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Apesar de bastante produtiva, conforme se pode constatar pelo amplo volume de livros publicados e outras tantas atividades desenvolvidas por Carlos Heitor Cony, a trajetória artística do autor seria marcada, nas décadas de 1960 e 1970, pela presença de dois importantes “silêncios ficcionais” – o primeiro, verificado em 1967; o segundo, em 1974. Tais silêncios em sua obra literária seriam estimulados, em grande medida, pelo golpe militar, episódio que se revela um “divisor de águas” nos pressupostos estéticos do escritor e jornalista.

Afinal, como bem ressalta Hohlfeldt (2000), o escritor carioca possuía, desde sua estreia como romancista, um projeto50 definido de obra literária, que, com a instauração do regime totalitário, sofrerá significativas modificações e “escoriações”. Segundo tal pressuposto, a proposta estética de Cony, engendrada de modo disciplinado e profissional, sofreria “percalços ao longo de seu desdobramento, em boa parte, por certo, graças ao enfrentamento que o escritor teve com o regime militar implantado a partir de 1964 no país” (HOHLFELDT, 2000, p. 89).

50 Até 1964, o escritor costumava dizer que, ao escrever o décimo romance, daria por encerrada sua carreira

Anteriormente ao golpe, o autor pretendia dar sequência à sua literatura de temática urbana – denunciadora das mazelas da baixa classe média carioca –, como que para exorcizar seu passado moralista e católico, fruto dos anos que passara no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido. Entretanto, com a instauração do regime autoritário, para além das questões da urbe – que se expande de modo acelerado e desumano – e seu povo, a realidade política do País faria com que o ofício do cronista Cony se revelasse mais candente, em razão de motivos pragmáticos: concisas, atraentes – por vezes, definitivas –, as crônicas teriam maior capacidade de influência e intervenção públicas.

Afinal, ao contrário dos romancistas e contistas – mesmo os mais populares –, cronistas são lidos, dia a dia, de modo abrangente, assim como se tornam inadvertidamente comentados nos bares, nos espaços de trabalho, nos encontros informais. Ciente de tal dimensão do cronismo, e diante do “chamado” à participação política51, Cony não pensaria duas vezes antes de escolher a crônica como ferramenta ideal aos embates contra o regime militar.

Trata-se, aliás, do escritor tido, até então, por “apolítico” – posto que não costumava posicionar-se ideologicamente –, mas que, no Brasil pós-1964, percebe a disseminação do perigoso clima ufanista que, em sua visão, nada representaria de positivo ao País. Daí a necessidade de ação do cronista, que, desde os primeiros instantes da “quartelada”52, buscaria problematizar aqueles novos e inconcebíveis rumos da nação.

Neste sentido, impõe-se discutir, a partir daqui, os tais “silêncios” verificados na obra ficcional do autor – como resultado direto de seu enfrentamento às novas regras da política no Brasil, estabelecidas pelos militares. O primeiro deles, conforme já descrito, aparece em 1967, logo após a publicação de Pessach: a travessia – um dos livros mais politizados do autor, no qual se revela a trajetória de Paulo Simões, escritor burguês de sucesso que decide engajar-se na luta armada.

À época, perseguido pelos militares, principalmente por sua atuação no Correio da Manhã, Carlos Heitor Cony vê-se compelido, como forma de “ganhar a vida”, à prática exclusiva do

51 Na verdade, conforme se poderá perceber mais à frente, a grande intenção do autor seria não exatamente o

engajamento político, mas a denúncia, no espaço da crônica, de tudo o que viesse a se configurar como ação contra a integridade e a dignidade da natureza humana.

52 O termo é frequentemente usado por Cony, nas crônicas de O ato e o fato, em referência direta ao golpe

militar de 1964. Ao longo desta pesquisa, a expressão, sempre entre aspas – posto que cunhada pelo cronista –, será também bastante utilizada.

jornalismo, em detrimento da literatura – atitude que acabaria por culminar com o que aqui se trata por “primeiro silêncio ficcional”. Some-se a tal realidade o fato de que, como já comentado, o escritor viajaria a Cuba, retornando ao Brasil apenas em 1969.

Quanto ao “outro silêncio”, trata-se de “reclusão literária” muito mais intensa e perturbadora, cujo início remonta à publicação de Pilatos, em 1974. A partir do polêmico livro – em que o protagonista é obrigado a reorganizar sua existência devido à perda de seu pênis53 –, o escritor nega-se, por mais de duas décadas, a escrever “romances”54. Do ponto de vista estético, o próprio Cony categorizaria Pilatos como “o último romance de sua primeira fase”, além de considerá-lo “o melhor, mais pessoal e autêntico” trabalho de sua carreira, pois que o “único que só eu poderia ter feito”. Nas palavras do autor, a ideia de não escrever mais narrativas do gênero, a partir dali, teria surgido de modo natural:

Com ele [o livro Pilatos], achei que já tinha dito tudo o que tinha a dizer sob essa forma de expressão [romance]. Qualquer um poderia ter feito os outros. Melhor, igual ou pior, não importa. Mesmo os da segunda fase, que são maduros, bem aceitos por crítica e público. Mas são livros que não me fariam falta55.

