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4. Narrativas da mudança, narrativa em transformação

4.3. Riobaldo narrador: o discurso e o riso

É também por intermédio da linguagem que se desenvolve a verdadeira batalha da Fazenda dos Tucanos. As oscilações do caráter de Riobaldo cedem à firmeza com que ele abarca a idéia de tomar o comando graças à suposta traição do chefe, Zé Bebelo, que, por sua vez, é percebida através de indícios lingüísticos. Ou ao que acreditamos ser indícios, já que todo o episódio passa pelo filtro narrativo nem um pouco ingênuo da personagem principal.

O embate psicológico entre Riobaldo e o chefe constrói-se com base em uma disputa discursiva: quando chegam à Fazenda dos Tucanos, Riobaldo tinha Zé Bebelo em alta conta: “A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além de que Zé Bebelo comandava.” (GSV, 336).

A primeira mostra de que esse comando poderia ser posto em xeque não é dada, como se poderia esperar, por um ato do chefe ou por um fato da guerra. É através da sutileza da entonação de uma frase que o jagunço começa a desmontar a imagem da

autoridade do outro: “(...) ele falou, mais baixo, meio grosso – com o que era uma voz de combinação, não era a voz de autoridade” (GSV, 343).

O enunciado falado, em si, “- Riobaldo, Tatarana, vem cá...” (GSV, 343), não é o mais importante, embora repita a forma dual à qual se referiu: o nome de Riobaldo é dito uma vez, depois se repete o chamado e se acrescenta outro conteúdo: “vem cá”. A utilização do nome duas vezes, mesmo que não seja exatamente o mesmo – como no conceito do eterno retorno – reforça a idéia da tentativa de estabelecimento de uma proximidade sugerida pela descrição da “voz de combinação”. O primeiro é o nome de batismo que o acompanhou durante toda a vida, o segundo é seu apelido como jagunço, e a presença de ambos apela para as várias faces da personagem.

Mas o primeiro indício da traição está presente mais na forma como o chefe o chama que no simples fato de tê-lo chamado. É um indício discursivo, vinculado à fala, que aparece dentro de um diálogo no meio dos jagunços. Ele é expresso na esfera da linguagem partilhada por todos os participantes do bando: está vinculado ao grupo de jagunços reunidos na Casa.

O segundo indício vem com a ordem repetida duas vezes: “- Escreve.” (GSV, 344). É uma forma também dual, em que à primeira ordem soma-se a segunda, acompanhada de uma ação.

Esse indício confirma a idéia de combinação ao instituir a escrita como forma lingüística daquele momento. Não se pode esquecer que Riobaldo havia sido professor de Zé Bebelo: a linguagem escrita era partilhada por eles, funcionando como um símbolo da história que os unia. História, diga-se de passagem, que depunha contra o chefe, pois era a memória do tempo em que ele se fez em armas para lutar contra os homens que agora comandava.

O laço afetivo iniciado pela “voz de combinação” é reforçado pela referência à relação entre aluno e professor mediada pelos aparatos materiais encontrados na sala. Zé Bebelo maneja muito bem essa passagem através da troca do rifle pelo papel e lápis e do oferecimento da “cadeira, cadeira alta, de pau, com recosto” (GSV, 344). Por meio de arranjos simples, ele transfere o curso da história da ação para a linguagem e subverte a distância hierárquica entre subordinado e chefe pelo compartilhamento dos símbolos de

status presentes no mobiliário. Nesse trecho, contudo, as marcas discursivas são ainda

O terceiro indício é dado pelos próprios bilhetes escritos, encerrados “com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a Paz e a Constituição da Lei! Assinado: José Rebelo

Adro Antunes, cidadão e candidato.” (GSV, 346).

O percurso em direção à escrita é completado com a utilização de uma linguagem formal e oficial, que a um só tempo exclui os demais jagunços do bando – pois não contém a forma oral que é a linguagem que partilham – e quebra a familiaridade que havia sido criada entre Zé Bebelo e Riobaldo – pois coloca em jogo vinculações externas com o Estado. Agora, o foco não está mais na história partilhada por eles, mas num futuro em que só cabem as denominações oficiais, a História, e que por isso só pode ser ocupado por Zé Bebelo sozinho.

