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A roda como continente para o “caos infinito”: “Iaiá, acende o candeeiro, Iaiá”

CAPÍTULO 6 CASO ORUM: RITMO E FORMAS NA CAPOEIRA

6.9 A roda como continente para o “caos infinito”: “Iaiá, acende o candeeiro, Iaiá”

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A roda na capoeira, lugar do ritual, traz elementos relacionados à continência, união e continuidade. Durante o período da oficina, a nossa roda esteve em um lugar privilegiado, auxiliando-nos em momentos mais críticos, que comumente fazem parte da clínica do sofrimento psíquico grave (Costa, 2003). Destacamos adiante uma passagem que ocorreu durante a última crise de Orun para refletirmos sobre a função da roda de capoeira em uma crise psicótica grave.

Orun chegou pontualmente à oficina e logo disse que não estava bem, que faria apenas o básico do dia e ficaria mais quieto. Soltou algumas falas sobre o “fim do mundo”, dizendo que estava com muito medo, mas também falou que estava com uma forma que “parecia uma menininha” e não queria passar isso para as pessoas. Tais verbalizações já denotavam uma desestruturação interna, na qual uma sintomatologia psicótica grave já se instalava. Iniciamos a atividade com alguma dificuldade, pois ele não queria participar e apresentava outras demandas, para mim e para o grupo. Questionou então: “por que tenho que fazer capoeira? Eu preciso tratar das coisas de Deus”. Uma das estagiárias ficou com ele durante a oficina para que eu pudesse trabalhar com o grupo. Ele não aceitava os limites da oficina, porém se apaziguou um pouco com a continência oferecida pela estudante. Quando fizemos a roda, ele se interessou mais e ficou nos rondando.

Em determinado momento, ele entrou na roda e chamou uma das estagiárias para jogar, mas parou o jogo algumas vezes, alegando estar com medo de machucá-la (comumente ele narra o próprio jogo quando está na roda), o que demonstrava um conflito em relação à sua agressividade, a qual se exacerbava naquele momento. Como havia uma cena que trazia certo receio, “comprei o jogo” com ele e não achei que fosse uma situação em que deveríamos parar a roda, pelo contrário, achei que fosse uma oportunidade interessante de trabalharmos o que se manifestava. Logo que entrei na roda, ele manteve uma postura mais ativa e intimidadora comigo. Continuou a narrar o jogo e disse que a minha “capoeira era de playboy”, mas que eu tinha “herança sanguínea”. Em seguida, mostrou um pouco da “capoeira raiz” e ficou gingando fora da roda, mas os seus gestos e os seus movimentos eram bem mais ágeis que outrora, em contraste com aquele corpo lentificado que ele apresentava comumente. Orun percebeu isso e disse que gostaria de aproveitar que estava assim para jogar capoeira como nunca havia feito. Posteriormente, ele chamou a mim e a um outro paciente para que fizéssemos um jogo com três pessoas na roda, como se fosse “nós dois contra ele”.

Algumas pessoas demonstravam angústia diante da situação e das intervenções de Orun, o que incitou um mecanismo de defesa do grupo. Os neuróticos começaram a reclamar da maneira como ele se comportava e faziam expressões de reprovação. Outros, que estão

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mais no campo da psicose, interagiram mais diretamente com ele e, assim, ocorreram algumas conversas com sentidos e significados obscuros, uma espécie de associação livre delirante que deixava as demais pessoas abismadas. Um dos pacientes foi mais acolhedor e com uma postura mais tolerante apenas observou que ele estava em crise e que “deveria rezar mais”. No fim da atividade, Orun falou, de forma incisiva, que “Deus era responsável por todo o mal e que tinha medo do caos infinito”.

Apesar de não ser um espaço de fala, a nossa roda pôde acolher, de maneira significativa, as pessoas que estavam em crise naquele dia, pois havia outros pacientes que também estavam desorganizados e com sintomas psicóticos. Orun projetou o “caos infinito” em nossa roda propondo formas de jogo e verbalizando as suas experiências. Houve a continência necessária para a sua agressividade e, apesar dos ânimos exaltados em alguns momentos, não houve nenhuma situação violenta ou inadequada para o contexto. Nesse dia, a estrutura maleável (Roussillon, 2015) da roda proporcionou continência e espaço para as expressões mais intensas e sincréticas, tanto de Orun, como das outras pessoas presentes. O ritmo de angola e as pessoas sentadas no chão ajudaram muito para que conseguíssemos fechar a atividade ainda com as pessoas rindo e brincando com o nome que iríamos dar para o nosso batizado, que foi “CAPS Paranauê”.

