• Nenhum resultado encontrado

2 INTRODUÇÃO HISTÓRICA À ESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA NO

2.4 RUPTURA OU CONTINUIDADE? O PRIMEIRO GOVERNO LULA (2003-

caráter econômico. Oriundo de classes populares e setores à esquerda, Lula foi eleito após sacramentar certa tranqüilidade aos mercados e à classe média com sua “Carta aos Brasileiros”. Ao demarcar separações entre o capitalismo liberal e o capitalismo desenvolvimentista, Bresser-Pereira (2013) afirma que a coalizão de Lula superou o liberalismo dos anos 90, colocando o Estado na trilha condutora da economia. Seu ponto crítico é uma sobrevalorização cambial, que inviabilizou a constituição de uma indústria nacional, formando uma elite desvinculada dos interesses nacionais. Novelli (2010), por outro lado, vê mais semelhanças com FHC: não só a apreciação do Real, mas também políticas superavitárias de ajuste fiscal.

O governo Lula assume um papel de agente técnico, atuando na forma de “dever ser” e não de “como poderia ser”, discurso contrastante ao estabelecido historicamente pelo Partido dos Trabalhadores (PT) até agora. Novelli ainda ressalta o recrutamento de economistas para a composição de uma equipe com trajetória semelhante aos recrutados pelo governo FHC – uma trajetória tipicamente liberal. Mesmo tendo no ministro Antonio Palocci o principal operador desse “giro ortodoxo”, fato que também encontra eco em Loureiro, Santos e Gomide (2011), não existem significativas mudanças na política econômica com a chegada de Guido Mantega ao cargo, apenas uma coexistência entre uma ampliação de políticas sociais e a manutenção da estabilidade. Mesmo as políticas sociais têm ampla participação na manutenção de um capitalismo de mercado:

Há de sublinhar um efeito importante da abertura de maiores oportunidades de ascensão social, ainda que elas não se concretizem em sua totalidade: essa abertura tende a produzir maior adesão dos beneficiados à ordem competitiva, ou seja, ao

sistema capitalista que a sustenta e ao Estado que a comanda. Este tem sido um dos caminhos de aprofundamento da hegemonia liberal no Brasil: permitiu, graças à democratização das oportunidades, o maior crescimento econômico e a ampliação do consumo, a incorporação sociocultural de setores subalternos e intermediários que, embora já participassem do sistema, faziam-no como em uma corrida de obstáculos muito difícil de superar (SALLUM JR, GOULART, 2016).

Em Amaral (2003), é perceptível um abrandamento do programa petista ao longo da década de 90. O programa de 1998 é o que talvez mais caracterize essa mudança: o foco deixa de ser um programa à esquerda, identificado com o socialismo, e se direciona em representar oposição ao governo. As eleições passam a figurar maior prioridade que o programa em si. Essa atenuação no tom do programa ganharia ainda maior destaque no programa de 2002, cujo analista que utilizaremos será Machado (2003).

O autor divide sua análise em três momentos: o texto “Concepção e Diretrizes de governo do PT para o Brasil”, aprovado no congresso do PT em 2001; o programa “Um Brasil para Todos”, aprovado em junho de 2002 como programa de campanha; e as ações do governo em seus primeiros meses de atuação. O primeiro apresenta três eixos estruturais: o “social”, o “nacional” e o “democrático”. O eixo social focalizou em medidas distributivas e de produção em massa para o consumo interno. O eixo nacional se direcionou para medidas de proteção do capital nacional à interferência externa, como a “denúncia” dos acordos do FMI, o equilíbrio da balança comercial e a consolidação de empresas estatais. O eixo democrático versa sobre maior inserção popular nas decisões de governo. Machado (2003) classifica esse programa como “social-desenvolvimentista”: uma retomada do antigo desenvolvimentismo, inserindo maior participação popular e distribuição de renda no processo. O segundo programa, de 2002, apresenta um atenuamento bem maior. Ele vem acompanhado da divulgação da “Carta ao povo brasileiro”, documento em que Lula firma compromisso com os marcos da estabilização e a formulação de um processo de transição seguro e gradual entre o modelo vigente e as políticas propostas pelo PT. Uma transição, além de tudo, negociada com amplos setores da sociedade. Essa transição se dá, principalmente, na troca da âncora cambial de FHC por um modelo de desenvolvimento econômico que também garante estabilidade. A centralização do debate nesses marcos evita qualquer nível maior de radicalização. O economista considera essa nova versão mais moderada que a anterior, mas avalia que essa moderação se dá muito mais pela omissão do texto em alguns tópicos, que pela afirmação dos mesmos. Assim, na posse de Lula, em janeiro de 2003, não havia certeza sobre qual seria o programa econômico dele: traria os elementos demarcados no texto de 2001 ou se apropriaria apenas do que foi apontado em 2002?