O embate vivido entre o jagunço e seu chefe começa tendo como base marcas lingüísticas e mudanças discursivas. Da entonação – marca oral – passando pela ordem de se trocar o desenrolar físico da guerra pela escritura dos bilhetes – marca híbrida – até chegar à escrita oficial que dá o tom das missivas – marca escrita – o contínuo percorrido leva do que é geral – partilhado pelo bando inteiro – para o particular – partilhado por Zé Bebelo e Riobaldo – e finalmente para o que é público – partilhado entre Zé Bebelo e o poder central.

Cada uma dessas transformações é acompanhada por perguntas que o jagunço faz a si mesmo e ao interlocutor, que, como já dissemos, são estratégias retóricas para confirmar suas próprias suposições,

A ver, o que ele quisesse de mim? (GSV, 343).

Escrever, numa hora daquelas? (GSV, 344).

até chegar à idéia completamente formada e finalmente enunciada: “A em pé, agora formada, eu conseguia a alumiação daquela desconfiança. Assim. Em que maldei, foi: aquilo não seria traição?” (GSV, 346).

As mudanças discursivas que Riobaldo põe na boca e nos atos de Zé Bebelo ganham reflexo em sua própria forma narrativa. Na medida em que a possibilidade de traição é antevista e confirmada e em que acontece a progressiva mudança no caráter ambíguo da personagem, a linguagem de que se utiliza ganha uma roupagem nova, própria do comando, abalizada pela certeza tanto de sua capacidade de pensar o acontecido quanto de dizê-lo “às claras”.

A relação de Riobaldo com seu interlocutor segue o mesmo percurso, com o narrador ganhando segurança sobre sua maneira de contar conforme o que conta é mais favorável a ele. Os recursos narrativos utilizados são variáveis, recorrendo-se a expedientes diferentes de acordo com o que deseja exprimir. Sintomática dessa variação é o diálogo entre o jagunço e o chefe após Riobaldo se dar conta da idéia de traição. É um dos únicos diálogos no livro cujos interlocutores estão claramente enunciados.

Ele disse: - ‘Tenho amigo nenhum, e soldado não tem amigo...’ Eu disse: - ‘Estou ouvindo.’

Ele disse: - ‘Eu tenho é a Lei. E soldado tem é a lei...’ Eu disse: - ‘Então, estão juntos.’ (GSV, 351)

O embate prossegue sempre relatado do mesmo jeito: um disse, o outro disse. É ainda uma forma dual, que relaciona, dessa vez, dois lados opostos e suas ações. A reiterada repetição cria o lapso de tempo entre uma fala e sua resposta, dando conta dos momentos de silêncio que, com outra forma de narrar, não poderiam ter sido percebidos pelo ouvinte. Assim, recria-se, ao contar, a tensão própria do momento vivido. Tensão que é reforçada por outras manifestações não-verbais, embora extremamente discursivas, de que o narrador se utiliza para contar a história:

Ele disse: - ‘Escuta, Riobaldo, Tatarana: você por amigo eu tenho, e te aprecêio, porque vislumbrei tua boa marca. Agora, se eu achasse o presumido, com certeza, de que você está desconcordando de minha lealdade, por malícias, ou de que você quer me aconselhar canalhagem separada, velhaca, para vantagem minha e sua... Se eu soubesse disso, certo, olhe...’

Eu disse: - ‘Chefe, morte de homem é uma só...’ Eu tossi.

Ele tossiu. (GSV, 351)

A tosse pontua outro silêncio, representativo do adiamento de uma definição, do tempo propositalmente esticado para garantir a reflexão antes da tomada de decisão.

O jagunço, ao contar sua história, maneja muito bem os recursos discursivos de que dispõe, criando para seu ouvinte sua forma de ver os acontecimentos. Da mesma forma, Guimarães Rosa, como o responsável pela criação da narração de Riobaldo, maneja os elementos da linguagem escrita de forma a dar a ela elementos da linguagem oral sem, contudo, perder as pausas e os silêncios que somente seriam possíveis de serem percebidos ao se ouvir, e não ler, a saga.

