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O guardador de rebanhos X

Fernando Pessoa

“Olá, guardador de rebanhos, Aí à beira da estrada,

Que te diz o vento que passa?” “Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois. E a ti o que te diz?”

“Muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram.” “Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala vento.

O que lhe ouviste foi mentira,

E a mentira está em ti.”. (PESSOA, 2007, p. 31).

Findamos o capítulo anterior diante da seguinte paisagem: um grandioso encontro de águas.

O encontro de dois rios diferentes – mas, interconectados, inter-relacionados – ambos alimentados por seus igarapés. Um que seria o conteúdo teórico-formal e o outro o espaço de supervisão do estagiário.

Antes de prosseguirmos precisamos evidenciar algo, aqui e agora, não pretendemos com tal analogia sermos simplistas ou até reducionistas, no que se refere à formação em Psicologia, estamos cônscios que há outros importantes rios que são afluentes nessa complexa bacia hidrográfica.

Chegamos nessa imagem-paisagem pelo fluir de tantas águas, neste trabalho não conseguiríamos nos enveredar por tantos caminhos, com risco de nos perdermos. Acreditamos que podemos citar alguns desses importantes afluentes, sem o compromisso – na presente monografia – de explorá-los: as experiências de vida, que sempre se configuram como oportunidades de amadurecimento e autoconhecimento ao aprendiz; nesse sentido, o início do seu próprio processo psicoterapêutico pessoal; a militância estudantil, dentro e fora da Universidade; experiência na em monitoria, os grupos de estudo, de pesquisa e extensão (que sim, em partes, também se constituem como espaços de contato com conteúdos teórico- formais, no entanto, são diferentes do estudo dito “solitário”), espaços e eventos culturais o contato com a arte!

31 Georges Daniel Janja Bloc Boris muito nos ajuda:

A literatura teórica é um ponto de apoio essencial e de referência ao psicoterapeuta, mas não basta por si mesma, devendo sempre ser adotada com flexibilidade, fundamentando e sendo fundamentada pela prática profissional, pelas vivências pessoais, pela supervisão e pela psicoterapia do próprio psicoterapeuta. (BORIS, 2008, p. 173)

O autor reitera:

[...] ser psicoterapeuta requer uma síntese pessoal de um conjunto de atitudes desenvolvidas a partir de atividades ligadas à própria vida do psicoterapeuta, entre as quais se incluem a supervisão de profissionais competentes e experientes, a inserção em seu processo psicoterápico particular, a abertura à diversidade das experiências humanas, o desenvolvimento de seu estilo pessoal e profissional, a admissão em processos de formação ou de treinamento sistemáticos e o estudo dedicado aos fundamentos e aos temas do enfoque adotado. (BORIS, 2008, p. 176).

Pedimos a atenção da leitora e do leitor para a vereda que juntos estamos trilhando na altura desses escritos, estamos nos dedicando – ao menos tentando – tornar evidente que manifesto é nosso interesse em todos os caminhos da formação em Psicologia, infelizmente, não é possível cartografar todos nesse presente trabalho.

Jorge Ponciano colabora sob esse prisma:

O psicoterapeuta deverá possuir um conhecimento amplo e, quanto possível, profundo, sobretudo das ciências humanas, biológicas e sociais [...], dado que seu agir envolve uma visão de mundo e especialmente da pessoa, a fim de que ele possa se situar sem limites rígidos no trabalho a que se propõe.

Quando alguém se coloca na condição de psicoterapeuta, oferecendo um trabalho que visa entrar em contato com a pessoa humana eem um processo de mudança no contexto atual do cliente, certamente sua postura básica há de ser a da compreensão e da aceitação do outro, assim como ele se revela.

Embora a psicoterapia vise diretamente à pessoa do cliente, é imprescindível uma nossa reflexão, o mais pertinente possível, sobre a pessoa do psicoterapeuta, pois ele é mais importante como pessoa que o método ou sistema que utiliza. É mais significativo o que faz, transmite e vive do que as técnicas ou a visão filosófica em que se fundamenta. O resultado e a eficiência da psicoterapia dependerão muito da grandeza e da amplidão de suas qualidades pessoas. (RIBEIRO, 2013, p. 23).

Feito esse necessário e pertinente adendo, evitando assim o que seria um imbróglio pra nós, precisamos seguir.

A partir daqui, a essa altura da navegação, vamos trazer as contribuições de quatro autores e autoras sobre o espaço formativo da supervisão, Rogério Christiano Buys, Mônica Telles Tavora, Helena Bazanelli Prebianchi e Mauro Martins Amatuzzi.

