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II. Pelos (polémicos) caminhos de Trás-os-Montes.

5. A recepção de Trás-os-Montes

5.1. Ruidosa Ante-estreia

António Reis e Margarida Martins Cordeiro insistiram que a ante-estreia deveria ser no seio daqueles que tinham colaborado no seu filme, como uma verdadeira homenagem àquele povo transmontano. Partiram de Lisboa numa viagem penosa de horas, levando convidados vários desde elementos da Direcção-Geral da Acção Cultural, da Direcção-Geral da Educação Permanente, alguns jornalistas e amigos, entre os quais Miguel Torga, pessoas com as quais queriam partilhar o filme em solo Nordestino.280 A primeira visualização do filme foi em

Bragança a 1 de Maio de 1976, e a segunda em Miranda do Douro a 2 de Maio de 1976.

277 TORGA, Miguel - Um reino Maravilhoso…, inum.

278 António Reis em entrevista a José Matos-Cruz, durante a viagem a Trás-os-Montes (não publicada). MATOS-CRUZ,

José de –“Trás-os-Montes. António Reis/Margarida Martins Cordeiro, Portugal (1976)”…, p.159.

279 Anexo I, p. 123.

Em Bragança foi talvez pacífico e o público, que encheu a sala do Cine-Teatro Torralta nas três sessões de projecção, seguiu o filme atentamente.281 Alguns abandonaram a sessão ao

intervalo, talvez por estarem demasiado habituados à narrativa típica americana, e não conseguirem compreenderem aquele “filme em ladrilhos, os frescos de um Trás-os-Montes de certa maneira sem tempo”282.

Já o mesmo não aconteceu em Miranda do Douro quando o filme foi projectado na parede branca de uma casa da praça.283 Um grupo de provocadores reaccionários tentaram perturbar a

exibição, “aos gritos de ‘fora os comunistas!’, ‘destruamos esta porcaria!’ conseguindo, mesmo, interromper a respectiva alimentação eléctrica”284.

Aos apupos populares juntaram-se as críticas contra este filme veiculadas pelo semanário Mensageiro de Bragança:

“Manta de retalhos sem cor e sem nexo. Só nos apresentou velhos, mulheres e crianças, mergulhados num mar de tristeza, de melancolia, de carências, de fome , de miséria, de superstição, de obscurantismo, de apatia. Uma autêntica ficção de refinada procedência tendenciosa.”285

As paisagens não eram aquelas que poderiam ter melhor propagandeado a paisagem nordestina e a fotografia, “com frequência, demasiado escurecida”, não oferecia o “radioso sol transmontano”.286 Só mostrava as carências da região, e nunca as suas realizações e a “sua

relativa abastança”287. Não apareciam as cidades, as estradas, os carros, ou mesmo os

tractores. Só um agricultor a lavrar a terra com uma charrua puxada por dois jumentos. Questionava sobre os intuitos ideológicos ou políticos, nomeadamente na cena da refeição de neve, considerando-a “macacas de irresponsabilidade pseudo-arte”288. Trás-os-Montes era

“uma refinada mentira, uma vergonha, uma afronta!”289

Ao mesmo tempo que as acérrimas críticas surgiam pela voz do Mensageiro de Bragança, outros jornais, nomeadamente o Diário de Lisboa, desdobravam-se em defesa do filme clamando a sua superioridade no campo da imagem e da arte, e sobretudo no campo ideológico. Nuno Bragança alertava para a preservação da cultura que encerrava uma verdade profunda cujo chamado progresso não devia eliminar. A ante-estreia para o povo, que constituía a substância do filme, era um acto exemplar de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. Uma lição de respeito pela humanidade, acto constante no filme.290 E Carlos Porto

defendia que acusar o filme de ser contra a região, ou por não mostrar Trás-os-Montes que

281 MATOS-CRUZ, José – “Trás-os-Montes em Bragança e Miranda do Douro”, Plateia (Abril 76, conforme indicação do

autor) Apud MOUTINHO, Anabela; LOBO, Maria da Graça, (org.) – António Reis e Margarida Cordeiro…, p. 169.

