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Vercelli (2017, p. 472-473), no trabalho intitulado Educação Infantil: a roda de conversa na perspectiva do círculo de cultura de Paulo Freire, fruto de uma pesquisa realizada por estudantes de Pedagogia, durante o estágio curricular supervisionado, aponta que muitos(as) professores(as) ainda

[...] fazem uso das Rodas de Conversa ora para que as crianças contem alguma “novidade” ora para cantar e ora para contação de histórias, fato este igualmente importante para o desenvolvimento da linguagem e do raciocínio lógico da criança pequena, porém, simplório, pois nem sempre elas têm a oportunidade de se expor e, muitas vezes, socializar e discutir os fatos que contam e/ou trazem para o contexto escolar.

Segundo a autora, as palavras possuem significado se socializadas, se fizerem parte de um contexto; assim, para ela, a roda de conversa pode dialogar com os elementos que constituem e caracterizam os círculos de cultura propostos por Paulo Freire (2011), isto é, oferecendo possibilidade de transformação, retirando o(a) professor(a) da posição de detentor(a) do conhecimento e colocando(a) como participante junto com as crianças, estimulando-as a formular hipóteses sobre determinados questionamentos, incentivando-as a trocar saberes e experiências por meio do diálogo.

No Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI – BRASIL, 1998), a roda de conversa é mencionada no volume 3, no eixo linguagem oral e escrita. O documento

aponta que, nas instituições infantis, essa atividade tem sido vista como uma estratégia que marca um momento definido da rotina, cuja intenção é desenvolver a conversa, porém sua dinâmica discursiva acontece muitas vezes, pautada no monólogo com o(a) professor(a) da infância.

O trabalho com a linguagem oral, nas instituições de Educação Infantil tem se restringido a algumas atividades, entre elas as rodas de conversa. Apesar de serem organizadas com a intenção de desenvolver a conversa, se caracterizam, em geral, por um monólogo com o professor, no qual as crianças são chamadas a responder em coro a uma única pergunta dirigida a todos, ou cada um por sua vez, em uma ação totalmente centrada no adulto. (BRASIL, 1998, p. 110). Essa posição é criticada no documento, sinalizando a necessidade de se rever a maneira como ela tem sido conduzida nas escolas da primeira infância. O RCNEI define o momento da roda como

[...] o momento privilegiado de diálogo e intercâmbio de ideias. Por meio desse exercício cotidiano as crianças podem ampliar suas capacidades comunicativas, como a fluência para falar, perguntar, expor suas ideias, dúvidas e descobertas, ampliar seu vocabulário e aprender a valorizar o grupo como instância de troca e aprendizagem. A participação na roda permite que as crianças aprendam a olhar e a ouvir os amigos, trocando experiências. Pode- se, na roda, contar fatos às crianças, descrever ações e promover uma aproximação com aspectos mais formais da linguagem por meio de situações como ler e contar histórias, cantar ou entoar canções, declamar poesias, dizer parlendas, textos de brincadeiras infantis etc. (BRASIL, 1998, p. 138). O documento ainda aponta que a roda de conversa deve instigar as crianças ao diálogo, pois

As palavras só têm sentido em enunciados e textos que significam e são significados por situações. A linguagem não é apenas vocabulário, lista de palavras ou sentenças. É por meio do diálogo que a comunicação acontece. São os sujeitos em interações singulares que atribuem sentidos únicos às falas. A linguagem não é homogênea: há variedades de falas, diferenças nos graus de formalidade e nas convenções do que se pode e deve falar em determinadas situações comunicativas. Quanto mais as crianças puderem falar em situações diferentes, como contar o que lhes aconteceu em casa, contar histórias, dar um recado, explicar um jogo ou pedir uma informação, mais poderão desenvolver suas capacidades comunicativas de maneira significativa. (BRASIL, 1996, p. 121).

Vercelli (2017) afirma que o RCNEI parte do pressuposto que as rodas de conversa são úteis para desenvolver a linguagem oral e outras habilidades mentais, porém, elas não podem se apresentar como mera atividade de comunicação de ideias; precisam, acima de tudo, proporcionar a produção de conhecimento e de reflexão por parte das crianças.

