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Capítulo III As imigrantes muçulmanas em São Paulo

III.3 O processo de aculturação:aspectos gerais

III.3.4 Religião e religiosidade no novo espaço social

III.3.4.1 O véu em São Paulo: um lugar possível

Vimos no capítulo II, que nos trabalhos onde a questão da mulher é discutida, o uso do véu aparece como um ponto central e revela que, o significado que o véu assume, tem várias implicações: sociais, políticas e religiosas. Percebemos através dos vários relatos que o véu torna-se um importante elemento no confronto intercultural, uma vez que a maioria das entrevistadas faz referência a ele.

O véu, segundo adeptos do Islã, é uma forma de proteção, assim como a vestimenta islâmica, que resguarda as mulheres de olhares com conotação sexual. Além disso, é uma lembrança que a mulher deve ser valorizada por seus atributos intelectuais, e não por sua forma física. O véu é uma fronteira simbólica entre o que deve e o que não deve ser visto 164. No relato de Noemi, temos as prescrições para o uso da vestimenta:

a mulher muçulmana pode usar qualquer roupa, com quatro condições. A primeira tem que ser uma roupa non (sic) transparente. Não pode ser uma roupa elástica no corpo (Apertada no corpo). Terceira condição, não pode ser uma roupa que chame atenção, uma roupa que de longe a pessoa olhe e fale, avista chegando. E quarto não pode ser uma roupa que cause estranheza, tipo índio, tipo de roupa que simboliza, tipo nazista, ou...o mais importante é que a roupa não mostre. Cria o que Allah deu para mulher...cria a mulher diferente do homem, ela tem mais coisas que atira, então o que e importante no hijab e que ele esconde essas coisas, então qualquer roupa pode ser, calça blusa, seguindo essas coisas.(Noemi.)

A pesquisa de Espínola, referente ao uso do véu no contexto brasileiro, assemelha-se ao que foi discutido no caso das muçulmanas na Europa. Envolve três aspectos principais: religioso, contextual (como forma de reafirmar sua etnicidade frente ao exterior) e social (o impacto diante da família e da comunidade local). Seu uso torna-se uma combinação destes três fatores.

164 Cf. ESPINOLA, op.cit., p. 205.

O mesmo véu que cobre, também descobre signo e símbolo de uma religião, de um conjunto de representações que se descobriu em terras tropicais, assumindo um compromisso que transcende o espaço das escolhas individuais e sintetiza anseios e desejos de um grupo de imigrantes que experimenta inúmeras possibilidades ao ocupar um lugar privilegiado e demonstrar a capacidade de estar entre dois ou mais mundos e aprender o que eles têm de melhor.165

Na afirmação de Espínola, vê-se que o véu também representa os anseios de muçulmanos enquanto grupo, o qual vive, no Brasil, a possibilidade de ocupar um lugar privilegiado.

O véu como um reconhecimento da diferença, e um posicionamento frente às mulheres brasileiras, foi um fenômeno observado nas pesquisas que fazem referência às mulheres muçulmanas no Brasil. Segundo Ferreira, é estabelecida a demarcação de uma fronteira simbólica que é temporal, espacial, sexual e étnica. 166

Reconhecemos uma muçulmana mais facilmente por causa do véu. Então o véu revela o fato de ser uma mulher religiosa ao mesmo tempo em que é uma proteção; como afirmam os muçulmanos, ele também se torna um elemento fundamental para o reconhecimento da diferença. 167

Como vimos no capítulo anterior, em países europeus, essa marca da identidade religiosa vem causando muita polêmica, enquanto que no Brasil, não tem havido muita discussão. Um exemplo disto é que no Brasil existe a permissão de tirar a foto do documento de identidade usando o véu168.

No que concerne ao aspecto individual alguns incômodos são expressos. O hijab aparece como dificuldade explicitamente apenas na fala de duas entrevistadas. Iara imigrou inicialmente para o Rio Grande do sul, onde encontrou maiores dificuldades no uso, provavelmente justificado pelo fato que esta cidade possui uma população mais homogênea, não sendo freqüentes estrangeiros.

Sabe, a cidade lá no rio Grande (do Sul) é muito diferente daqui. Lá não tem muitos árabes como aqui, a maioria era palestinos; só que os palestinos lá, não aparecem muito, eles tipo...como vou falar para você, eles entraram muito com os brasileiros, então não fazia comunidade, só. Então quando fui morar lá era

165 Cf. ESPINOLA, op.cit., p. 205.

166 Cf. FERREIRA, A imagem oculta., p. 206. 167

muito difícil porque uso lenço, né., e quando fui lá era muito estranho para os brasileiros.(Iara)

Noemi experimenta uma sensação de estranheza diante do olhar de outras pessoas.

