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Para compreender o fenômeno da toxicomania, o aumento abrupto do consumo de drogas dos últimos tempos e a vigente segregação social dos toxicômanos, também é necessário analisar as modificações sociais ocorridas no contexto atual e a expansão dessas modificações à constituição psíquica dos sujeitos.

Considerando a toxicomania um sintoma, como discutido no item anterior, não é possível desvinculá-lo do meio social. Sendo reconhecida como uma transgressão social, a origem da toxicomania está atrelada ao campo simbólico, suas normas, regras do convívio social, política, economia etc.. Diversos autores consideram a toxicomania um novo sintoma, porque não apresenta a formação de compromisso, característica dos clássicos sintomas, como por exemplo, a histeria (Marconi, 2009; Santiago, 2001a; Teixeira, 2006).

Bauman (1925/1998) apresenta diversas modificações ocorridas na sociedade, e denomina a sociedade atual como sociedade pós-moderna. Anterior a este momento, no período moderno, a sociedade era baseada em regras, padrões e classificações específicas. Havia também a luta contra a ambivalência, relações hierarquizadas com pouca mobilidade e a instituição familiar, patriarcal e conservadora. Nesse contexto, eram excluídos aqueles que não se adequassem a essas regras. Na pós-modernidade, o consumismo, as redes de comunicação, a flexibilidade e a instantaneidade das relações sociais tomaram conta do cenário. Os que não se desvencilhassem das normas modernas, seriam agora descartados. Na sociedade “em que tudo posso”, que imperam demandas capitalistas de “completude” materialista, torna-se necessário provocar uma ruptura com a identidade pré-estabelecida para se adaptar ao consumismo desenfreado, que a cada momento apresenta um modo de ser, de vestir e de estar no mundo (Bauman, 1925/1998).

Diante dessas modificações estendidas à política, economia, relações sociais e às novas formas de poder e subjetivação, Maia (2001; 2003) propõe uma análise da constituição psíquica e de suas transformações. O estudo auxilia no entendimento das novas formas de subjetivação e das psicopatologias que se alastraram na contemporaneidade, entre elas, a drogadicção.

Com as transformações apresentadas por Bauman, verificamos a instantaneidade das relações alteritárias, o consumismo desenfreado e a fragilidade das relações humanas. Esses aspectos se estenderam às relações fundantes da constituição psíquica humana, do outro mediador, responsável por apresentar ao sujeito em constituição os significados simbólicos construídos socialmente, e do terceiro interditor, indispensável para interromper o momento de completude ilusória, denominado ego-ideal, e propulsionar o sujeito ao ideal de ego, momento em que busca substitutos desta completude na cadeia simbólica (Maia, 2003). Portanto, com as transformações da pós-modernidade pode ocorrer uma falha na apresentação do mundo simbólico ao sujeito e na interdição da completude ilusória, acarretando uma fragilidade na busca por seus substitutos.

Como conseqüência dessa falha simbólica, as psicopatologias contemporâneas se manifestam no corpo e na ação, algo observado no aumento de pacientes com compulsões, bulimia, depressão, anorexia, síndrome do pânico (Birman, 2003), e adicção. Nesse contexto, o sonho, a poética e a fantasia são escassos.

Romera e Próchno (2007), ao analisarem um caso clínico pelo olhar psicanalítico, demonstraram as características pós-modernas do jovem atendido, que habitava um corpo destituído de sua dimensão histórica, com marcas identificatórias variadas e com um vazio existencial. Nesse sentido, narraram sobre o modo de ser contemporâneo:

O pensar sem propósito pragmático é abolido, a livre associação de idéias ou as idéias suspensas em busca de novas e criativas formas de articulação são exiladas do

pensamento funcionalista onde tudo já está ou deve estar pronto. A imediatez ganha espaço privilegiado e segue a nova ordem da temporalidade momentânea do “tudo deve ser para ontem!” (Romera & Próchno, 2007, p.198).

Para Maia (2003), os sujeitos contemporâneos recebem diversas imagens e modelos midiáticos, através dos quais, sem a mediação do pensamento, se adaptam às identidades propostas e se alienam nessas imagens. O pensamento também é burlado pela instantaneidade e consumismo desenfreado, necessários para a manutenção do capitalismo contemporâneo. Essas intempériesimpossibilitam o sujeito de pensar em seus próprios desejos e necessidades, recebendo e reagindo a tudo passivamente.