Algumas semanas antes da vivência do “caos do fim do mundo”, havia uma tentativa clara de Orun de resgatar uma comunicação, uma tentativa de “brincar”. Dos pródromos da crise emergiram criações, como maneiras de se reconstituir, talvez prevendo o caos que viria posteriormente. Já no delírio, que vai emergindo cada vez mais nesse momento, não há mais o brincar, pois não é algo compartilhado, ou, nas palavras de Freud: “um delírio paranoico é a caricatura de um sistema filosófico” (Freud, 1913b/s.d., p. 57), caracterizando-se, assim, como estrutura associal. As angústias e delírios do paciente provocam o grupo, o qual reage e se organiza para a preservação do ambiente. O grupo, enquanto entidade (Kaes, 2014), também se mobiliza e cria formas de cuidado e continência, dividindo funções entre os membros.

É importante destacar aqui dois elementos fundamentais que Orun manifestou nesse encontro, relacionados à genealogia e ao dispositivo grupal da capoeira. A genealogia remete às origens e à questão edípica (Martins, 1995) e comparece na fala dele quando diz e nos demonstra a “capoeira raiz dos escravos”, ao mesmo tempo que me confronta e enfatiza ser a minha capoeira de “playboy”, mas que eu tinha “herança sanguínea”, pois sabia dançar. Ou seja, eu teria uma linhagem e estaria dentro de uma genealogia. Assim, frente às ansiedades primárias (Jaques, 1955), Orun cria a capoeira raiz, a única que teria valor. Ao se perder em

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suas referências, ou dispersão transferencial (Oury, 1983), ele busca em si mesmo as referências originárias, como a reivindicação de uma genealogia, que é a maneira que encontrou de fortalecer os seus mecanismos de defesa por meio da instituição (Jaques, 1955).

As fantasias que o acometem nesse momento evidenciam suas ambivalências afetivas e transferenciais, pois há um movimento de negar essa filiação pela capoeira quando ele “me mata” em alguns dos jogos que cria, ao mesmo tempo que busca estar dentro das leis (desenvolveremos sobre esse aspecto no próximo tópico). Isso é um contraste com um pai demasiado ausente em sua criação, o qual não foi internalizado como uma função paterna (Freud, 1913b/s.d., 1921/s.d.) em sua trajetória. É uma identificação que não é realizada e esse conflito em Orun não é uma atualização, mas, sim, uma criação que ocorre nesse contexto da capoeira, o que seria uma inscrição a partir de algo caótico (Roussillon, 2014a, 2014b). Desse modo, a organização da dispersão transferencial é um movimento de simbolização primitiva, no qual se trabalham as identificações primárias (Allouch, 2014).

É importante salientar também que os componentes mais agressivos de Orun puderam ser ancorados e, por meio do dispositivo e da função grupal, mediaram a utilização do terapeuta como objeto de projeções e transferências (Roussillon, 2014a), o que se provou no modo descontraído da finalização dessa oficina, marcada por atividades e construções afetivamente intensas. Essa qualidade é um contraste em relação ao atendimento individual que realizo esporadicamente com Orun, o que me sobrecarrega psiquicamente e provoca muito cansaço, como se as palavras nunca bastassem na continência das suas angústias. As potencialidades e especificidades da capoeira como mediação nesse trabalho com pacientes psicóticos estão relacionadas às transformações que o lúdico propicia, bem como o trabalho de metabolização por meio do jogo, das cantigas, da roda e da música. A configuração grupal na capoeira se mostra um eficaz dispositivo para lidar com pessoas em situação de crise psicótica. As possibilidades de criação e estabelecimento de “marcas transferenciais” (Oury, 1983) remetem ao campo da simbolização primária por intermédio do corpo, o que demarca continências.

A expressão dessa última crise foi radicalmente distinta das anteriores, em que Orun manifestava-se pouco ativo e demasiado disperso, digo, sem um objeto mediador no qual pudesse criar, pois se perdia excessivamente nas representações que fazia, especialmente de sua “amiga imaginária” que o guiava por meio de afetos confusos, tais como: “ela gosta disso ou não gosta daquilo”. Ou seja, à medida que o seu Eu se enfraquece, aumenta-se a sensação de ser governado pelos objetos internos (Klein, 1946/1991). As possibilidades transferenciais e projetivas, mediadas pelo dispositivo da capoeira, trouxeram à tona elementos primitivos da

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história de Orun, bem como ajudaram a criar representações acerca desses estágios iniciais, marcados por uma grande ausência da figura e função paterna e de uma relação demasiadamente confusa com a sua mãe. Abordaremos essas questões a seguir.