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3 POSSIBILIDADES E SABERES EDUCATIVOS NA CIDADE DA

3.3 A roda que montou o samba

O Samba de Roda é uma expressão cultural desenvolvida e ressignificada pela diáspora africana, por volta do século XVIII, constituindo assim uma das mais representativas manifestações da cultura afro-brasileira, sobretudo na região do Recôncavo Baiano. O trajeto que trouxe os africanos em condição de escravos até o Brasil, bem como sua forma de resistência, montou a roda que recebeu e ressignificou o samba em todo país.

Os africanos, como não poderiam deixar de ser, trouxeram consigo suas práticas e hábitos culturais que foram se modificando e incorporando elementos locais através da adaptação que foram obrigados a elaborar quando aqui chegaram. Na condição de escravos, como é característico nas expressões culturais de matriz africana, essa manifestação cultural tem no corpo a materialidade da memória, história e cultura afro-brasileira propriamente dita.

Na região do Recôncavo baiano, o samba se faz notadamente presente enquanto manifestação cultural. Geralmente formados por integrantes de origem afro- brasileira, que possuem trabalhos independentes dos grupos aos quais integram. Assim, mantêm viva a celebração reunindo-se para proclamar o Samba de Roda.

Cabe aqui uma diferenciação do que seria o samba celebrado nas demais regiões do Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, conhecido por seus “samba enredo” e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano. A disposição e o modo como são entoados os cânticos, por si, já sinalizam as diferenças entre as modalidades de praticas culturais. No Samba de Roda um cantor entoa e os demais acompanham ou mesmo respondem, enquanto que nas rodas de samba popular uma figura é responsável pelo solo ou mais de uma voz é utilizada para compor as melodias (SANDRONI, 2010). Contam ainda que Tia Ciata, baiana, mãe-de-santo, nascida em Santo Amaro da Purificação, região que também integra o Recôncavo Baiano, fugida por conta da perseguição policial a seu culto religioso, que levou o samba da Bahia para o Rio de Janeiro, segundo as irmãs integrantes da Boa Morte nos reportam. Daí o fato das comparações entre o samba carioca e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano estarem estabelecidas.

A coletividade, o respeito à hierarquia (ouvir os mais antigos para entender e apreender com eles) e o compromisso com o samba bem como a compreensão de sua matriz africana são características perceptíveis quando se acompanha esse movimento presente na Cachoeira. Nas letras estão representadas as dificuldades do cotidiano e as relações de gênero (homem-mulher e amor romântico) de forma sempre descontraída, mas, ao mesmo tempo, comprometida com sua arte.

Para acompanhar as cantigas, usam-se instrumentos como a viola, o pandeiro, o triângulo, o cavaquinho, o timbal e as tabuinhas – pedaços de madeira que auxiliam a dar sonoridade às cantigas. O que percebemos é que não há, na maioria dos grupos de Samba de Roda, uma formação técnica em música, com leitura e composição de partituras, ou seja, os tocadores, homens quase sempre, aprendem a tocar pelo ouvido. Os mais jovens vão ouvindo os mais velhos tocar e, por conseqüência, vão apreendendo esse ofício de tocar os instrumentos musicais e cantar o Samba de Roda.

O Samba de Roda na Cachoeira tem um espaço de divulgação intensificada na época das festas juninas, quando os grupos se reúnem e se apresentam em uma espécie de competição na qual as letras, as vestes e a irreverencia das apresentações ditam quem representa melhor o São João da cidade, no entanto,

estão presentes o ano todo, seja em ensaios ou mesmo pela reunião dos integrantes de um determinado grupo.

Alguns estudiosos apontam o fato de que as mulheres não tocam os instrumentos musicais no Samba de Roda e atrelam esse fato à relação estabelecida pelo candomblé em que, nos terreiros, as mulheres também não tocam os instrumentos, o que não evidencia nenhuma espécie de disputa de poderes nem sobreposição de cargos dentro da manifestação cultural.

O Samba de Roda integra ainda as celebrações da Boa Morte, o caruru no mês de setembro em homenagem a São Cosme e São Damião, presente nas associações de comunidades locais, no centro urbano e na zona rural da cidade, constituindo um espaço democrático de circulação de todos que integram e apreciam o Samba de Roda do Recôncavo.

Os grupos conhecidos como Samba de Roda Suerdieck , Samba de Roda Filhos de Ogum o Samba Chula de São Braz, Filhos do Caquende, Filhos de Nagô e Filhas de Yasmim foram os mais apontados pelos sujeitos pesquisados.