282 RODRIGUES, Rogério – “Viagem violenta com ternura de infância”…, p. 20. 283 Apêndice, p. 111.

284 MATOS-CRUZ, José – “Trás-os-Montes em Bragança e Miranda do Douro”, Plateia (Abril 76, conforme indicação do

autor) Apud MOUTINHO, Anabela; LOBO, Maria da Graça, (org.) – António Reis e Margarida Cordeiro…, p. 169.

285 “‘TRÁS-OS-MONTES’: Um filme que é uma mentira e uma afronta!”. Mensageiro de Bragança, nº 1606 (7 Maio 1976),

p. 9.

286 Ibidem. 287 Ibidem. 288 Ibidem. 289 Ibidem.

poderia também existir, era ignorar a singularidade e a irreversibilidade daquela obra como se a quisessem apagar da “nossa história e do nosso quotidiano”.291

Pelos lados do Nordeste, o filme repudiado pelo “público” continuava a gerar contestação patente nos telegramas enviados à Secretaria de Estado da Cultura, e publicados no Mensageiro de Bragança a 17 de Maio de 1976:

“Grupo bragançanos protesta firmemente contra descarada mentira e

incrível afronta que representa filme intitulado Trás os Montes e denuncia seus intuitos deturpadores da realidade Transmontana para fins de propaganda malevolamente facciosa. E outro, este expedido de Macedo de

Cavaleiros: Numeroso grupo transmontano verdadeiramente indignados

com a farsa afronta e mentira que representa o filme Trás os Montes protesta energicamente contra a sua divulgação exigindo seja destruída semelhante aberração.”292

Vaz Pires em crítica publicada no Mensageiro de Bragança, a 21 de Maio de 1976, refere que muitas das realizações de modernidade que existiam naquela região, das estradas ao aeródromo, das barragens hidroeléctricas à expansão do ensino secundário, “que o 25 de Abril pôde contemplar, mas que, por razões várias, não pôde, ainda, infelizmente, aumentar”, foram frutos entre outros da “Comissão do Nordeste […] cuja criação anterior à data da emancipação, mostra que o governo de então não esqueceu nem abandonou esta região”.293

De certa forma tentava negar a mensagem apresentada no filme, veiculada pela adaptação da Muralha da China de Kafka.

“Saibamos, pois, protestar, com firmeza, contra esse pobre e infeliz documentário, repudiando a afronta daqueles que, subsidiados com o dinheiro do povo, se valem dos meios da comunicação, para, traindo a verdade, enganar o próprio povo!”294

Para Rogério Rodrigues, na sua crónica sobre Trás-os-Montes a 4 de Maio de 1976, este era o filme que falava desse povo trasmontano com respeito, ternura e profundidade, anunciando a ante-estreia em Lisboa a 6 de Maio pelas dez horas no cinema Satélite. “Provavelmente, também Lisboa não irá gostar. Se compreender, não se sentirá seguro de ser culto ou pelo menos minimamente sábio.”295 Mas Lisboa teria ainda de esperar pela estreia

deste filme. Na realidade só há registo de uma projecção296, a 12 de Maio na Fundação

Calouste Gulbenkian, com a presença do Presidente da República General Ramalho Eanes que relembraria mais tarde, à data de morte de Reis, como o encontro tinha sido para ele uma bênção de Deus “quer pelo encanto proporcionado, quer pela inesquecível lição recebida, de amor humilde, pelos homens e outros seres.”297

291 PORTO, Carlos – "Depoimento sobre o filme ‘Trás-os-Montes’”…, p. 14.

292 “A PROPÓSITO do filme ‘Trás-os-Montes’. Mensageiro de Bragança, nº 1607 (17 Maio 1976), p. 12.

293 PIRES, Vaz, “‘Trás-os-Montes’: Um filme sem qualidade nem verdade”. Mensageiro de Bragança, nº 1608 (21 Maio

1976), p. 5.

294 Ibidem.

295 RODRIGUES, Rogério – “Viagem violenta com ternura de infância”…, p. 20.

296 MATOS-CRUZ, José de – “Trás-os-Montes. António Reis/Margarida Martins Cordeiro, Portugal (1976)”…, p. 161. 297 António Ramalho Eanes, Lisboa, 29 Setembro 1997. In MOUTINHO, Anabela; LOBO, Maria da Graça, (org.) – António

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