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2.2 A filosofia no século XIII

2.2.2 São Boaventura

São Boaventura (1221-1274). Estudou em Paris, tendo como mestre Alexandre de Hales. Recebeu juntamente com Tomás o título de Mestre. Mais tarde tornou-se Superior Geral da Ordem Franciscana e, por fim, cardeal de Albano, falecendo no Concílio de Lião. Em termos filosóficos, suas obras mais importantes são: os Comentários a Pedro Lombardo, as Quaestiones disputatae, o Itinerarium mentis ad Deum e De reductione artium ad

theologiam. Supera Alexandre de Hales, seu mestre, em clareza, precisão e profundidade, mas

também como este, é fiel à tradição. Foi amigo de Tomás, tendo conhecido suas inovações, sem as combater, com exceção da possibilidade da criação eterna. Porém, preferiu as antigas doutrinas da escola franciscana. Boaventura tem um caráter místico e sem deixar de ser um especulativo nele predomina o aspecto afetivo, ao contrário de Tomás, mais raciocinador.

Boaventura, pode-se dizer, está mais próximo de Platão, enquanto Tomás, de Aristóteles (FRANCA, 1969, p. 100-101).

São Francisco dava novo impulso à vida espiritual, sem desmerecer a doutrina. Porém, se recomendava os estudos era mais para agir do que para ensinar. Daí que para Boaventura os pregadores (dominicanos) se voltam, sobretudo, à especulação e depois à unção. Os menores (franciscanos) se dedicam principalmente à unção e depois à especulação. Além do mais, Alexandre de Hales e João de La Rochelle admitem que quando se trata de objetos que vão além da capacidade do homem, o conhecimento passa a ser iluminativo, tendo por agente o próprio Deus. Boaventura é o maior representante dessa concepção (BRÉHIER, 1978, p. 122-123).

Na visão de Boaventura, a filosofia não é teórica e racional, mas prática e religiosa. Ela deve conduzir a Deus, que atinge imediatamente tudo e se possui pela união mística. A sua gnosiologia é marcada pelo iluminismo agostiniano, que o conduz à prova intuitiva da existência de Deus com sua presença imediata ao espírito humano (PADOVANI- CASTAGNOLA, 1972, p. 232).

Mesmo sendo favorável ao cultivo da ciência, a atitude de Boaventura é menos acolhedora à filosofia na relação com a teologia do que Tomás e Alberto Magno. Apesar de distinguir bem fé e razão, filosofia e teologia, ele enfatiza a distinção entre homem natural e o homem elevado à ordem sobrenatural. O que interessa a Boaventura é este último. Mesmo reconhecendo a existência da filosofia e proveniente de uma iluminação divina, luz da razão natural, ele a considera insuficiente e incapaz de atingir a verdade em sua plenitude, a menos que seja reforçada pela luz da fé. Boaventura estabelece uma hierarquia na capacidade do saber. O ponto mais alto da sabedoria é a Sagrada Escritura. Depois há uma descida com os Santos Padres; em seguida se desce mais com a teologia escolástica e, por último, com a filosofia. Ela deve estar subordinada à teologia, não podendo ser autônoma. Ela é a ciência das coisas naturais e a teologia, a ciência fundada na fé e no sobrenatural (FRAILE, 1986, p. 178-179).

A filosofia não tem significado senão na medida em que se orienta para Deus. Significa uma etapa transitória entre um estado inferior, em que se conhece pouco a Deus, e um estado superior de conhecimento melhor. A razão é intermediaria entre a crença e uma intuição intelectual, que atinge de um só golpe o princípio máximo. A filosofia, portanto, não deve ser fruto de curiosidade, buscando as coisas em si mesmas, mas uma propensão religiosa, que orienta para Deus (BRÉHIER, 1978, p. 123-124). Para o autor, todo

conhecimento possui sua fonte na iluminação divina (FRAILE, 1986, p. 182). Nota-se que essa posição encontra fundamento nas premissas de seu pensamento, quanto ao conhecer.

Com relação a Deus, a sua existência é por si mesma uma evidência. Quanto à alma, esta conhecendo a si mesma, se revela como a imagem de Deus e, ao conhecer as coisas imperfeitas, compostas, móveis, capta o ser perfeito, simples, imutável. Deus, causa exemplar, é objeto da metafísica. Afirma contra Aristóteles a existência das Idéias platônicas, tendo em Deus a sua expressão verdadeira e integral, bem como sua primeira semelhança. Porém, esse mundo das Idéias é Deus mesmo, como Verbo ou Filho, sendo uno e simples e somente se manifesta como múltiplo quando faz nascer uma multiplicidade limitada de coisas sensíveis. Essa visão nada tem a ver com a de Plotino, onde há uma escala decrescente. Nada preenche o abismo infinito entre criatura e criador e nada também vem dificultar o retorno da alma a Deus (BRÉHIER, 1978, p. 124-125).

