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Rogério

No documento luizacottapimenta (páginas 85-89)

3 ENTRE SUPLÍCIOS E CONSTRANGIMENTOS: OS PEDIDOS DE

3.2 O CONSTRANGIMENTO A PARTIR DAS PETIÇÕES INICIAIS

3.2.5 Rogério

O caso de Rogério difere dos demais apresentados até o momento, pois aqui se trata de um estudante que, à época em que a petição foi apresentada à Justiça, em janeiro de 2018, contava com 16 anos de idade, e por se tratar de menor, deveria ser assistido por um de seus genitores, como determina o artigo 71 do CPC.

Neste caso existe um apoio direto por parte da mãe de Rogério, uma vez que a mesma atua no processo assistindo o jovem em sua ação de mudança de registro, mesmo antes de o mesmo completar a maioridade, situação que fica evidente já no começo da petição: “O Requerente iniciou aos 15 anos o acompanhamento psicológico e aos 16 anos (idade atual) o tratamento hormonal. Ressalta-se que o mesmo sempre teve o apoio da família, de modo que o processo de transição de gênero ocorresse de maneira mais tranquila possível”(ESCRITÓRIO ESCOLA/UFJF, 2018c, p. 2).83

Esta petição foi elaborada pela advogada que coordena o PARF em conjunto com advogados integrantes deste mesmo programa e, como pode se depreender de sua leitura, foi elaborada de forma diferente das demais, contendo mais elementos no sentido de expressar emoções que revelam tanto uma estabilidade do gênero vivida por Rogério durante toda a sua infância e adolescência, reforçada pela realização de tratamentos hormonais e pela realização de mastectomia total, acompanhada de toda a abordagem patológica associada.

A estrutura da petição conta com o item dedicado aos fatos, contando uma breve história sobre o processo de transição de Rogério e, posteriormente articula as normas comumente aplicadas a este tipo de processo e traz decisões favoráveis à alteração em conjunto com argumentos no sentido da tutela do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, finalizando com os pedidos de alteração de nome e gênero.

Este é o único caso de homem trans buscando a alteração em seu registro, sendo todos os demais cinco casos a que tive acesso referentes a mulheres trans. Outro ponto relevante é que apenas uma das moças não desejava se submeter à cirurgia de redesignação sexual (Laura), enquanto que todas as demais, como dizem as petições, desejavam “eliminar as genitálias”, expressando um incômodo extremo com a presença do pênis.

83 Petição inicial do caso Rogério. Data: 24 de janeiro de 2018. Documento elaborado pelo Escritório Escola da

No caso de Rogério, apesar de ser o único caso de homem trans a que tive acesso durante a busca por petições iniciais de processos judiciais de retificação de registro civil, fica evidente que o seu foco não é na mudança da genitália, mas sim na realização do procedimento de mastectomia total, característica que, para ele reflete um maior incômodo em relação a sua constituição corporal do que propriamente a presença da vagina. Aliás, os advogados, logo após narrarem o processo de transição do jovem, trazem em destaque uma frase logo abaixo, quando dizem: “Também este ano, realizou cirurgia de mastectomia total” (ESCRITÓRIO ESCOLA/UFJF, 2018c, p. 2). A dedicação de um parágrafo inteiro é um elemento que, combinado aos demais que são mobilizados na petição, expressa o contexto de definitividade e de certeza de Rogério sobre o seu desejo de se autodeterminar enquanto homem.

Mais à frente, os advogados mobilizam o constrangimento por termos mais severos, equiparando o sofrimento de Rogério àquele vivido por pessoas que são vítimas de tortura, pela associação das “situações vexatórias” decorrentes da incompatibilidade registral e da aparência externa de Rogério, com a noção de “tratamento degradante”, da seguinte forma:

Conforme o exposto, desde criança o Requerente apresenta-se para a sociedade como pessoa do sexo masculino e com o nome Rogério. Porém, documentalmente é identificado por nome e gênero femininos, passando por diversas situações vexatórias e degradantes, em nítida violação ao direito fundamental insculpido no art. 5º, III, da CF/88 (ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante) (ESCRITÓRIO ESCOLA/UFJF, 2018c, p. 2-3. Uso do nome fictício).

No item dedicado à exposição das normas que dão suporte legal ao pedido de alteração do nome e do gênero, além da referência pelos advogados à Lei de Registros Públicos, os mesmos, sabendo da lacuna legal, mobilizam mais elementos relativos aos desdobramentos do processo de constrangimento, reforçando o status de vítima de Rogério, em trechos como: “Ademais, o processo de transição de gênero, ao envolver intervenção médica e aceitação pessoa e social, é doloroso, conquanto seja necessário [...] É inconciliável com a condição humana do Requerente a manutenção do sexo feminino em seus registros” ESCRITÓRIO ESCOLA/UFJF, 2018c, p. 4).

Neste caso se destaca o fato de que o termo “constrangimento” só aparece diretamente na petição mais à frente, quando os advogados citam trechos da decisão tomada no contexto do recurso especial (Resp) 1626739/RS, quando os próprios ministros se referem à situações em que se autoriza a mudança no nome, mas não a mudança do gênero, quando a pessoa não é operada, nesses casos, dizem eles:

[...] a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. (ESCRITÓRIO ESCOLA/UFJF, 2018c, p. 7).