Por isso é tão importante a utilização da linguagem dual a que se referiu. Ela é a responsável por forjar essa ilusão de oralidade, criando através da repetição o silêncio. Quando diz tudo o que conta duas vezes, é como se a segunda marca ficasse apagada para deixar entrever uma pausa. A segunda vez que se diz algo não tem mais função informativa, posto que tudo o que ela exprime já fora dito na primeira vez. Isso não quer dizer, no entanto, que ela não tenha significado: é pela anulação da informação contida que o enunciado adquire sua função discursiva, extremamente importante para o desenvolvimento narrativo.

No diálogo entre Riobaldo e Zé Bebelo, a repetição do “ele disse”, “eu disse” cria a tensão dos momentos de silêncio entre a pergunta e a resposta. No início do tiroteio, a repetição das ações duas vezes – “E deram um tiro. Deram um tiro, de rifle, mais longe. (GSV, 340)”. – cria o lapso de tempo entre o que acontece e a consciência do fato para o narrador. Em todos eles, a substituição do que é dito pelo que não se pode escrever, mas que é percebido, é a razão da reiteração tantas vezes presente no episódio da Fazenda dos Tucanos.

Note-se que é exatamente o oposto da forma, também dual, da alusão à canção de Siruiz. Lá, a primeira canção não é repetida para a adição dos novos versos compostos por Riobaldo. Ao contrário, ele apenas faz menção à primeira quando explica seu poema. Com isso, o efeito conseguido é também oposto: ao invés de anular

o significado da primeira para substituí-lo pela indicação da falta e do silêncio, é justamente a falta e o silêncio da primeira canção que resgatam o seu significado.

A linguagem recria o clima da narrativa ao garantir as pausas que não poderiam ser percebidas de outra forma, e estes elementos se destacam pela sua função de marcadores discursivos não-verbais na história.

O mais importante deles no trecho da Fazenda dos Tucanos é, sem dúvida, o riso. Ele aparece ao longo do episódio, sempre vinculado ao movimento das batalhas física e psicológica. Está vinculado à lógica da guerra, e somente aí pode ser entendido pelo leitor/ouvinte ou pelos próprios participantes da narrativa.

Para Nietzsche, o ser dionisíaco deveria ser vivido, porque aquele que brinca, que não se leva a sério, está acima dos demais, embora carregue consigo as sementes da destruição. Rir é demolir o antigo para permitir o surgimento do novo, é desestabilizar estruturas. Só quem tem segurança pode usar o riso como arma. Na maior parte do relato, Riobaldo é sério: ele estava tentando ascender, por isso não consegue brincar com a estrutura vigente: ele se move dentro dela, não a está olhando de fora. Mesmo no final da sua vida, é de dentro da estrutura que ele olha e, por isso, o que mais almeja é a

alegria e a coragem, sinais de que já teria conseguido assegurar sua posição e de que já

poderia ter uma visão externa, cômica, daquilo.

É por isso também que o riso, no relato da Fazenda dos Tucanos, aparece sempre vinculado à sua trajetória de ultrapassagem de Zé Bebelo, decisão de tomar o comando, surgimento de dúvidas internas e desistência de ser chefe (ao menos temporariamente). A primeira vez em que o riso aparece no trecho é no momento já comentado do início do tiroteio, em que Riobaldo estava num “apatetar” exposto pela linguagem dual a que se referiu. A personagem principal ainda não estava completamente inserida no contexto da guerra, estava numa espécie diversa de realidade: “Atiravam nas construções da casa. Diadorim sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos.” (GSV, 341).

Olhando do ponto de vista de quem está alheio à batalha, o riso de Diadorim parece improvável, posto que é um marco discursivo apenas coerente pra quem partilha de todo o contexto em que se insere. Contudo, como bem pontua Minois quando fala do riso nos mitos gregos:

Evidentemente, riso e alegria aí são totalmente alheios um ao outro. O corpo é sacudido por convulsões e a face crispada por um ricto de morte. O riso pode, assim, ser a reação fisiológica do títere que toma consciência de seu aniquilamento. (Minois, 2003: 29)

De Riobaldo a única resposta que mereceu foi um olhar longuíssimo, próprio de quem lida com um louco. Com um louco, ou com a face mais instintiva e menos controlada do homem – tão selvagem que se assemelha àquele que Riobaldo vai procurar para finalmente ultrapassar Zé Bebelo e assumir a chefia: o demo.