Machado (2003) aponta que o início do mandato de Lula se configurou em uma forte continuidade do governo FHC. O documento “Política Econômica e Reformas Estruturais”, lançado em 10 de abril pelo Ministério da Fazenda, apresenta um ajuste fiscal de longo prazo que representa, ao todo, a transformação do período transitório do texto de 2002 em um período histórico, em que reforma previdenciária e autonomia do Banco Central tornam-se prioridades para que, no futuro, pudesse haver alguma política de desenvolvimento. Ao invés de substituiro modelo fiscal adotado no governo anterior por um modelo de desenvolvimento, ele atenua o que está em voga com a promessa de, no futuro, estabelecer o modelo de desenvolvimento. Com fortes críticas da base petista e dos partidos aliados, o governo lança, em 2004, o texto “Plano Plurianual 2004-2007 – Orientação Estratégica de Governo – Um Brasil para todos: Crescimento Sustentável, Emprego e Inclusão Social”, visando atenuar o caráter ortodoxo. Nele, o caráter do Estado é bem mais destacado como condutor da política econômica e não mais como um mecanismo de abertura ao mercado. Os caracteres distributivos e democratizantes tornam a aparecer. Entretanto, o pesquisador apresenta incoerências no texto regente do primeiro mandato de Lula: a defesa de um ajuste macroeconômico, de cerne monetarista e ortodoxo, que representa uma continuidade do modelo de FHC; defesa da Reforma da Previdência e da revisão da Lei de Falências (que propõe reduzir o spread bancário através de maior segurança nos contratos) e aponta para o estabelecimento de parcerias público-privadas.

A dimensão programática encontrou eco na atuação prática. Paulani (2003) expressa duas razões para a adoção dessa política. A primeira é a noção de there is no alternative, que afirma que só existe uma política econômica, a neutra, responsável e austera, enquanto todas as outras seriam alternativas populistas e utópicas, em que “não há diferença formal entre a independência do Banco Central e a sua ‘autonomia operacional’”. A segunda é a lógica da credibilidade, justificada pelo fato de o governo só conseguir atrair capitais e efetuar mudanças se o mercado, como instituição abstrata de atuação concreta, visse as ações do governo como responsáveis para o Brasil. A intencionalidade destas movimentações, segundo a autora, é manter no poder as redes de controle e concentração de renda:

A afirmação peremptória de que existe uma única macroeconomia, independentemente da intenção com que é feita, esconde assim, atrás de sua aparente tecnicidade e neutralidade, o e benefício de interesses muito específicos, que estão em linha com a virada pró-acumulação financeira do capitalismo mundial que começa no final dos anos 70, devasta a América Latina nos anos 90 e ainda está por aqui, firme e forte. Com sua política econômica, o governo do PT fortalece esse ideário, visto que abraçada, defendida e aplicada pelo maior partido de esquerda do mundo, no governo do maior país da América Latina, a política econômica vinculada a esses interesses

ganha um inestimável reforço em sua imagem de política cientificamente comprovada (PAULANI, 2003, p.25).