Neste ponto, há que se realizar o seguinte questionamento, vital ao que, por ora, se pretende defender: diante da obra de autor tão produtivo, seria mesmo recomendável sustentar a ideia

53 Na obra, as temáticas da ausência, da intolerância social, do vazio e da perda são trabalhadas segundo o signo

do humor, do sarcasmo, do inusitado.

54 Tal profecia só seria quebrada vinte e um anos mais tarde. Em 1995, data oficial do que aqui foi delimitado

como início da “segunda fase da trajetória literária e jornalística de Cony” [de 1995 aos dias de hoje], chega às lojas o belo e memorialístico Quase memória, romance no qual o autor trata de sua relação com o pai, Ernesto. Após o grande sucesso do livro, o escritor dedica-se, ainda, a outras obras do gênero, assim como mantém regular – até os presentes dias – a atividade de cronista de jornais. Na Folha de S. Paulo, mantém dois espaços de opinião – o mais longo, no caderno Ilustrada; o mais curto, na segunda página do periódico. Também integrante do conselho editorial do referido diário, o cronista Cony segue a desfiar sua ironia, seja ao tratar das saudades de sua cadelinha Mila, seja ao discutir as “ruínas” inerentes ao caráter da humanidade. Sobre a publicação de Quase memória, mais de duas décadas após Pilatos, um crítico do Jornal Rascunho comenta: “Durante pouco mais de 20 anos, Carlos Heitor Cony, para além de sua atuação no jornalismo, deu as costas ao romance. Não escreveu e, para uma geração de novos leitores, ele era apenas um jornalista. Perguntado por quê, Cony deu mais uma resposta aparentemente simples: não se sentia pessoalmente torturado por nada a ponto de escrever. Há quem confunda isso com bloqueio de escritor ou até mesmo depressão. Não era disso, no entanto, que se tratava a fase em branco de Cony. Para ele, a literatura tem uma relação absolutamente intrínseca com a angústia, sendo, portanto, esse o fator que gera a obra de arte. Nesse sentido, o retorno aos romances não poderia ser mais exemplar. Com Quase memória, a crítica e o público redescobriram Carlos Heitor Cony e suas histórias que cumprem com as expectativas dos leitores. O livro em questão, no entanto, surpreendeu porque não trouxe um autor enferrujado pelo tempo que ficou sem publicar. É como se ao longo de 20 anos a escrita, o tema e o próprio autor tivessem se fortalecido ainda mais no aspecto literário. Não se quer dizer aqui que Cony não estava pronto entre as décadas de 1950 e 1970. Trata-se tão-somente de evidenciar que a prosa do autor atingiu seu patamar mais elevado com este livro”. (Disponível em:<http://rascunho.rpc.com.br>. Acesso em 26 abr. 2011.)

55 Entrevista concedida a Josué Machado. (In: MACHADO, Josué. O medo como arma. Revista Língua

de que ele tenha se distanciado da “seara” da ficção por mais de 20 anos (leia-se de 1974 a 1995)? Ou, ao contrário, trata-se, exclusivamente, de abandono temporário, por parte do autor, em relação ao gênero “romance” como meio de expressão?

Perante tais perguntas, o que aqui se busca afirmar é a ideia de que os tais “silêncios ficcionais” devem ser chancelados, apenas, no que diz respeito às atividades do “romancista Cony”, profissional da palavra que realmente se “cala” por longos e significativos períodos. Importante destacar, contudo, que a trajetória literária do autor não se resumiria aos romances. Para muito além das narrativas de “grande fôlego”, conforme discutido, o autor lidaria, de modos os mais diversos, com as potencialidades e recursos da ficção, principalmente, por meio do gênero narrativo responsável por torná-lo conhecido em todo o Brasil: em suas milhares de crônicas, publicadas em jornais e/ou reunidas em livros, Cony não só tratará da realidade circundante e suas idiossincrasias, como investirá – à maneira dos grandes cronistas responsáveis por modernizar o gênero, de Machado de Assis a Rubem Braga – em complexos jogos de narrativa, nos quais os próprios limites entre “ficção” e “realidade” são postos à prova.

Em outras palavras, cabe ressaltar que, enquanto o “Cony romancista” entrega-se a silêncios oportunos, o “Cony cronista”, ao contrário, percebe a palavra como recurso imprescindível ao fortalecimento das vozes de suas múltiplas e produtivas personas: do jornalista profissional ao cidadão indignado com os rumos da humanidade; do cético observador ao calejado homem de letras.

2 CONY E A TESSITURA DA CRÔNICA

Quando um cara tem coragem de gritar que está sofrendo, fatalmente encontra alguém que o compreende e, algumas vezes, o ame. Isso não dá apenas samba. Dá crônica também.

Carlos Heitor Cony