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8 Estudo de caso Rope

8.7 Rope como exercício voyeurista

Mas será Rope (Bernstein et al., 1948) um filme assim tão íntimo? Por um lado, nem tanto, devido à arquitetura do espaço. Sendo uma penthouse, todas as divisões da casa estão ao mesmo nível. Bachelard indica a arquitetura da casa térrea de dois andares (com o primeiro andar para as visitas, e o segundo andar para os quartos, as zonas íntimas, não violadas por estranhos) como mais propenso ao intimismo devido à zona segura do segundo andar, ao contrário das divisões aplanadas dos apartamentos (1994: 27). A penthouse do filme apresenta todas as suas divisões ligadas pelo facto das portas estarem permanentemente corridas, escancarando qualquer privacidade, e minando a intimidade.

Mas por outro lado, é também um filme poderosamente íntimo, e tal começa pela insinuação, numa época onde o tratamento de tal tema estava interdito, da relação homossexual da parelha assassina. A abordagem casta e pudica (dado o contexto, de outra forma não era possível) é digna de um cinema intimista.

E esse intimismo é impulsionado pela ‘vida psicológica secreta dos objetos’, referente aos objetos domésticos que podem conter algo no seu interior. Regressando ao ‘estado psíquico’ que é o espaço doméstico, e como reflete a psicologia de quem o habita, objetos

como gavetas, guarda-vestidos e arcas albergam a ‘vida psicológica’, e alojam o mais íntimo da intimidade (Bachelard, 1994: 78). Tal ideia é exemplificada pela arca onde jaz David Kentley, e de onde é servido o buffet que alimenta não só quem teme pela sua vida, como os seus dois carrascos.

Chests, especially small caskets, over which we have more complete mastery, are objects that may be opened. (…) But from the moment the casket is opened, dialectics no longer exist. The outside is effaced with one stroke, an atmosphere of novelty and surprise reigns. The outside has no more meaning. And quite paradoxically, even cubic dimensions have no more meaning, for the reason that a new dimension – the dimension of intimacy – has just opened up. (Bachelard, 1994: 85)

Por isso, quando esses objetos são abertos, independentemente do que poderão conter, o que nos é revelado é a própria intimidade. Este ato físico torna-se metafórico do voyeurismo, exibindo a intimidade para que esta seja vista. A referência à arca é bastante pertinente, porque é o culminar desta problemática (poder-se-á argumentar que o ato de matar alguém é o mais elevado grau de intimismo que alguém se pode envolver), pois ao abri-la, revelando o seu interior, é refletida a vida psicológica no seu extremo. E abrir e revelar destes objetos íntimos e psicológicos é também um ato de voyeurismo que Hitchcock nos convoca.

Para além dessa questão, o filme inclui um momento de claro voyeurismo entre a personagem e o espetador: a cena em que Brandon guarda a corda numa gaveta da cozinha. A cena está construída de forma a que apenas o espetador ‘veja’ o que acontece,64

e a porta, utilizada no filme para destruir a privacidade, tem uma grande importância.

Figura 8-13 Rope (Bernstein et al., 1948)

Carateristicamente em Hitchcock, não é inocente a forma como a porta balança de um lado para o outro, revelando convenientemente Brandon quando este deixa cair a corda na gaveta, quase ‘posando’ para o espetador. De notar que esta é a única porta da penthouse que não é de correr – caraterística aproveitada para este ‘piscar de olho’ voyeurista com o espetador, convocando a condição de voyeur, implicando-o na situação.

Figura 8-14 Rope (Bernstein et al., 1948)

E ainda que momentos destes sejam raros durante o filme (outro é quando Brandon revela não saber do paradeiro de David, que o faz sem quebrar a quarta parede, mas de costas para o seu interlocutor, e completamente virado para a câmara, novamente ‘posando’ e exibindo-nos toda a sua perversa criatividade), a mise-en-scène, acentua a sensação que o filme vai ficando progressivamente mais voyeurista – culminando com o abrir da arca.

Figura 8-15 Rope (Bernstein et al., 1948)

O ponto de vista dos planos-sequência nunca se torna subjetivo de qualquer personagem, mas é-o totalmente subjetivo de Hitchcock. Os constantes reenquadramentos, aproximando a escala para nos revelar mãos a manusearem objetos e outros pormenores importantes, implicam a sua atenção voyeurista (que consequentemente passa para o espetador), quando passamos a ter a sensação de que estamos a espiar os recantos daquele espaço, para deslindar os seus segredos.

Figura 8-16 Rope (Bernstein et al., 1948)

Quando Rupert regressa à penthouse para o desfecho do filme, pela primeira vez o plano-sequência assume um ponto de vista subjetivo (de Rupert, quando relata os passos que ‘daria’ se tivesse de matar David, encenando mentalmente um eventual homicídio), com a câmara a calcorrear os espaços e objetos importantes na sua narrativa.

Esta cena é o exemplo acabado desta mise-en-scène voyeurista, que aqui assume um ponto de vista totalmente psicológico e devassa o espaço, possibilitando o nosso voyeurismo daquele acontecimento. O exercício voyeurista que o filme nos convoca está assim diretamente ligado à sua mise-en-scène, mas também a noções mais amplas e exteriores à narrativa e à linguagem cinematográfica.

Como analisáramos no capítulo anterior, o voyeurismo do ‘cinema dos espaços fechados’ emerge do aparato voyeurista, pela sua caraterística exibicionista/voyeurista (no sentido de projeção que é vista), extremada pela localização do filme em espaços fechados, onde esse aparato nos dá acesso à privacidade do espaço enclausurado, teoricamente invisível do mundo que lhe é exterior – e que é assim escancarado, fazendo o espetador engajar num ato de voyeurismo ao espiar aquela história íntima e privada, escondida na privacidade dos espaços fechados.

Longe de ser o filme de Hitchcock mais diretamente ligado ao voyeurismo, Rope (Bernstein et al., 1948) é, na sua essência, um filme pervasivo. Viola os códigos de privacidade, escancara todo o espaço, devassa-o durante toda a sua duração (graças à continuidade dos planos-sequência) e, associando a ideia de voyeurismo nos espaços fechados, o aparato destrói as fronteiras que nos interditariam esta história. E o escancarar do filme faz o que o suspense se jogue ao contrário, onde nada é escondido e tudo é mostrado.

Rope (Bernstein et al., 1948) é assim um filme psicológico, intimista, e voyeurista, pelo

seu interesse na psicologia das personagens, na exploração do seu intimismo, na utilização do espaço fechado, e na fenda que a sua condição exibicionista convoca ao voyeurismo – tal como qualquer outro filme do ‘cinema dos espaços fechados’.

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