Na introdução de seu artigo intitulado “A explicação na supervisão de psicoterapia”, Rogério Chistiano Buys escreve tal como se configura o espaço da supervisão:

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A supervisão de psicoterapia é uma situação muito complexa na qual estão presentes e, em mesmo nível de importância, muitos e diferentes aspectos. Para apenas citar alguns, o nível de conhecimento teórico do supervisando; sua capacidade de organizar o aspecto cognitivo da experiência vivida, tanto na relação com seu cliente quanto na relação com o supervisor; sua disponibilidade (abertura à experiência), para entrar em uma relação profunda com o supervisor para que a supervisão seja realmente efetiva; atitude de independência tanto intelectual quanto emocional que permita uma visão crítica e pessoal de sua aprendizagem etc. Em relação ao supervisor as mesmas condições são necessárias, fazendo-se as devidas transposições, acrescentando-se ainda, naturalmente, uma longa e profícua experiência terapêutica e ainda mais uma atitude didática em relação ao supervisando. (BUYS, 1982, p. 45).

Mônica Teles Tavora muito contribui, também sob essa ótica:

Supervisionar um processo de atendimento psicoterápico tem como objetivo transmitir ensinamentos básicos, mas, principalmente, fazer com que cada estagiário olhe para dentro de si, para a relação que estabelece com seu cliente e para o vínculo que desenvolve com seu supervisor. Treinar em grupo é inserir o terapeuta iniciante em um mundo de relações reais e presentes onde ele pode avaliar-se, espelhar-se e se encontrar com o outro. É prepará-lo para a relação profunda que se estabelece entre terapeuta e cliente. (TAVORA, 2002, p. 121).

Helena Bazanelli Prebianchi e Mauro Martins Amatuzzi nos conduzem a novos passos, pois trazem a perspectiva fenomenológico-existencial, que é cara a nós:

Lembrando-se que na supervisão, o foco é o conteúdo da sessão realizada pelo supervisando, pode-se afirmar que o foco é o relato da relação supervisando-cliente. Sob esse prisma, parece acertado concluir que a supervisão é o lugar onde além das dúvidas teóricas e técnicas, emerge a necessidade de autoconhecimento do supervisando.

Dentro de uma perspectiva Fenomenológico-Existencial, a descrição da experiência com o cliente possibilita ao supervisando entrar em contato consigo mesmo, com seus questionamentos e inseguranças. (PREBIANCHI; AMATUZZI, 2000, p. 57).

Sob esses vários olhares que ampliam os nossos próprios, podemos perceber o quanto a supervisão é um lócus transformador, em que o aprendiz de psicoterapeuta compartilha suas inseguranças, em muitos momentos, diminui o hiato – que existe pra ele – entre teoria e prática, aprende com a experiência de seus companheiros de empreitada, uma tríplice relação que se torna possível: supervisor-grupo-supervisando, “essas relações também se evidenciam como muito importantes na formação do terapeuta [...], mostram que a identidade profissional surgiu no e com o grupo”. (PREBIANCHI; AMATUZZI, 2000, p. 62). Já que:

A supervisão em grupo é, pois, mais do que um intercâmbio de experiências que objetiva trabalhar as vivências de cada treinando com seus clientes; visa também à formação de vínculos dentro do próprio grupo, entre os novos terapeutas, que, longe de serem meras telas de projeção das relações particulares de cada participante, são produtores de vínculos vivos e atuais, liberadores da espontaneidade e validadores do crescimento mútuo. (TÁVORA, 2002, p. 123).

33 Como reitera Tavora6 (2001, p.23, apud BORIS, 2008, p.168) sob esses aspectos:

Ao iniciar o treinamento como terapeuta, os estudantes estão em diferentes estágios de amadurecimento pessoal e profissional. No entanto, todos se deparam com as mesmas angústias provocadas pelos primeiros contatos com os pacientes. No processo de internalização de um método de atendimento e definição de estilo pessoal, eles necessitam de uma orientação básica que possa guiar seus primeiros passos. (TAVORA, 2001, p. 23).