No início da história, o primeiro caso relatado chamava atenção para essa associação:

Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. (GSV, 23)

A deformidade do bezerro, que o fazia parecer com uma pessoa rindo, é a mesma que se processa em Diadorim quando “sacripante” ri: ele encolhe um só ombro, desfaz a simetria natural da imagem humana e, tal qual o bezerro, se deforma, fica “erroso”, errado.

(...) o riso é ligado à imperfeição, à corrupção, ao fato de que as criaturas sejam decaídas, que não coincidam com seu modelo, com sua essência ideal. É esse hiato entre a existência e a essência que provoca o riso, essa defasagem permanente entre o que somos e o que deveríamos ser. O riso brota quando vemos esse buraco intransponível, aberto sobre o nada e quando tomamos consciência dele. É a desforra do diabo, que revela ao homem que ele não é nada, que não deve seu ser a si mesmo, que é dependente e que não pode nada, que é grotesco num universo grotesco. (Minois, 2003: 113)

Mais à frente, quando os soldados do governo finalmente chegam à fazenda, é o chefe quem serve de reforço para a idéia da relação do riso com o diabo:

- ‘Aí, está ouvindo, Tatarana, Riobaldo, está ouvindo?’ – ele disse, com um sorriso de tão grandes brilhos, que não era de ruindade nem de bondade. (...) Zé Bebelo trepava em altas serras. Duvidava de nada. Que vencia! Quem vence, é custoso não ficar com cara de demônio. (GSV, 372)

E, um pouco antes:

Ele já estava sem jogo nenhum no corpo, as partes das pernas se esfriavam. Antes quase rindo se acabou; ficou tão de olhos. – ‘O que é que ele vê? Vê a vitória!...’ – Zé Bebelo se cresceu no dizer. (GSV, 371)

Note-se que, em todos esses trechos, se acumulam elementos vinculados ao riso: o demônio, a guerra, a deformidade e a morte. O episódio da Fazenda dos Tucanos é a primeira vez em que Riobaldo toma a decisão que só vai se efetivar após o pacto que o liga definitivamente à figura do demo: assumir a chefia. O riso, manifestação do diabo, é usado para marcar o embate entre o jagunço e o chefe: os risos de um e de outro indicam a guerra entre ambos, as vitórias passageiras que conseguem sobre o outro e a sempre constante ameaça da morte.

O riso de Riobaldo e o de Zé Bebelo seguem a lógica da batalha psicológica que travaram e indicam muito bem as oscilações de poder que se verificaram com o desenrolar dos acontecimentos:

Se riu, qual. Riu? Eu sendo água, me bebeu; eu sendo capim, me pisou; e me ressoprou, eu sendo cinza. Ah, não! Então, eu estava ali, em a-cú acôo de acuado?(GSV, 349)

Ah, e feio ri; porque estava com vontade. Aí pensei que ele fosse logo querer o a gente se matar. A sorte do dia, eu cotucava. (GSV, 351)

Zé Bebelo me ouviu, inteiramente. As surpresas. Ele expôs uma desconfiança perturbada. Esticou o beiço. Bateu três vezes com a cabeça. Ele não tinha medo? Tinha as inquietações. Sei disso, soube, logo. Assim eu tinha acertado. Zé Bebelo então se riu, modo generoso. (GSV, 367)

O riso pode ser um indicativo da subjugação do outro, da tentativa de mascarar as más intenções ou da consciência da inferioridade, mas de qualquer maneira é sempre um marcador discursivo não-verbal relevante, porque revela o que as palavras não poderiam expressar naquele momento. Ele é um índice do movimento espelhado da narrativa, indicando a oscilação da firmeza de caráter do narrador de acordo com a alteração do julgamento que faz do chefe:

E eu ri, ah, riso de escárneo, direitinho; ri, pra me constar, assim, que de homem ou de chefe nenhum eu não tinha medo. (GSV, 351)