Os autores caracterizam a sociedade atual como uma sociedade do espetáculo e narcisista (Maia, 2003; Romera & Próchno, 2007). O narcisismo que a caracteriza é apresentado como um narcisismo de superfície, não podendo ser comparado com o narcisismo primário, imprescindível para a integração do próprio corpo e para a passagem do ego-ideal para o ideal-de-ego (Maia, 2003). A imagem de Narciso, apaixonado por si próprio, e com uma excessiva independência, camufla a dependência que está na essência humana: “nós não somos completos” (Romera & Próchno, 2007, p.199).

Nas novas patologias há uma perturbação na passagem do ego-ideal para o ideal-de-ego. O sujeito permanece no momento da completude ilusória, não abrindo espaço para o Outro. Como conseqüência dessa perturbação há uma ênfase no individualismo e na superficialidade das relações, a linguagem poética e narrativa se atrofiam, tornando evidente a linguagem informacional. Além disso, o discurso endereçado ao outro se empobrece na língua falada e se expande no corpo e na ação (Birman, 2003; Maia, 2003).

Para Romera e Próchno (2007), “estamos no mundo da ação total (ou global) e da pobreza ou do empobrecimento do pensamento, da ausência da substancialidade!” (p.200).

Nesse contexto das transformações pós-modernas e novas formas de subjetivação, se encontra a adicção.

No novo modo de viver, impera a lógica da adicção, conceito formulado por Maia (2003). Os sujeitos são constituídos por essa lógica para que permaneçam em constante estado de insatisfação e assim acompanham o consumismo descomedido e o ritmo acelerado da produtividade. Exige o prazer a todo custo e descarta, de imediato, tudo o que causa desprazer.

É possível uma aproximação da lógica adicta com as características psíquicas do sujeito toxicômano. Os toxicômanos, através da droga buscam o prazer a qualquer preço e se distanciam de qualquer ameaça que lhes cause desprazer. Acompanhando o individualismo e a superficialidade das relações, permanecem presos ao ego-ideal e ficam impedidos de abrir espaço para outros substitutos da cadeia significante (Maia, 2003). 

A compulsão repetitiva do toxicômano, observada na busca constante à droga e na dificuldade em obter espaços alteritários para romper com essa lógica, demonstra a perturbação do adicto no campo da ação. Como apresentado por Santos e Costa-Rosa (2007), na presença do objeto-droga:

o toxicômano se defronta com sua incapacidade de pensar, reagindo com uma ação compulsiva, correspondente de uma tensão que parece ser vivenciada como impossível de baixar por outros meios. Parecendo ser comandado pelo objeto, o indivíduo fracassa, sobretudo, quanto à capacidade de utilizar a linguagem e o pensamento como meios de ponderação e de dar significação ao impulso desencadeado (p.489).

Marconi (2009) constata ser o ato compulsivo uma tentativa de adquirir um prazer irrestrito. A autora também compreende que este sintoma tem como alvo principal o corpo.

Nesse sentido, a psicanálise pode contribuir em “escutar o sujeito que está por trás do corpo fragmentado, mutilado” (p.15).

A perturbação no campo somático do drogadicto também se manifesta pelo descuido e escarificações feitas no próprio corpo. Silveira analisa que:

a nível corporal, diversos pacientes realizam verdadeiros rituais de escarificação, deixando marcas no próprio corpo, ou compartilham sangue da mesma seringa mesmo quando não há mais droga a ser injetada. Estas marcas assinaladas na própria pele, assim como o sangue, constituem testemunhos de uma identidade corporal, simbolicamente reassegurando e apaziguando dissociadamente o individuo do medo do não-ser, da ameaça da não-identidade, da marginalização e da solidão absolutas (1995, p. 35).