Assim, Deus como causa eficiente deve ser diferente de Deus como causa exemplar. Uma infinidade de mundos possíveis se encontra na unidade infinita do Verbo, e a vontade Deus, por razões que não podemos conhecer, escolhe um desses mundos. Por esse voluntarismo, que se acentuará nas escolas franciscanas, o autor se opõe a qualquer tentativa de se entender uma continuidade entre Deus e a criatura (BRÉHIER, 1978, p. 124-125).

Antes de falar da criação, convém tratar do exemplarismo para se poder entendê-la. Esse modelo, ele o acolhe de Agostinho. A criação e a perfeição dos seres encontram sua razão nas idéias que se encontram na mente divina, que são os modelos e arquétipos exemplares. Tais idéias, ou razões eternas se encontram em Deus em número infinito. No entanto, não se distinguem entre si nem da essência divina, mas somente segundo a razão de entender. Elas, além da razão de ser, são também o conhecimento de tudo. Na essência divina elas são mais verdadeiras e cognoscíveis do que em si mesmas. Assim, nessa essência nos veríamos melhor que em nós mesmos (FRAILE, 1986, p. 189-190).

Com relação à criação, o autor parte do atributo da bondade divina, que é essencialmente difusiva. Ela se dá de dois modos: uma para dentro, consubstancial de que resultam as pessoas divinas e outra fora, na criação, fazendo surgir os seres. Como ser espiritual e inteligência absoluta, Deus realiza a criação por meio das idéias exemplares, que estão impressas nas coisas de modo mais ou menos perfeito, mas suficiente para revelar a ação divina. Nesse aspecto, pode-se dizer que Deus é a forma de tudo, sendo que as formas das coisas são imitações do exemplar supremo na essência divina. Assim, a natureza é uma revelação de Deus, uma escada que leva a Ele. As idéias exemplares constituem o fundamento da verdade ontológica da realidade. O entendimento humano, por sua vez, não

pode possuir a verdade perfeita, porque conhece somente as coisas criadas, que são mais reflexos ou imitação das idéias (FRAILE, 1986, p. 191-192).

Com relação à estrutura das coisas criadas, se Deus é a suma simplicidade, esta se contrapõe à composição do ser criado, composto de ato e potência, de essência e existência, de matéria e forma, envolvendo também os anjos e as almas humanas. Na questão da matéria, para o autor esta é o princípio de limitação, como também princípio de multiplicidade e multiplicação dos seres. Ela é pura potência e indeterminação, anterior a todas as formas, e indiferente para receber uma forma corpórea e espiritual. Assim não é nem corpórea nem espiritual. Com relação á forma, esta pode ser espiritual ou corpórea. A espiritual é simples, sem extensão, indivisível e não sujeita à localização. Nela a matéria é penetrada, saturada e absorvida pela forma espiritual. Porém, é mutável. Toda essência criada é composta de dois princípios: um ativo (forma) e outro passivo (matéria) (FRAILE, 1986, p. 191-192).

Em antropologia, o homem para Boaventura é um ser composto de corpo material e de alma espiritual composta, por sua vez, de matéria e forma, sendo uma substância completa. Quanto à sua origem rechaça a preexistência e o traducionismo, afirmando a criação imediata desta por Deus do nada e ordenada para se unir ao corpo, ao embrião, quando este tiver condições de exercer as funções vegetativas. Com relação às suas potências, tem uma posição intermediária. A alma possui potências distintas consubstanciais a ela. Não se identificam radicalmente com a essência, nem se distinguem totalmente como simples acidentes. Ela é a imagem de Deus, existindo nela a imagem trinitária em suas potências: a memória, a inteligência e a vontade (FRAILE, 1986, p. 199-200).

Com relação ao conhecimento, o autor faz concessão ao aristotelismo. Entende que nem todo conhecimento deriva dos sentidos, que a alma conhece Deus, conhece a si própria e tudo que possui sem a ajuda dos sentidos externos. Porém, admite que a alma não possa por si mesma ter todo conhecimento. O material deve vir do exterior através dos sentidos pelas semelhanças abstraídas das imagens. No entanto, o conhecimento na sua estrutura, está condicionado por princípios que não dependem dos sentidos, sendo inatos e infundidos por Deus. Trata-se do retorno ao agostinismo. A alma possui uma luz que lhe dá a certeza do conhecimento. Esta luz vem diretamente de Deus (ABBAGNANO, 1984, p. 219-220).

Em metafísica, no que tange aos transcendentais, Boaventura é um dos primeiros que estabelecem as propriedades transcendentais do ser: o uno, o verdadeiro, o bom e o belo. O uno diz respeito à causa eficiente, o verdadeiro à causa exemplar, significando a identidade entre a causa real e a norma ideal, o bom se refere à causa final e, por fim, o belo inclui todas as causas e sintetiza todos os demais atributos (FRAILE, 1986, p. 184).

A metafísica possui três princípios que são opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma matéria geral sem as formas específicas, a pluralidade das formas num mesmo ser, quantas forem suas propriedades essenciais e a universalidade da matéria fora de Deus (PADOVANI-CASTAGNOLA, 1972, p. 232).