O Samba de Roda pode ser entendido como uma prática cultural, na qual são apreendidos e transmitidos valores necessários à convivência no âmbito social como a solidariedade, a fraternidade e o pertencimento – valores elencados pelos educandos e que vão contribuir para a construção e compreensão das identidades dos afrodescentes da Cachoeira, prática essa que só veio a ser reconhecida através de um processo complexo onde

Em 2005, o samba de roda, forma musical-coreográfica da região do Recôncavo, na Bahia, foi incluída pela Unesco na sua III Declaração de Obras-Primas do Patrimônio Imaterial da Humanidade. Essa candidatura vitoriosa foi construída num processo complexo, que envolveu agentes de políticas públicas, antropólogos, 388 estudos avançados 24 (69), 2010 etnomusicólogos e, especialmente, sambadores e sambadoras do Recôncavo. A candidatura envolveu a elaboração de um Plano de Ação, previsto para cinco anos, para a salvaguarda do samba de roda no Recôncavo. (SANDRONI, 2010, p. 387-388).

Após passar por um longo processo de reconhecimento para fazer ecoar o nome do Recôncavo Baiano integrando a lista dos bens imateriais reconhecidos pela

UNESCO, a visibilidade da expressão elevou-se. O que antes era uma prática legada às gerações sem uma preocupação formal em dar continuidade ao processo de aprendizagem do Samba de Roda por parte dos mais novos atraiu os olhares para a relevância dessa manifestação e seu caráter educativo que lhe é inerente. Explorando as diversas linguagens que o samba pode oferecer, pelo corpo que canta, se expressa, ensina o outro a tocar e cantar, toca e se relaciona com o espectador através das melodias e dos cânticos. Podemos reforçar o que os participantes asseguram: que os grupos de Samba de Roda constituem uma verdadeira família entre seus integrantes.

Destacamos ainda um grupo estabelecido nos anos cinquenta que sai pelas ruas da Cachoeira fundado na rua da Ladeira da Cadeia. É o Esmola Cantada que busca angariar fundos para a festa da padroeira da comunidade. Esse grupo solicita donativos aos moradores, entoando cânticos religiosos. Ao receber as doações, trocam as ladainhas pelo Samba de Roda em agradecimento pela contribuição recebida. A população, então, interage com os integrantes e vão embalando seus corpos ao som das melodias por eles entoadas. Utilizam basicamente os mesmos instrumentos do Samba de Roda. Os homens vestidos com roupas semelhantes e chapéus tocam; as mulheres usando vestes características recolhem as doações. Tal grupo também apresenta-se no São João local desde a década de 1990.

Figura 7 - Apresentação do grupo Esmola Cantada

Da ladeira da cadeia eu cheguei pra vadiar, Pra vadiar, eu cheguei para vadiar,

Da ladeira da cadeia eu cheguei pra vadiar, Pra vadiar, eu cheguei para vadiar.

Ê beira do rio camarada, quem te ensinou vadiar? Quem te ensinou? Quem te ensinou vadiar? Ê beira do rio camarada, quem te ensinou vadiar? Quem te ensinou? Quem te ensinou vadiar? Cachoeira, eu moro em Cachoeira,

Eu moro em Cachoeira, na Ladeira da Cadeia. Cachoeira, eu moro em Cachoeira,

Eu moro em Cachoeira, na Ladeira da Cadeia. (Informação verbal)

O levantamento feito até então, aponta que na Cachoeira, há uma carência, no que diz respeito ao estudo histórico, sistematizado e catalogado das manifestações da cultura popular para elaboração de material didático a ser aproveitamento dentro das escolas, o que reitera a necessidade de interpretar a sua trajetória nesta cidade: seus contrastes, e suas relações estabelecidas com a cultura local dentro da própria escola. Isto aponta caminhos para que esses conteúdos possam receber melhor trato na prática pedagógica, visto que o conhecimento advindo dessas expressões culturais não vem sendo contemplado como conteúdo significativo dentro do espaço escolar.

Tendo em vista essas constatações, este estudo contribui para o acúmulo de futuras fontes de pesquisa sobre o tema e aponta a necessidade de apreensão deste conhecimento como saber escolar na perspectiva da educação, enquanto um processo centrado no sujeito, que deve abranger todas as dimensões da vida, inclusive a estética, possibilitando o desenvolvimento pleno de suas potencialidades.