Sicsú (2003) afirma que o “plano A” de FHC não pôde ser executado por completo, e Lula estaria executando o “plano A+”, um aprofundamento desse plano. Apesar de ser apresentada como transitória e necessária, essa posição é definitiva, não só pelo caráter neoliberal da equipe escolhida para a Fazenda e o Banco Central, como pelo fato de que o mercado financeiro não aceitará uma credibilidade alcançada em poucos anos, exigindo mais concessões à plataforma petista. A opção petista, para o autor, é perder aliados históricos para ganhar respeito do mercado financeiro e de adversários políticos. Mesmo que não estabelecesse uma política total de mudança, havia modelos de transição que poderiam ser adotados, ao invés da sequência e fortalecimento do modelo Cardoso: “entre a ruptura total e a pura continuidade (com aprofundamento), havia muito espaço e inúmeras possibilidades” (SICSÚ, 2003, p.99).

É possível observar, de acordo com Boito Jr (2003), um aumento da chamada “hegemonia neoliberal” durante o governo Lula. Para o autor, o governo de Lula da Silva elevou “a uma etapa superior o longo processo que resultou na implantação de uma nova hegemonia burguesa no Brasil – a hegemonia regressiva do modelo capitalista neoliberal e periférico” (BOITO JR, 2003). Em outro artigo, Boito Jr (2005) analisa os impactos dessa nova hegemonia burguesa na dinâmica de poder da própria burguesia no Brasil. Em princípio, a redução do Estado com o avançar do neoliberalismo nos anos 90 foi ponto em comum em todas as frações da burguesia. Todavia, existem diferenças na medida em que uma ou outra fração é favorecida. A diferença do governo Lula em relação ao seu antecessor está na maior valorização das frações industriais e, principalmente, agrícolas. Entretanto, essa valorização vai até o limite em que beneficia o sistema financeiro. O aumento da produção é voltado para a exportação, com entrada de capitais voltados a alcançar superávits para pagar a dívida pública, cujo beneficiário é o sistema financeiro internacional. (BOITO JR, 2005). Essa política resulta em apoio e elogios por parte dos mercados internacionais, que vêem com bons olhos a transformação do país em uma opção de investimento de elevada liquidez e alta rentabilidade (SICSÚ, 2003).

Dentre as diferentes frações burguesas atuando no governo Lula, o setor bancário/financeiro manteve seus ganhos e sua posição de domínio, condicionando o desenvolvimento de outras áreas ao limite de seus objetivos. Para garantir seu crescimento, o setor bancário precisa ter assegurados cinco fatores, todos mantidos e ampliados no governo Lula: a internacionalização do sistema financeiro, a estabilidade do câmbio, o pagamento de

dívida pública com juros altos, liberdade para o estabelecimento de taxas ao setor privado e ajuste fiscal que mantenha constante o pagamento da dívida. (BOITO JR, 2005). O autor também defende a tese de que as movimentações políticas do governo Lula são explicadas pelas disputas internas do bloco no Poder vigente e pela consequente hegemonização da fração dominante, no caso, o sistema financeiro. Essa tese é nitidamente influenciada pela matriz teórica poulantziana que o autor se vincula.

Para ilustrar essa proposição, o autor traz alguns exemplos. O conflito entre BNDES (representado pelo economista Carlos Lessa) e o Banco Central (sob o controle de Henrique Meirelles) demonstra o confronto entre os interesses da fração industrial e os interesses do sistema financeiro. A saída de Lessa, demitido pelo presidente, ilustraria a vitória do setor financeiro no embate interno do governo. Outro exemplo trazido por Boito (2005) se refere à política externa. O governo Lula, nesse sentido, realizou um duplo movimento de atender às demandas do imperialismo (como a ocupação no Haiti) e subordinar pequenas e médias economias agrícolas ao expansionismo do mercado brasileiro de exportação de produtos agrícolas e industriais de baixa complexidade.

Nesse sentido, ao conservar a hegemonia do capital financeiro no seio da disputa econômica entre os diferentes setores do governo, o primeiro mandato de Lula não representou pura e simplesmente um continuísmo do governo anterior, mas uma ampliação de suas políticas. “O que ocorre é que o governo Lula amplia e dá nova dimensão ao que foi iniciado no segundo mandato de FHC” (BOITO JR, 2005, p.23). Nem o aumento do consumo, através de políticas macroeconômicas e sociais, nem o crescimento de setores agrários e industriais representaram perda nos ganhos do capital financeiro internacional.

Documentos relacionados