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Rituais e rotinas: uma apresentação da Gangrena

O show da Gangrena Gasosa na Lona Cultural de Anchieta apresentou um caso clássico de divergência de públicos. Além de contar com muito mais motociclistas do que habitualmente vejo nos eventos da Gangrena, parte do público deste dia aparentava ser iniciante no rock extremo. Isto foi se confirmando ao longo do tempo que estive no local, em conversas travadas no momento posterior ao show, e nas gafes observadas em relação aos elementos sensoriais utilizados pela banda. Admito a dificuldade em corresponder à prática estimada, já que a banda choca até mesmo os mais experientes no underground.

Gangrena Gasosa tem uma perspectiva forte, intransigente e debochada. A banda toda é um conceito. Não é à toa que reivindicam uma tag exclusiva para o que fazem – “saravá metal” –, apesar de seguirem vinculados ao subgênero hardcore. É absolutamente possível e comum pertencer a duas ou mais tags: bandas são complicadas, passam por diversas fases e bebem de múltiplas fontes estilístico-musicais.

Talvez, e é viável, essa diferença na ação do público tenha acontecido primeiro pelo preço do ingresso, onde o antecipado custava mero 10 reais; segundo, pela criação de acessibilidade para outro tipo de gente que não pode ou não quer ir aos shows no Centro; e terceiro, que, pela mesma razão do segundo ponto, tenha havido uma diminuição dos frequentadores habituais. Até porque, entre outras coisas possíveis, no mesmo dia e horário da apresentação da Gangrena, que estava

acontecendo muito longe do Centro do Rio, ocorria um ótimo evento na Planet Music (Cascadura) – o que dividiu o público. As fotos postadas nas mídias sociais pessoais e do evento atestam.

Então, esse acabou sendo um show um pouco diferente dos anteriores. Um dos graves prejuízos nesse dia, e o falo enquanto aficionada pela banda, ocorre quando interferem no ritual de apresentação. Decorreu pela antecipação no uso das tigelas de pipoca, ao passo de que existia música e momento propício, ensaiado e ritualizado para ser lançada ao público; e que foi antecipada por ansiosos desconhecedores da trama.

No momento em que “desperdiçavam” a pipoca – comendo e jogando no mosh –, doeu meu coração em saber que parte do cenário o qual se sustenta a apresentação fora danificado. Também senti falta dos efeitos de fumaça e iluminação, que alimentam o imaginário do obscuro. Esse sentimento sugeriu, para mim, a importância desses elementos acessórios à apresentação de palco – menos para as bandas punk e mais no caso das bandas de metal, cuja apresentação é teatralizada. Death, black, algumas bandas thrash e goregrind fazem uso elementar da cenografia em suas apresentações, e isso torna-se característica da banda.

Saber como proceder parece essencial. E esse “procedê” (gíria das ruas de São Paulo, apropriada ao vocabulário de alguns do role, termo de uso comum na cena e que significa a forma de proceder em uma dada situação) só é aprendido com a prática, com a observação. Ir a muitos shows do Gangrena me faz compelir a um tipo esperado de ação de palco e reação de público. Romper com isso foi algo muito doloroso.

Também os elementos ambientais criaram uma configuração outra do evento, causando- me estranheza: a arena cultural de Anchieta (RJ) cria um imaginativo bem funcional a uma batalha de rap ou uma apresentação de teatro infantil, por conta da arquibancada circular e do espaço plano central que antecede o palco; mas, e por outro lado, difere muito da configuração para shows de rock (ver Figura 35). Tanto nos eventos em estúdios, como na Planet (Cascadura), no Circo Voador (Lapa), nos SESCs (Serviço Social do Comércio – instituição privada que tende a horizontalizar e incentivar a cultura e esporte ao permitir a população de seu entorno a participe de algumas de suas atividades, popularizando, assim, seu espaço), no Teatro Odisseia (Lapa), na Lira de Ouro (Duque de Caxias) ou no Espaço 142 (Lapa) entre vários outros, o ambiente costuma ser composto por uma área retangular, seja em profundidade como de ganhos pela largura. Se o espaço se dá ao largo, a organização do público costuma dar-se pelo desprezo às bordas, fazendo concentração do centro para o fundo. Essa apreensão especial decorre da rotina da experiência.

Figura 35: Mapa de três áreas para show de rock.

Antever a reação do outro permite diminuir os atritos da vida social, da relação social que tece a civilidade moderna. A dualidade entre atrito e apaziguamento nas relações está diretamente ligada à coesão social, e é nesse sentido que aponto para a questão da civilidade.

A complexificação das relações sociais demanda de uma apreensão dos códigos e signos, de tempos e ritmos. A antevisão da reação e do comportamento dos sujeitos fornece uma segurança que abranda o agir socialmente, pois sente que se sabe o grau de concordância, de normalidade ou de conformidade. É a justificativa para o estabelecimento ou surgimento de normas sociais: é mais agradável sentir-se em frequência comunicativa com seus pares do que viver meio ao atrito das discórdias e dificuldades de ler e ser lido. Trata-se, dessa maneira, de uma consciência especulativa. Foi isso que faltou no público desse show. Acho que eles nem perceberam o quão ridículo me pareceu errarem a dinâmica. Em casos como esse, falta o tato de esperar, olhar e repetir; aquela mesma relação entre novatos e experientes que eu falava nos tópicos do Garage. Ainda assim, os meninos que eu conversei no final do show estavam animadíssimos e curtiram adoidado o evento. Bom, para eles, funcionou.