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3. Capítulo II: Igualdade na oposição: as misteriosas relações entre

3.4. Riobaldo x Diadorim

Tratarei, agora, especificamente, da relação entre Riobaldo e Diadorim. O herói, que carece de filiação paterna: “[...] eu não tive pai;” (ROSA, 2001, p.

28Esta relação entre o diabo, o mando e o dinheiro é recorrente na literatura ocidental. Fiquemos

com dois exemplos: Ivan Karamázov, no monumental romance de Dostoiévski, tem um delírio no qual o diabo irrompe do pacote de dinheiro que ele recebeu de Smierdiákov, seu irmão bastardo e seu duplo, após o assassinato do velho Fiódor Karamázov: o dinheiro, símbolo do poder de um pai em negativo, é uma verdadeira manifestação do princípio diabólico – não à toa, o velho pretendia comprar a noiva do filho Dmítri com a quantia da qual o diabo surge. Na segunda parte do “Fausto”, de Goethe, Mefistófeles cunha o papel moeda, levando o Imperador cujo reino é desejado por Fausto à derrocada. O tesouro do reino foi dilapidado pela corte, então, ludibriando os súditos com o valor ilusório das cédulas sem fundo, Mefisto desencadeia uma guerra cujo único beneficiado será Fausto.

77 57), é regido, inicialmente, pelo elemento feminino, voltando-se mais para a divagação, que para as atitudes, as quais ele desempenha especialmente como mediador, sofrendo a influência de outrem, sobretudo de Diadorim. Diadorim, em

contrapartida, que desconhece filiação materna: “...Pois a minha (mãe) eu não

conheci...” (ROSA, 2001, p. 57) (Grifo meu), é regido pelo elemento masculino, buscando vingar o pai morto, objetivo que espera atingir induzindo Riobaldo a realizar feitos que, em verdade, lhe foram imputados, como nascida “[...] para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” (ROSA, 2001, p. 620-621). Assim, os dois personagens encontram-se tão implicados que “trocam” gênero e destino. Como afirma o narrador-

personagem: “o Reinaldo - que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe

minha vida;” (ROSA, 2001, p. 334) Mesmo os seus nomes assinalam essa “mistura”, começando pela letra “R”, e findando com o sufixo “-aldo”, numa

relação de quase homofonia: “― “Riobaldo... Reinaldo...” ― de repente ele

(Diadorim) deixou isto em dizer! ― “...Dão par, os nomes de nós dois...” A de

dar, palavras essas que se repartiram!” (ROSA, 2001, p. 160) (Grifo meu) Segundo Ana Maria Machado, “O Nome Riobaldo evoca, em primeiro lugar, por sua sonoridade, os Nomes dos brilhantes guerreiros germânicos.” (MACHADO, 1991, p. 35); “Reinaldo é também um Nome guerreiro de origem germânica” (MACHADO, 1991, p. 37).

Em momento de grande impasse na chefia do bando dos “ramiros”, no limiar de uma disputa entre Zé Bebelo e João Goanhá, Riobaldo firma o pacto diabólico e arrebata o comando do grupo de jagunços, mas, mais do que isso, ele acaba com o equívoco que caracterizava sua relação com Diadorim,

libertando-se da tirania do amigo/amor que “[...] gostava de mandar, primeiro

mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras.” (ROSA, 2001, p. 165). Em passagem enigmática, o herói afirma: “Eu sei: quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.” (ROSA, 2001, p. 568) Após a emancipação de Riobaldo, Diadorim passa a figurar com menos intensidade no romance: “Desde que eu era o chefe, assim eu via Diadorim de mim mais apartado” (ROSA, 2001, p. 480). Então, o herói torna-se inequivocamente “o homem”, o elemento ativo do binômio Riobaldo/Diadorim, definindo-se como “Capitão”, anagrama de “pacto” (MAZZARI, 2010), quando entoa em marcha com os jagunços: “O Sertão é a sombra minha/E o rei dele é

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Capitão!...” (ROSA, 2001 p. 479) E Diadorim, por sua vez, se converte na mulher que o segue por amor:

Mas Diadorim repuxou freio, e esbarrou; e, com os olhos limpos, limpos, ele me olhou muito contemplado. Vagaroso, que dizendo:

– “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia...”

