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Os rostos da mulher latino-americana: a situação das mulheres indígenas antes da

Os registros históricos sobre o lado feminino das sociedades são poucos. Em geral, as mulheres aparecem, dentro da história oficial, sob a forma de registro pouco relevante. Porém, existem referências de pesquisadores, cronistas, escritores de contos e narrativas que nos ajudam a resgatar a identidade feminina ao longo da história. Neste item desta pesquisa, pretendemos relatar alguns elementos que nos permitirão vislumbrar as condições de vida das mulheres indígenas antes da conquista. Tudo isto a fim de construir, ao longo deste trabalho, uma cronologia que nos permita visualizar a complexidade social e histórica das mulheres latino-americanas a partir da estrutura hierárquica de classes sociais, do sistema de valores da Colônia, da mestiçagem e, finalmente, do papel de um sistema econômico capitalista que tem contribuído para gerar várias formas de ser mulher nesta região do terceiro mundo.

As sociedades Astecas, Maias e Incas apresentavam uma hierarquia de classe que determinava os trabalhos de cada grupo social. Pode-se dizer que existia uma divisão

sexual do trabalho no que se conhece como as três maiores civilizações do continente antes da conquista. As mulheres “Maias, Incas e Astecas se dedicavam ao trabalho doméstico, à produção de tecidos, trabalhos agrícolas e artesanais e parte do trabalho familiar” (HERNANDEZ e MURGUIALDAY 1992, p. 41, tradução nossa).

Na cosmovisão e na religião destas sociedades indígenas, se destacavam conceitos básicos, tais como a unidade, diversidade, complementaridade, harmonia e equilíbrio:

Para os Maias os limites da humanidade são a vida e a morte, mas é no equilíbrio entre estas duas forças onde existe a consciência criadora. Esta consciência transforma o mundo e se transforma a si mesma. Quando o equilíbrio se perde, a humanidade se destrói” (BATZIBAL, 1991 apud HERNANDEZ e MURGUIALDAY 1992, p. 42, tradução nossa.)

O equilíbrio da humanidade se poderia observar por meio da relação homem/mulher como grupo familiar dentro da comunidade, da sociedade e do próprio universo. A mãe é quem dá vida e se relaciona com a terra para se unir ao sol, que gera a vida e os alimentos. Por isto, a mulher se visualiza como a gestora do lar, aquela que garante a formação e a criação das novas gerações.

Por outro lado, é por meio destes princípios de complementaridade, unidade e equilíbrio que se esconde uma divisão sexual do trabalho responsável por manter as mulheres dentro de uma situação de subordinação e opressão. Ao mesmo tempo que a mulher é valorizada de acordo com a sua capacidade procriadora, suas habilidades ficam reduzidas a esta atividade, pois ela existe enquanto procria. “O equilíbrio e a harmonia dentro da sociedade só consegue se manter quando a mulher assume seu papel de procriadora e seus campos de ação social ficam reduzidos à esfera da reprodução, tanto material como

ideológica” (HERNANDEZ e MURGUIALDAY 1992, p. 41, tradução Figura 4. Crônicas de Waman Poma: “ A primeira história das rainhas de Coia. Mama Vaco Coia. Reino de Cuzco”. Fonte: Waman Poma (1615)

nossa). É a partir desta condição que vários registros sobre a mulher indígena pré- colombiana sugerem que a posição das mulheres nestas sociedades não era propriamente de privilégio. “A articulação das mulheres à produção mostra como a subordinação não era um produto de condições biológicas, mas que formava parte de um entremeado social que o gerava, reproduzia e legitimava” (RODRIGUEZ 1991, p. 147, tradução nossa).

Se a divisão sexual do trabalho já era geradora de opressão para as mulheres indígenas destas três civilizações, a estrutura de classe social agravava ainda mais seus níveis de opressão. Dentro da sociedade mexica1, por exemplo, encontramos mulheres nobres e plebeias com uma grande diferença de status e de acesso a distintos tipos de benefícios entre elas (Figura 4). Como sintetiza o estudo da mulher asteca feito pela pesquisadora Maria Jose Rodriguez (1992), tanto as mulheres nobres quanto as plebeias, realizavam trabalho doméstico, guardavam sua virgindade, e recebiam uma educação rígida e de castidade. Elas tinham que respeitar e obedecer aos homens, fossem estes os pais, irmãos ou maridos. Nem as nobres, nem as plebeias tinham direito de ir à escola e, desta forma, ficavam excluídas de um tipo específico de conhecimento e da educação formal. Se estes dois grupos de mulheres realizavam trabalhos domésticos e serviços religiosos, as mulheres plebeias e de classes mais abastadas também deviam pagar tributo com mais trabalho, exercendo algum ofício como meio de subsistência.