No artigo Relatos de (con)vivência: crianças e mulheres da Vila Helena nas famílias e na escola, Sylvia Leser de Mello e Madalena Freire (1986) relatam que utilizaram a roda como experiência rica em significados, a fim de que possibilitasse o encontro, a troca, a fala, a escuta, de um grupo de mulheres e de crianças da Vila Helena, bairro localizado no município de Carapicuíba, em São Paulo. Madalena Freire, em seu relato, conta que, à época, atendeu 35 crianças de 3 a 6 anos de idade no salão de uma paróquia que, inicialmente, contava com carteiras enfileiradas cujas mães reclamavam, pois seus(suas) filhos(as) não conseguiam enxergá-la. Junto com as famílias e com as crianças, a autora problematizou a organização da sala de aula e chegaram ao consenso de que uma roda facilitaria a visão de todos e todas. Sobre as atividades na roda, Madalena Freire comenta:

O objetivo da roda é o encontro. Para cada grupo é uma. As atividades possibilitam o encontro.

Roda não é só conversar ou mostrar novidade. A troca surge do encontro.

A conversa é o produto da roda. Para cada grupo há um tipo de conversa, com suas características (no maternal a “conversa” é o monólogo, etc.)

A roda tem que ser construída, vivida dia a dia, aprofundando o encontro entre as crianças e a professora.

Nenhuma roda, nenhum encontro, nasce, já da conversa, ela é gestada na ligação das crianças e da professora por alguma coisa – atividade – que os liga, que proporciona o encontro.

O encontro gera conhecimento de criança com criança, da criança com ela mesma, da professora com as crianças, da professora com cada criança e dela (professora) com ela mesma. (MELLO; FREIRE, 1986, p. 103).

Questões que envolvem a roda de conversa na Educação Infantil já foram problematizadas em trabalhos acadêmicos. Apresentamos a seguir cinco estudos sobre essa temática para que o leitor tenha ciência dos resultados encontrados. Lembramos que as dissertações e a tese elencadas estão disponíveis no portal da Biblioteca Digital de Dissertações e Teses (BDTD). O período temporal escolhido foi de 2015 a 2019, por apresentar resultados mais atuais.

Mantivemos o estudo de Ryckebusch (2011), por tratar-se da única tese sobre a temática.

Os resultados do estudo de Ryckebusch (2011), em sua pesquisa de doutorado intitulada A roda de conversa na Educação Infantil: uma abordagem crítico-colaborativa na produção de conhecimento, apontaram um contexto colaborativo crítico por meio das rodas de conversa, possibilitando maior desenvolvimento das crianças, uma vez que o ambiente organizado em círculos proporcionou que as crianças interferirem na fala dos colegas, retomassem a temática em discussão e ampliassem o que sabiam sobre ela, ocasionando, dessa forma, um saber compartilhado. Para a autora,

O compartilhamento de novos significados permitiu a possibilidade de transformações nas regras e na divisão de trabalho. [...] Elas entendiam ser meu papel tomar decisões de interesse do grupo, resolver conflitos, ser a interlocutora exclusiva de cada participante da roda. Ao serem constantemente convocadas a apresentar posições, a justificá-las, a questionar a posição do outro, a tomar decisões conjuntas, as crianças tornaram-se parceiras na produção coletiva. Nesse ambiente colaborativo, novos modos de agir começaram a ser apresentados por elas. Esses modos de agir revelaram um maior protagonismo e responsabilização no desenvolvimento da “Roda de Conversa”. (RYCKEBUSCH, 2011, p. 175).

Silva (2015), na dissertação intitulada A participação das crianças na roda de conversa: possibilidades e limites da ação educativa e pedagógica na Educação Infantil, teve como objetivo compreender os modos de participação das crianças acerca dos significados e sentidos construídos e os elementos que possibilitam ou limitam a participação na roda de conversa. A pesquisadora concluiu que os sentidos atribuídos à roda de conversa demonstram o caráter disciplinador e regulador da ação; do corpo e das palavras. Sendo assim, as vozes das crianças foram silenciadas, impedindo a vazão do pensamento, portanto, um momento totalmente instrumentalizado e adultocêntrico.