Demorei que ele mesmo por si pudesse pôr explicação. E foi ele disse: – “Por vingar a morte de Joca Ramiro, vou, e vou e faço, consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que indo vou não com meu coração que bate agora presente, mas com o coração de tempo passado... E digo...”

Afirmo que não colhi a grã do que ele disse, porque naquela hora as idéias nossas estavam descompassadas surdas, um do outro a gente desregulava. [...]

Duvidei pouco. Diadorim não temia. O que ele não se vexou de me dizer:

– “Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir...”

Nem considerei. – “É, o Hermógenes tem de acabar!” – eu disse. Diadorim, ia ter certas lágrimas nos olhos, de esperança empobrecida. Me mirava, e não atinei. Será que até eu achasse uma devoção dele merecida trivial? Certo seja. Não dividi as finuras. (ROSA, 2001, p. 549-550)

Assim, quando Riobaldo passa a liderar o bando de jagunços, o Diadorim orgulhoso de antes dá lugar a uma figura subordinada, que chega a imbuir-se de um caráter sacrificial em relação ao herói, preocupando-se com a salvação de

sua alma29: “[...] Riobaldo... Você quer dansação e desordem... [...] A bem é que

falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudado, em você, é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...” (ROSA, 2001, p. 484)

29Aqui, o Diá, de Diadorim, que também é abreviação do nome do diabo, pode ser lido como “[...]

dea, referindo-se ao outro polo, Deus [...].” (MACHADO, 1991, p. 40) Segundo Augusto de Campos, “Esse nome – DIADORIM – é um caleidoscópio em miniatura de reverberações semânticas, suscitadas por associação formal. Arrostando o perigo de uma simplificação, tentamos demonstrar o aparelho vocabular, obtendo os seguintes fragmentos básicos, alinhados em dois grupos:

a) Dia + adora b) Diá + dor + im

Assim em dois planos de significado (deus ou o demo, sempre) se bifurca, desde o nome, essa criatura “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” O que existe de ser e de amor em Diadorim é representado pela vertente a) Dia + adora. O que há de não-ser, pela vertente b) Diá (diabo) + dor.” (CAMPOS, 1991, p. 339) O prefixo grego – Dia, constante no nome Diadorim, significa “através de”. Sob o prisma da segunda vertente do nome do personagem, conforme a divisão de Haroldo de Campos, o – Dia poderia indicar o rito de passagem pelo qual passa Riobaldo, sob a influência da donzela- guerreira, que se dá “através” da dor.

79 E morrendo em seu lugar ao fim do livro, o que, de fato, era o seu destino, mas, como Riobaldo era o chefe, urgia que ele se batesse com o Hermógenes no confronto derradeiro.

Entretanto, apesar de Riobaldo ter se “apartado” de Diadorim, impondo- se como figura masculina dominante, sua “sombra”, o diabo, o Hermógenes (estopim da vingança que obseda o amigo), ainda paira sobre a donzela- guerreira, impedindo que Riobaldo consiga discernir o feminino nela. Então, na batalha final, morre o Hermógenes, o diabo corporificado, mas resta “[...] o estilo dele, solto, sem um ente próprio” (ROSA, 2001, p. 499), na forma da dúvida e da confusão. Por isso, mesmo diante do corpo nu de Diadorim, ou Maria Deodorina, Riobaldo parece não compreender o mistério revelado. Esta última “confusão” faz com que o jagunço conviva até a velhice com o fantasma do amigo/amor perdido. Assim, a identidade, o destino, e a afetividade de Riobaldo, são inarredáveis de sua relação com a donzela-guerreira.