As mulheres nobres eram capazes de herdar terras. Elas não tinham acesso ao poder político, mas podiam transmiti-lo.

As mulheres nobres realizavam trabalho doméstico gratuito: alta costura e cozinhavam para o marido e os filhos. Podiam ser trocadas, dadas como presente ou emprestadas pela elite masculina dos povos vizinhos (...) Quando um homem nobre morria era enterrado com 20 mulheres escravas e 20 homens. À mulher nobre quando morria se enterrava apenas com a roupa que usava e suas ferramentas para fazer tecido (RODRIGUEZ 1992, p. 93, tradução nossa).

As mulheres plebeias, ou seja, las mujeres del pueblo, também tinham que pagar tributos em trabalho e em espécie, com a agravante da exploração sexual. Além de realizar o próprio trabalho doméstico, colaboravam com seus maridos nos trabalhos

agrícolas, teciam a roupa da sua família e faziam um determinado número de mantas para pagar tributo ao seu bairro. Também trabalhavam como serventes nas casas das classes altas e às vezes, quando o senhor da casa morria, ela era enterrada junto com ele. Enquanto para as mulheres nobres a prostituição estava proibida, pois se castigava com pena de morte, para a mulher trabalhadora isto era quase uma imposição. Às vezes eram os próprios pais que viviam dentro de uma profunda pobreza que destinavam estas mulheres à prostituição e ao concubinato.

Figura 5. Tecedor equatoriano Miguel Andrango.

Fonte: Jason Malinowski. Tratamento de Imagem: Amanda Martinez.

Por outro lado, existiam diferenças entre a sociedade Asteca e a Inca, no que se refere ao trabalho doméstico. Enquanto na sociedade Asteca existia uma clara divisão sexual do trabalho, na sociedade Inca havia uma divisão de tarefas de acordo com o sexo. “ Por exemplo, a mulher tecia num tear de cintura onde se fabricavam peças produzidas para o esposo. O esposo tecia em pé as peças grossas (as saias) da sua esposa ou os lençóis da sua família” (Figura 5) (CONDORI, 1986 apud, HERNANDEZ e MURGUIALDAY 1992, p. 44, tradução nossa).

Nos registros gráficos do cronista qhichwa, Waman Puma2, podemos observar esta divisão sexual do trabalho que existia na civilização Inca pré-colombiana.A teoria visual de Waman Puma também contem uma representação gráfica do sistema colonial que posteriormente será discutido (Figuras 6 e 7).

Nas sociedades indígenas, se poderia dizer que as mulheres não tiveram acesso à posição de autoridade e ao poder público. Os seus espaços de poder e de decisão eram limitados, enquanto eram os homens que usualmente exerciam o monopólio das atividades sociais, econômicas e políticas. A monopolização e a distribuição do poder focada nos homens conduziu à marginalização das mulheres, nobres e plebeias, e a uma distribuição desigual do trabalho e dos centros de autoridade. O prestígio e o poder eram privilégio dos homens (RODRIGUEZ, 1992). Se as mulheres estavam excluídas da autoridade e do poder das principais sociedades indígenas nas Américas, com certeza

2 Felipe Guamán Poma de Ayala, ou Waman Puma, foi um cronista indígena da época do vice-reinado de Peru. Se dedicou a percorrer durante vários anos o vice-reinado e escreveu a Primeira nova crônica do bom governo, um dos livros mais originais da historiografia mundial. Nesta obra de 1180 páginas e 397 desenhos, concluída aproximadamente no ano 1615, se mostra a visão indígena do mundo andino que permite reconstruir com muito detalhe aspectos da sociedade peruana depois da conquista.

Figura 6. Crônicas de Waman Puma. Foto1: “Padre Domenico com muita raiva e muito soberbo que junta as mulheres solteiras e as viúvas dizendo que estão amancebadas”. As reúne na sua casa e faz com que elas teçam. Elas tecem roupas finas, auasca (roupa do dia a dia) em todo o reino e sob doutrinas (p.611).

Figura 7. Foto 2: Frayle Martin de Múrua batendo em uma trabalhadora: “São tão bravos e justiceiros e maltratam aos índios. Fazem trabalhar com o pau em todo o reino. Para as doutrinas na ha remédio”.

seu espaço deve ter sido nulo na hora de planejar as grandes cidades Incas, Maias e Astecas antes da Conquista.