Os seis primeiros meses foram muito difíceis. -Por que?- Primeiro por causas dos costumes daqui. Eu sou uma mulher muçulmana que sai com o hijab, a roupa típica do Islã. Aqui não... aqui não... cheguei no meio, todo mundo olhava para mim, parecia uma pessoa vinda da lua.( Noemi.)

Apesar de ser um elemento diferenciador e que causa impacto no confronto intercultural o uso do véu no contexto brasileiro, diferentemente da Europa não é vivido pelas mulheres como um elemento de tensão. Sentem liberdade para adotá-lo e acordo com sua vontade ou necessidade.

No começo é difícil, mas depois normal. Vou com ele em todos os lugares. Se perguntam, eu explico e pronto, entendem (Mirna)

Embora haja reações de estranhamento frente ao véu e às vestimentas como notamos em alguns relatos, o ambiente cultural em São Paulo lhes permite a livre escolha a respeito da adoção ou não do véu. O ambiente é sentido como permissivo, oferecendo-lhes possibilidade de escolha. Mesmo que sejam sentidas reações contrárias, a aproximação é possível, permitindo o diálogo:

Quando se explica, compreendem. Não acha (sic) ruim. (Noemi).

Nas comunidades do Brasil, seu uso é obrigatório apenas durante a participação na mesquita; fora dela é incentivado, e é assumido como ideal a partir de uma profunda compreensão dos preceitos religiosos. A maioria das entrevistadas, assume que o véu confirma a sua religiosidade e deve ser usado por escolha própria, e não por dever ao marido ou à sociedade. Zara afirma:

Eles pensam que somos obrigadas. E não é. A gente coloca quando ta (sic) pronta, quando a gente gosta dele. (Zara)

Na fala de Jamile percebemos que é importante uma compreensão e reflexão acerca de seu uso. Não pode ser adotado por imposição ou por hábito.

Tem gente que usa o véu e nem sabe por quê! Precisa saber o que significa, aí fica mais fácil usar ele em qualquer lugar que você está (sic). (Jamile.).

Rita afirma que o véu diminui a beleza da mulher, por isso é necessária uma profunda compreensão.

Porque o véu não é brincadeira, você coloca; porque não é uma coisa que você pode tirar mais. Tem mulher que combina muito com o véu, mas ele tira muito a beleza da mulher, então tem que pensar no que tá colocando, né. (Rita.)

Um outro aspecto a ser considerado se refere ao contexto coletivo mais amplo, no qual se observa uma reação por parte dos muçulmanos em geral, como apresentamos no capítulo II. Ferreira analisa imagens fotográficas produzidas dos e pelos muçulmanos na comunidade do bairro do Brás/Pari, em São Paulo169. Observa neste grupo uma retomada do uso do véu, seja nas imigrantes seja em suas descendentes170. Peres de Oliveira, a partir de uma abordagem sociológica, afirma:

O uso do véu na atualidade faz parte de um fenômeno chamado “ressurgimento islâmico“ que apareceu a partir dos anos 70 no mundo muçulmano, e do qual o véu tornou-se um símbolo171.

Ferreira propõe, assim como no caso europeu, que posteriormente ao ataque às torres gêmeas, houve uma necessidade ainda maior de se assumir como uma identidade muçulmana que nada tinha a ver com a imagem do Islã que estava aparecendo na mídia.

É possível constatar, particularmente no bairro do Brás, que a vestimenta islâmica vem sendo adotada há mais ou menos 10 anos. Isto é, mulheres muçulmanas descendentes de libaneses, têm procurado conhecer melhor a religião que faz parte das tradições de seu grupo cultural. 172

No tópico a seguir veremos as mudanças adotadas por nossas entrevistadas, inclusive quanto ao uso do véu.

169 Cf. FERREIRA, op.cit, p. 207.

170. O mesmo fenômeno foi observado por Espínola na comunidade de Florianópolis. Cf. ESPÍNOLA.,op.

cit., p.204.

171 Cf. PERES de OLIVEIRA, O Islã no Brasil ou o Islã do Brasil, p.105. 172 Cf. FERREIRA, F.C op. cit.., p.81 e 82.