A esta altura, desde o ajuizamento da ação de Rogério, faltavam menos de dois meses para que o STF tomasse a decisão paradigmática de autorizar que as retificações de registro das pessoas trans pudessem ser realizadas perante os cartórios. Sendo assim, a partir da decisão da ADI 4.275 e da publicação do Provimento nº 73 do CNJ os advogados com demandas de retificação pendentes perante os órgãos judiciais passaram a pedir a desistência das ações, como visto no caso de Laura e, agora no do jovem.

A desistência das ações foi um requisito que o próprio Provimento nº 73 impôs para as pessoas que desejavam alterar os seus registros pelos cartórios, mas que tinham retificações judiciais em curso, como consta no seu art. 4º: “§ 5º A opção pela via administrativa na hipótese de tramitação anterior de processo judicial cujo objeto tenha sido a alteração pretendida será condicionada à comprovação de arquivamento do feito judicial” (CNJ, 2018).84

Assim como no caso de Laura, o processo de Rogério é sorteado para a mesma Promotora que, apesar de ser de adoção facultativa, não faz uso da Recomendação nº 34/2016 do CNMP e pede para que o jovem apresente diversas certidões de vários órgãos, dentre elas a Folha de Antecedentes Criminais, que só se aplica a pessoas maiores de idade, uma vez que menores não praticam crimes, e tão somente atos infracionais, como dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente. A promotora também pede que seja realizado estudo psicossocial, em manifestação datada de 6 de março de 2018, 5 dias após a decisão do STF na ADI 4.275, pedido que é reforçado em novas manifestações de julho e de agosto de 2018.

Foi realizado o estudo psicossocial e a família de Rogério foi entrevistada, sendo uma constante na fala dos pais do jovem o medo de que o mesmo fosse agredido em episódios de discriminação. O pai e a mãe expressam suas percepções sobre o jovem ao longo de sua infância e adolescência, e, ao final do estudo, Rogério fala de si, como descrevem a psicóloga e a assistente social do caso:

Quanto à entrevista de Rogério, este informou estar tranquilo, nos dias atuais, com relação ao seu corpo e sua aparência. De acordo com o adolescente, existia um incômodo antes da mastectomia, procedimento cirúrgico ao qual foi submetido, para a retirada das mamas. Porém, demonstrou satisfação com

84 Provimento nº 73/2018 CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3503>.

as alterações de seu corpo, dentre elas, o aparecimento de pêlos no rosto. Cabe destacar que Rogério iniciou tratamento hormonal aos 16 anos, e hoje apresenta-se com aparência predominantemente masculina.

O adolescente discorreu sobre sua história, na qual sempre gostou de roupas e brinquedos de menino. Que jamais aceitou, por exemplo, usar vestidos. Em princípio, pensava que era somente uma menina lésbica, masculinizada, e que posteriormente, descobriu que não era só isso. Através de pesquisas na internet, conforme se expressou, viu que existiam possibilidades para ele (sic). Contou também sobre a briga com sua genitora, num dado momento, acreditando que hoje esta e o pai o aceitam. De acordo com sua percepção, no entanto, o genitor está assimilando as coisas mais devagar, no tempo dele, percebendo que, por vezes, erra o seu nome, por exemplo. (inserção do nome fictício).85

A partir do momento em que todas as certidões são reunidas pelos advogados do jovem, o estudo psicossocial é realizado ao fim de 2018, mesmo tendo em consideração a existência de uma decisão do STF no sentido de autorizar que tais alterações no registro sejam realizadas de forma administrativa desde março de 2018, perante os cartórios e mesmo com o Provimento nº 73/2018 (de junho de 2018) que diz claramente em seu artigo Art. 4º, § 1º que: “O atendimento do pedido apresentado ao registrador independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico”(CNJ, 2018).

Em manifestação do Ministério Público, de fevereiro de 2019, a Promotora do caso passa a pedir a realização de perícia médica e, inclusive propõe quesitos idênticos aos observados no caso de Laura. Diante disso, os advogados de Rogério, após consultar o mesmo, decidem pela desistência da ação, nos mesmos termos do que foi pedido para Laura, e assim dizem:

Rogério, já qualificado nos autos da AÇÃO DE ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL em curso perante este r. Juízo e respectiva secretaria, por sua procuradora vem, perante V. Exa. dizer que desiste da presente ação, tendo em vista que recente decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em ADI 4275 / DF entendeu pela possibilidade de requerer a mudança de nome e gênero diretamente aos cartórios, sem a necessidade de autorização judicial. Requer, assim, a extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VIII, CPC para que possa adotar as devidas medidas administrativas.86

O pedido elaborado pelos advogados de Rogério é prontamente atendido pelo juiz do caso. É interessante perceber, que mesmo após a decisão do STF e da edição do Provimento do

85 Relatório do Estudo Psicossocial do caso Rogério. Data: 18 de dezembro de 2018. p. 1-3.

86 Manifestação do caso Rogério. Data: 28 de fevereiro de 2019. Documento elaborado pelo Escritório Escola da

CNJ que estabelece o processo de alteração via cartorária, o Poder Judiciário e órgãos como o Ministério Público permanecem com a conduta de exigir a realização de estudos psicossociais com profissionais da área da psicologia e com assistentes sociais, bem como continuam a exigir a realização de perícia médica, expressando uma continuidade, ao menos a nível processual, das exigências criadas na prática em processos deste tipo, que não tem apoio em normas jurídicas, mas sim em uma prática jurídica de investigação, inspeção corporal e de presunção de má-fé daquele que pede a alteração do seu nome e do gênero, como amplamente discutido e demonstrado ao longo dos capítulos 1 e 2 deste trabalho.

No documento luizacottapimenta (páginas 85-89)