Outros receios eu concebendo. O prazo que ali assim íamos ter de tolerar, no carrego da guerra. (...) Agora, de Zé Bebelo eu risse. (GSV, 368)

A tanto, cri, acreditado. Sabia que Zé Bebelo era muito capaz. Só não ri. (GSV, 372)

Riobaldo só ousa rir de Zé Bebelo quando este parece ultrapassado, quando está sob a mira crítica do jagunço. Somente quando a posição de chefia está ameaçada é que o comandante vira alvo de escárnio: deslocado da lógica local, ele pode virar uma personagem cômica. Nesse sentido, o riso aparece, nas palavras de Minois, como agressão e triunfo: “O riso é malevolente, ele afirma o triunfo sobre o inimigo. (...) O riso humilha e provoca. É uma arma duvidosa que se encontra em todas as situações de conflito.” (Minois, 2003: 43).

Joca Ramiro, Diadorim, Medeiro Vaz e Otacília são sempre vistos de maneira séria, porque representam a ordem dentro da qual Riobaldo ascendia. Já Zé Bebelo se equilibra numa corda bamba: ele é uma figura híbrida, que não se encaixa nos padrões da realidade sertaneja. Quando está inserido na lógica jagunça, é respeitado; quando se afasta dela, pode ser objeto de riso. O mesmo ocorre nos grandes épicos gregos:

O que chama a atenção na Ilíada e na Odisséia, e que numerosos outros relatos confirmam, é o uso antes de tudo social, coletivo do riso e seu duplo papel de exclusão-coesão. O grupo reforça sua solidariedade pelo riso e manifesta sua rejeição do elemento estranho por esse mesmo riso. (Minois, 2003: 43)

O mesmo acontece com outras personagens desajustadas naquela realidade, como o alemão Vupes e os catrumanos. O diferente é cômico, e isso era grande fonte de aflição para Riobaldo. Afinal, a intenção dele era a de se mover dentro do sistema jagunço, apesar de estar contestando os preceitos desse mesmo sistema ao tomar a chefia sem ser um coronel de posses. Ele quer ser diferente, é certo, mas sem dar margem para o cômico: ele espera ser diverso sem ser ridículo.

Antes, no caso da linguagem dual, eram as palavras da narrativa que indicavam para o interlocutor/ouvinte/leitor uma informação não-verbal relevante. Agora, é uma marca discursiva não-verbal que indica para os próprios participantes da história a existência de informações que não podiam ser verbalizadas naquele contexto.

Justamente por isso, o significado do riso está firmemente vinculado à participação ativa nos episódios, ao compartilhamento de uma mesma realidade vivida e narrada. Quando se refere ao riso de guerra de Diadorim ou ao dos demais companheiros em batalha, a manifestação parece um despropósito, uma afronta vã ao destino, um ato de quem não tem consciência da gravidade da situação. Contudo, quando o próprio Riobaldo ri, ele o faz para mostrar que sabe com o que está lidando, que conhece a transgressão que se permite, que tem o direito de afrontar o destino – “A sorte do dia, eu cotucava.” (GSV, 351). É preciso fazer parte do que acontece para entendê-lo.

Nesse contexto, pode-se compreender melhor a identificação de Riobaldo com outros elementos do episódio: a Casa, que reverbera as expressões de sua alma, e os cavalos, sacrificados exalando o seu discurso. Eles são parte do jagunço, logo são narrados como reflexos do que ocorre no seu psiquismo e, o que interessa para o presente capítulo, como manifestações narrativas profundamente vinculadas à personagem.

Durante a matança dos cavalos, discurso do narrador se torna pleno de angústia. As frases se tornam maiores, porém mais entrecortadas: é como se ele contasse com a respiração acelerada, descompassada, impregnado do terror do momento.

Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus nem justiça de coração, se viravam para judiar e estragar, o rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a torto e direito, fazendo fogo! (GSV, 355)

Para Riobaldo, os animais agonizantes são sinais do despoder do homem frente à morte – a escuridão da cantiga, o que eu não entendo – trazendo consigo não apenas o sofrimento incontrolável, mas principalmente uma fraqueza da coragem.

A mesma coragem que o permite rir de Zé Bebelo e almejar a chefia é o que não

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