as aproximações que realizamos em cada local fílmico, têm feição, em alguns momentos, semelhantes à forma narrativa que nos foi sendo apresentada pelo filme, tomando a referência do ponto de vista dos Anciãos, criadores da vila. Há nos escritos e nas imagens trazidas uma aparente concordância na forma de organização de espaço por eles proposta, aquela que nega o “outro lado”.

Dentro e Fora, no entanto, não nos são coisas dadas, são sim contraditórios e complementares a um só tempo. Isso ficará mais claro quando falarmos das territorialidades de cada um dos três referidos personagens. Nesse momento, estaremos mais próximos daquilo que resolvemos chamar de territórios de mistura.

Faremos agora um percurso por cada local fílmico, indo da vila à cidade, passando pela floresta e vendo como cada local se configura no filme e dá existência a uma geografia de cinema.

PELOS LOCAIS FÍLMICOS: TENSÕES E