A roda de conversa na Educação Infantil: análise de seus aspectos formativos com crianças de três a cinco anos, pesquisa realizada por Marcia Bertonceli (2016), teve como objetivo analisar os aspectos formativos das práticas educativas com a linguagem verbal nas rodas de conversa realizadas com um grupo de crianças de três a cinco anos, em três instituições públicas de Educação Infantil, do município de Francisco Beltrão, em 2014. A autora fez uso de áudio-gravações de vinte e quatro rodas de conversa e entrevistas semiestruturadas com três professoras das instituições contexto da pesquisa. Concluiu que as rodas de conversa potencializam e promovem o diálogo, valorizam a singularidade infantil, convocam o diálogo entre o saber cotidiano e o saber científico, permitem a construção de valores, de saberes culturais e a democratização do saber. Assim, os(as) professores(as) devem romper com a rigidez das práticas pedagógicas, apontando a necessidade de mais diálogos, na perspectiva de trazer as vozes infantis para a roda, permitir o encontro das vozes dissonantes, e considerar a formação integral da criança.

Araújo (2017), no trabalho intitulado “Tia, deixa eu falar!” Os sentidos atribuídos por crianças da pré-escola à roda de conversa em um Centro de Educação Infantil do Município de Fortaleza, teve como principal objetivo analisar os sentidos atribuídos por crianças da pré- escola à roda de conversa em um Centro de Educação Infantil da rede pública de Fortaleza, em uma turma do Infantil IV. A autora descreveu as impressões das crianças acerca do papel da professora; investigou o papel que as crianças atribuem a si mesmas na roda de conversa;

conheceu, através de suas famílias, os contextos de vida das crianças. A autora concluiu que a roda de conversa realizada no contexto investigado é compreendida como um momento para combinar as atividades didáticas, os projetos e as rodas de música. Ao realizar a roda, a professora investigada apresentou temas muitas vezes sem interesse dos(as) pequenos(as). Segundo a autora, as crianças, como sujeitos dialógicos e competentes, não gostaram da normalização imposta e trouxeram para a roda de conversa assuntos de interesse próprios, a fim de romperem com a lógica escolarizante então presente.

Susanne Elfriede Memmel (2018), na dissertação intitulada Marcas interacionais em rodas de conversa na Educação Infantil, teve como objetivo compreender a atividade denominada roda de conversa, considerando a interação que se estabelece entre professor e crianças da Educação Infantil. A pesquisa foi realizada em uma Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) localizada na cidade de São Paulo. Como procedimento metodológico, a pesquisadora recorreu aos registros audiovisuais de duas rodas de conversa, uma na turma do Infantil I e outra na turma do Infantil II, crianças com idades de 4 a 6 anos. Os resultados indicam que a professora, ao empregar determinadas estratégias linguísticas, em especial a repetição e o parafraseamento, assume o papel de mediadora da interação.

Vimos, portanto, que a maioria dos trabalhos apresenta como resultados a atividade de roda de conversa muito instrumentalizada e dirigida pelos(as) docentes, momentos de monólogo e não de diálogo, apontando, por parte dos(as) profissionais, uma concepção de criança e de infância passivos, com corpos silenciados exercendo pouco ou nenhum protagonismo.

Quanto a isso, Silva, Lima e Fernandes (2017) salientam que o princípio democrático da roda não é respeitado. Há verticalidade na ação e não possibilita a troca de ideias elencadas pelas crianças, desconsiderando seu repertório cultural e simbólico. Para as autoras, tal fato pode criar apatia nas crianças, uma vez que elas não se sentem incluídas e suas vivências, sentimentos e descobertas deixam de ser valorizados.

Vercelli (2017, p. 475) aponta que o(a) professor(a) deveria aproveitar os dizeres e saberes das crianças e questionar as demais sobre o que elas sabem a respeito do que foi dito pelo colega, ou se já vivenciaram a situação relatada, a fim de que possam refletir a respeito, “[...] possibilitando, por meio da linguagem, que a criança se compreenda e compreenda o discurso do outro”.

De Ângelo (2013) ressalta que os(as) professores(as) têm de estar atentos para que a roda seja um momento de construção e troca dialógica entre os diferentes componentes, evitando-se que se torne um momento mecânico no qual os(as) docentes dão ordens, explicitam

normas e até mesmo aplicam sanções. Além disso, o autor afirma que o momento da roda não pode ser o único espaço de fala dos pequenos, da ampliação do vocabulário e de compartilhamento de ideias.

Silva, Lima e Fernandes (2017) ressaltam que a roda deve apresentar princípios democráticos, relações horizontalizadas, autonomia, liberdade de expressão e de escuta. Portanto, deve ser utilizada como estratégia pedagógica nos espaços-tempos de toda a Educação Básica, em pedagogias participativas e ativas, que se contrapõem à pedagogia tradicional, transmissiva e bancária.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI – BRASIL, 2009) esclarecem que as propostas pedagógicas devem respeitar os seguintes princípios:

Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades.

Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática.

Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais. (BRASIL, 2009, p. 16).

No nosso entendimento, são princípios que apontam a ação ativa da criança, possibilitando que ela exerça seu papel democrático, podendo se expressar e criar; para tal, o diálogo deve ser constante e fazer parte da rotina dos(as) pequenos(as) nos momentos da roda de conversa e outros.

O documento Currículo Integrador da Infância Paulistana (2015) evidencia que as crianças têm suas infâncias marcadas pelas circunstâncias históricas, sociais, econômicas, culturais, geográficas, políticas, religiosas, raciais, étnicas e de gênero, que imprimem marcas diversas nas formas como elas vivem suas infâncias, e que tudo isso deve ser contemplado desde a Educação Infantil.

Ao considerar bebês e crianças em sua inteireza humana, o Currículo integrador da Infância Paulistana propõe a integração dos espaços coletivos da Educação Infantil e no Ensino Fundamental com a vida que pulsa além dos muros das Unidades Educacionais e com o conhecimento humano que deve ser compartilhado e usufruído por toda a sociedade, incluindo bebês e crianças. (SÃO PAULO, 2015, p. 15).

Ouvir as crianças, interpretar as suas diferentes linguagens e estabelecer relações amorosas e horizontais são elementos cruciais da Educação Infantil, firmando um compromisso com a qualidade e respeitando um diálogo possível entre as culturas adultas com as culturas infantis que se revelam nos enredos das brincadeiras, no uso dos objetos, dos brinquedos, nos

valores partilhados, nos seus interesses, nas interações e formas de resistência àquilo que é imposto pelas professoras e demais adultos.

O currículo da Educação Infantil da cidade de São Paulo (2019), no capítulo que trata das interações, indica a realização de assembleias de crianças, pois os(as) profissionais devem considerar os seus saberes, escutá-las, organizar-se para colocar em andamento as propostas discutidas com os pequenos, levando em conta as considerações, as críticas e as iniciativas infantis.

Ainda sugere aos(às) docentes a atividade como possibilidade de oportunizar às crianças um aprendizado coletivo, de relações colaborativas, de respeito umas com as outras, para manter um olhar crítico sobre as situações, a expor seu ponto de vista, a ouvir a crítica do outro, a refletir coletivamente, a pensar, a esperar a vez de falar, a perceber o ponto de vista do colega. O documento faz referência a Paulo Freire quando ressalta que a escola é o lugar onde as crianças devem ser estimuladas por boas perguntas, e apresenta algumas delas, a saber: “O que gostaram de fazer hoje?”, “E gostaram por quê?”, “Vamos levar um livro lá fora?”, “Onde podemos nos sentar para ler?” (SÃO PAULO, 2019, p. 77).

Complementa que os(as) docentes, na relação com as crianças, não devem responder às perguntas que elas não fizeram, mas convidá-las a participarem do planejamento de uma atividade ou de um dia inteiro de atividades – e inclusive avaliar o que fazem juntos. Vale ressaltar que em todos os momentos o documento prestigia, além da escuta, o acolhimento às crianças, o afeto como atitude permanente dos(as) professores(as).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC – BRASIL, 2017) para a Educação Infantil aponta seis direitos de aprendizagem que devem ser abarcados pelos(as) professores(as) da primeira infância, a saber: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Tomamos, nesse momento, os direitos de participar e se expressar. No que se refere ao primeiro, a BNCC ressalta que as crianças devem participar ativamente com outras crianças e com os adultos da instituição, tanto no planejamento da gestão escolar quanto das atividades da rotina, entre elas, elencamos a roda de conversa.

Quanto ao direito de se expressar, o documento esclarece que a criança deve expressar suas emoções, necessidades, dúvidas, sentimentos e descobertas como sujeito criativo, dialógico e sensível, questionando diferentes opiniões.

Além desses direitos, uma das competências colocadas pelo documento é a argumentação, ou seja, a criança deve aprender a argumentar, pautando-se em dados, fatos e informações fidedignas, a fim de que possa defender diferentes ideias e tomar decisões. O documento aponta que esse objetivo pode ser alcançado por meio das rodas de conversa, que é

explicada pelos(as) autores(as) citados(as) e pela legislação vigente como um momento propício para que a criança possa participar, expressar-se e argumentar como sujeito de direitos, que tem voz, necessidades e vontades próprias.

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