O aprendiz, ao entrar em contato com outra visão de mundo e pessoa, movimenta-se, ao passo da sua disponibilidade, no entanto, somente esses conteúdos teóricos não são suficientes para a formação, “a capacitação teórica é apenas, a fase inicial do desenvolvimento dos jovens terapeutas. [...] a identidade profissional não surge como função direta da apreensão técnica.” (PREBIANCHI; AMATUZZI, 2000, p. 62). A supervisão também se afigura enquanto trabalho preventivo, Boris, em flagrante sintonia com Prebianchi e Amatuzzi, alerta:

A precariedade de seu auto suporte interno pode levar o psicoterapeuta iniciante a buscar apoio excessivo no uso de técnicas ou mesmo na adesão rígida à teoria que fundamenta seu referencial psicoterápico em detrimento do desenvolvimento de uma atitude compreensiva, escamoteando sua própria insegurança. Assim, o psicoterapeuta iniciante percebe-se diante de uma lacuna angustiante: ao mesmo tempo que se percebe limitado a respeito do manejo adequado do referencial teórico- técnico que fundamenta a sua prática, é inexperiente em vivências pessoais e profissionais que possam lhe proporcionar maior confiança em si mesmo. É comum que se enfatize a importância essencial do embasamento teórico do psicoterapeuta, mas é menos frequente que se discutam os riscos de um apego à teoria, ou seja, a tendência de muitos psicoterapeutas iniciantes a servir à teoria como uma defesa contra suas próprias dúvidas, adotando uma atitude formal, intelectual ou perfeccionista. (BORIS, 2008, p. 169).

Não fazemos aqui um discurso binário-dicotômico, que hierarquize afluentes, isso não faz o menor sentido. O estagiário, que, em constante, sincera e honesta busca por conhecimento transformador, precisa dos conteúdos teórico-formais para ampliar sua visão de mundo e homem, assim como, para se instrumentalizar, mas, sem manter uma postura servil diante da teoria. Assim como, precisa do espaço formativo-integrador da supervisão – além dos outros espaços que citamos no início do capítulo.

O que faria o estagiário escutar o vento “que só fala vento” e não de tantas cousas que não foram, de memórias ou de saudades? Como nos diz Alberto Caeiro. Como o aprendiz não se envereda por caminhos sedutores? Caminhos prescritivos, caminhos de suposta “ajuda incondicional”, ou mesmo de algo da ordem do encantamento, do perigo de uma vaidade

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TAVORA, Mônica Teles. Treinamento em psicoterapia individual, de grupo e de casal: um guia para supervisores e terapeutas iniciantes. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial, 2001.

34 triste. Como pode estar “sem preestabelecer nada, sem dar asas a seu complexo de onipotência de que poderá curar, mudar as pessoas, mas vendo e tratando o cliente como um valor existencial”. (RIBEIRO, 2013, p. 24).

Jorge Ponciano inspirado por Edward W. L. Smith7 escreve:

Quanto mais alguém for bem sucedido numa experiência de Gestalt-terapia tanto mais ele estará consciente de si próprio e centrado, e tanto mais ele será intolerante com as forças destrutivas e convenções da sociedade atual. A Gestalt-terapia não é uma terapia de adaptação, mas uma terapia de auto-atualização.

Essa afirmação vale, sobretudo, para o Gestalt-terapeuta, que desse ser alguém em íntima harmonia consigo próprio. Tal exigência vale para qualquer forma de psicoterapia, mas o gestaltista evita assumir qualquer atitude de interpretação, de imposição de conteúdos. Ele trabalha em íntima coerência com as necessidades básicas do cliente, sem se ater muito ao que a sociedade espera que ele faça. (RIBEIRO, 1985, p. 123-124).

Nesse momento, que estamos em um grande rio, nos valeremos de duas assertivas de Jorge Ponciano para nos encaminharmos ao fim deste capítulo:

Quando se trata da questão humana, do interferir na existência do outro ou quando esse outro chama alguém para interferir na sua existência, estamos, de novo, lidando com o poder pessoal intransferível, que abre suas portas a outrem pedindo que entre e faça alguma leitura do seu universo, ajude-o a revê-lo e a solucionar questões que sozinho não consegue.

Acredito que só quando se vive uma postura autenticamente amorosa é possível encontrar a estrada do meio, entrar sem arrombar, semear sem esperar ter de colher, de dar as mãos sem conduzir. (RIBEIRO, 2009, p. 156).

Dedicamos especial atenção e carinho às próximas palavras de Jorge Ponciano:

O terapeuta não faz, ele se faz com o outro. Desce a corredeira no mesmo barco que o cliente e apenas discute com ele a melhor opção. A escolha da melhor passagem é do cliente. O terapeuta discute com ele o melhor caminho e o ajuda a visualizá-lo. (RIBEIRO, 2009, p. 36).

É uma imagem que muito enriquece nossas linhas. E novamente paramos.

Para nos perguntarmos: o que sustenta a produção desse ethos – exposto acima por Ponciano – no espaço formativo da supervisão?

Temos uma aposta.

Acreditamos que o que sustenta a produção desse ethos, esse conjunto de valores da Abordagem Gestáltica, é a filosofia dialógica de Martin Buber, vista enquanto proposta ética.