Segundo Maia (2003), esses sujeitos provocam em si mesmos, em seus próprios corpos, marcas que representam e falam de suas constituições. Devido à lógica pós-moderna, a superficialidade das relações, a alienação em uma imagem irreal transmitida pelos meios de comunicação, a perturbação na passagem do ego ideal para ideal-de-ego, os sujeitos podem apresentar marcas corpóreas como cuidadoras. A autora, ao analisar os relatos clínicos de seus pacientes, verifica serem as práticas corporais, como a tatuagem, meios de proporcionar sentimentos de autoproteção, de autoconfiança, de apropriação de uma identidade, de presença de um corpo que parecia não existir.

as práticas corporais apresentam-se como uma tentativa de restituição narcísica que remete a um processo defensivo: ocorre um apelo ao auto-erotismo, no qual, através de investimentos pulsionais parciais, localizados em determinadas zonas erógenas, os sujeitos tentariam recompor e sanar as feridas expostas de seus narcisismos. Recurso defensivo que busca a atualização de um processo anterior ao narcisismo, anterior mesmo à imagem unificada do corpo (Maia, 2003, p.68).

Com as descrições feitas por Bauman (1925/1998), compreende-se que na sociedade pós- moderna, de uma forma ou de outra, não há aquele que fuja dos parâmetros ditados. Apesar de ainda conviverem juntas características modernas e pós-modernas, prevalecem o consumismo, a flexibilidade, a rapidez, a internet, a superficialidade, entre outras. Como conseqüência desse modelo, tem-se atos em que o pensamento é burlado, não há mediação simbólica e não se fantasia sobre os seus próprios desejos. Na lógica adicta, no lugar da interdição moderna, provocada pelo terceiro, reina o gozo absoluto, exige-se o prazer imediato e a todo custo. Na pós-modernidade também há um declínio do referencial familiar, religioso, estatal, autoritário e patriarcal, responsáveis pela instituição de uma ordem simbólica e a interdição ao gozo absoluto ou à completude ilusória. No modo de viver contemporâneo e na adicção há uma falência paterna, reconhecida pela falha da imposição de poder hierárquica e vertical. Dessa forma, com as transformações e as peculiaridades da sociedade atual, em que “tudo posso”, há uma falha na castração simbólica e na inserção do sujeito na ordem social, no gozo fálico. Para Santiago (2001a) “o sucesso da droga na modernidade não poderia ser concebido fora do contexto de declínio crescente da imagem do pai” (p.174), por ser o toxicômano um exemplo de repúdio à interdição simbólica e à condição desejante, própria do humano.

Acompanhando a lógica descrita, no sintoma toxicomaníaco há um vazio desejante. Há pouco espaço para o simbólico, provocado por um curta-circuito da linguagem. O sujeito fica à deriva e, ao sair de cena, coloca em seu lugar o vazio do ato compulsivo dos rituais do uso da droga (Marconi, 2009; Santiago, 2001a; Santos & Costa-Rosa, 2007). Apesar da semelhança das características do sujeito toxicomaníaco com a perversão, todos os autores estudados relatam que a toxicomania não apresenta uma estrutura psíquica fixa, podendo estar presente em neuróticos, perversos ou psicóticos (Gurfinkel, 1995; Marconi, 2009; Santiago, 2001a; Santos & Costa-Rosa, 2007).

Paradoxalmente, a toxicomania enraizada na lógica da adicção do capitalismo contemporâneo, onde os objetos são descartáveis, usados e trocados e o consumo é desenfreado, ela representa uma resistência à lógica social homogeneizante. Na toxicomania o sujeito e seus desejos são anulados, tornando o toxicômano infiel às restrições fálicas, próprias do ser simbólico (Marconi, 2009; Santiago, 2001a; Santos & Costa-Rosa, 2007). Então, “[...] o que nos surpreende é que, apesar de todos os pesares!?, de todos os pesos, de todas as injunções, o corpo fal(h)a!” (Romera & Próchno, 2007, p.200).

Em nossa sociedade observa-se adicções diversas: compras desenfreadas, excesso ou carência de alimentos (anorexia), compulsão à internet, à televisão, aos exercícios físicos, etc. Assim, vivemos em uma sociedade adicta (Herrmann, 2003).

Nesse contexto, outra contradição é reconhecida por Vargas (2001), a repressão às drogas ilícitas acompanha a crescente incitação ao consumo de drogas lícitas, como remédios, energéticos, anabolizantes, etc..

Paradoxalmente, a mesma sociedade adicta, marginaliza e segrega os drogadictos.

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