A filosofia dialógica de Buber propõe uma postura relacional no inter-humano, uma ontologia da relação, uma filosofia do encontro Eu-Tu: “Sua proposta de se compreender a realidade humana através do prisma do ‘dialógico’ é um exemplo do

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vínculo entre a experiência vivida e a reflexão, entre o pensamento e a ação. (ZUBEN, 2003, p. 146).

Acreditamos que o espaço formativo da supervisão de estágio é a terra que dá os nutrientes necessários para uma transformação existencial indispensável do aprendiz, em especial no que tange o seu fazer, enquanto ethos dialógico. Gestalt-terapia enquanto Abordagem dialógica, o “terapeuta é visto como ‘alguém que está a serviço do dialógico’. Isso significa, no seu sentido mais profundo, que a individualidade do terapeuta rende-se (pelo menos momentaneamente) ao serviço do ‘entre’.”. (HYCNER, 1995, p. 55-56).

É uma aposta, pretendemos seguir nessa senda futuramente, hoje, não posso lhes dar garantias.

Preciso, antes, me tornar canoeiro, especialmente, com mais tempo de navegação no grande rio da vida. Se vamos escrever esse novo trabalho, com esse tema enquanto objeto do des-cobrir, não sei, mas, é o que desejamos.

Gostaríamos de navegar para o encerramento do presente capítulo nas palavras Richard Hycner, que costurou a proposta dialógica de Buber em uma abordagem dialógica:

[...] em uma psicoterapia de abordagem dialógica, o terapeuta caminha sempre por uma “vereda estreita”. Buber usou essa expressão para descrever sua filosofia de responder a um momento único, em vez de adotar um sistema filosófico que fornecesse respostas abstratas sem relação com a realidade única presente. Isso também aplica-se ao trabalho do psicoterapeuta. O terapeuta não “[...] descansa no planalto amplo de um sistema que inclui uma série de pressupostos acerca do absoluto, mas caminha sobre uma vereda estreita e pedregosa que permeia os abismos, onde não há segurança do conhecimento expresso, mas a certeza do

encontro que se mantém não revelado” [grifos do autor] (BUBER8, 1965, p. 184).

Isso não significa que o terapeuta esqueça completamente todo o conhecimento adquirido no treinamento, mas trata-se de um conhecimento temperado pela percepção da pessoa como um todo e do que essa pessoa única precisa em determinado momento. Durante toda a terapia, há uma dialética entre enfatizar a objetividade e a subjetividade. Mesmo aqui, ela se desenrola no “entre”. (HYCNER, 1995, p. 56).

Fluímos até aqui.

Passamos pelos igarapés, que nos mostraram as bases teóricas e filosóficas do conceito processual de pessoa. Nos propomos a escrever sobre o quanto o estagiário tem seu olhar lapidado quando em contato com esse conceito processual de pessoa da Gestalt-terapia. Chegamos a um encontro de rios, o conteúdo teórico-formal-in-formativo e o espaço formativo da supervisão. Nos permitimos escrever sobre a importância da supervisão e suas consequências. Para além, nos arriscamos, por fim, a propor de forma curiosa (no sentido de desejarmos nadar nessas águas futuramente quando tivermos mais experiência), que o que

36 sustenta o ethos produzido pela Abordagem Gestáltica é a filosofia dialógica de Martin Buber, se vista enquanto proposta fundamentalmente ética e o espaço da supervisão seria o lócus onde o aprendiz transmuta tudo que vivencia no período de estágio.

No quinto capítulo pretendemos dividir com a leitora e o leitor nossa experiência de estágio, traremos a versão de sentido inventada por Mauro Amatuzzi enquanto potente ferramenta de trabalho e a tentativa de costurar o pouco que já foi escrito até aqui.

Todo rio tem sua foz.

Nesse sentido, o psicólogo é a foz desses muitos rios que citamos.

No entanto, concordamos com Guimarães Rosa (1994, p. 620): “o rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo.”, pois, nós, enquanto psicólogos, somos na verdade um devir-foz.

O processo de formação nunca termina.

XI

Vê formaram-se sobre todas as águas Todas as nuvens.

Os ventos virão de todos os nortes. Os dilúvios cairão sobre os mundos. Tu não morrerás.

Não há nuvens que te escureçam. Não há ventos que te desfaçam. Não há águas que te afoguem. Tu és a própria nuvem. O próprio vento.

A própria chuva sem fim... (MEIRELLES, 2003, p. 31).

Figura 3 - Imagem de satélite do Delta do Amazonas, sua foz no oceano Atlântico. Fonte: NASA, 1990.

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