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1. O IMAGINÁRIO DE AFRO-AMERICANIDADE NAS SITCOMS TELEVISIVAS

1.4 A série Everybody hates Chris

Produzida entre 2005 e 2009 pelos canais de televisão WB e UPN, Everybody hates Chris é uma série cômica autobiográfica narrada por seu personagem principal, o comediante afro-americano Chris Rock. Encontrando-se na fase adulta, Chris rememora suas experiências enquanto adolescente a partir do ano de 1982, quando completava 13 anos de idade.

O protagonista é o filho mais velho e reside com seus pais e dois irmãos em um conjunto habitacional do bairro negro de Bed-Stuy, no Brooklin. Embora retrate uma família convencional, a série se vale da sátira acentuada dos defeitos e vícios de cada personagem, expondo, assim, a disfuncionalidade familiar. A mãe de Chris, Rochelle, é uma mulher autoritária e altiva, que não consegue se fixar a um trabalho. Cabe a ela a administração dos gastos da família, uma vez que seu marido precisa conciliar o fato de ter dois empregos; Julius, o pai, é um homem forte e robusto, cuja autoridade perante a esposa é ínfima, já que esta última agressivamente o persuade a partilhar seu ponto de vista; Tonya, a irmã mais nova de Chris, é uma garota de 9 anos que sempre procura colocar os irmãos em situações desagradáveis; Drew, o irmão do meio, pode ser entendido como a antítese de Chris, pois sempre é bem- sucedido em suas empreitadas e consegue a atenção das meninas do bairro; Chris, o personagem central, é um garoto magro e fraco que se responsabiliza pelos irmãos na ausência dos pais. Embora o protagonista esteja constantemente em

busca de realização pessoal, seja em assuntos escolares ou amorosos, nunca concretiza seus objetivos, já que ao final de cada episódio, acaba sendo malsucedido de alguma forma.

Outros personagens que apresentam papéis secundários, mas essenciais para a narrativa, são Greg (o melhor amigo de Chris), Caruso (o oponente do protagonista) e a professora Morello. Greg é um dos alunos da escola que sofre bullying pelo fato de ser muito inteligente e dedicado aos estudos. Mais especificamente, o personagem é rotulado pelos demais alunos como nerd. Caruso é um garoto branco forte e racista que confronta Chris física e verbalmente todas as vezes que o encontra. A professora Morello leciona no Colégio Corleone e, na última temporada, trabalha como diretora da escola Tattaglia. A comicidade do papel dessa personagem reside nas tentativas desta última de se mostrar contra o preconceito racial, embora, na realidade, assevere-se uma atitude racista nas entrelinhas de suas falas.

Particularmente nas três primeiras temporadas, visando proporcionar uma boa educação para o filho, a mãe de Chris, Rochelle, o obriga a frequentar o Colégio Corleone, uma escola de tradição italiana, onde o personagem figura como o único aluno negro. Por essa razão, no cenário escolar, o protagonista lida com a discriminação de professores e colegas de classe, que constantemente se valem de um racismo abusivo contra ele. Apenas na quarta e última temporada, quando avança para o Ensino Médio, o protagonista passa a estudar no Colégio Tattaglia, onde tem a oportunidade de conviver com outros alunos negros. Entretanto, conforme veremos, a mudança de ambiente não permite que Chris desfrute de uma convivência harmônica com os demais alunos da escola.

Por esse panorama, sob o olhar irônico e satírico do narrador, a sitcom se sustenta basicamente em dois eixos: simultaneamente, retrata as dificuldades financeiras que a família de Chris enfrenta para lidar com os problemas cotidianos e mostra como o protagonista administra as afrontas racistas as quais se submete na escola onde estuda.

Diferentemente das demais sitcoms com elencos negros, Everybody hates Chris explora a relação desarmônica entre negros e brancos na sociedade americana. Com base na sátira da exclusão social do personagem principal, a série problematiza a questão do racismo nos Estados Unidos e assevera um posicionamento crítico, ausente nas demais produções seriais. Concretiza-se uma

quebra dos paradigmas da família branca idealizada, conforme difundido nas sitcoms domésticas. A tabela a seguir busca ilustrar comparativamente como essa mudança de perspectiva se faz presente em Everybody hates Chris.

Tabela 1

Os dados expostos na tabela evidenciam a forma como os elementos narrativos de Everybody hates Chris se coadunam para advogar uma visão irônica acerca da participação do negro na sociedade americana.

BLACK SITCOMS EVERYBODY HATES CHRIS

Os personagens principais moram em bairros suburbanos de classe-média alta e maioria branca.

Os personagens principais moram em um bairro negro localizado no centro de Nova Iorque.

O pai assume o papel de administrador dos

gastos familiares. A mãe é responsável por administrar os gastos familiares.

Os filhos não trabalham. O filho mais velho trabalha.

Os filhos estudam em escolas privadas. Os filhos estudam em escolas públicas. Há uma alta renda familiar, de modo que o pai

tenha um emprego bem remunerado e em um cargo de grande autoridade.

Há uma baixa renda familiar, de modo que o pai tenha dois empregos para que possa corresponder aos orçamentos familiares.

O pai incentiva o consumismo exacerbado e a

compra de artigos de luxo. O pai dissuade a família de consumir exacerbadamente e sempre busca economizar.

Os pais frequentaram as melhores

universidades. Os pais não possuem nível escolar superior.

Não há referência alguma à segregação racial. A segregação racial é tema constante em todos os episódios.

Não há demonstrações de racismo em relação

aos personagens. Os personagens sofrem um racismo abusivo.

Não há espaço para a sátira da exclusão

Nas Black Sitcoms, de forma geral, se verifica a assimilação dos discursos hegemônicos que instituem o paradigma das famílias brancas tradicionais. Subjaz a essa prática um tom politicamente correto que homogeniza a diferença e se pauta sobre regimes de verdade que alocam o negro em uma posição periférica em relação ao branco. Everybody hates Chris, por sua vez, não negligencia as adversidades enfrentadas pelo cidadão negro na busca pelo sonho americano. Ao contrário, a série constroi uma visão questionadora dos princípios que regem a possibilidade de ascensão do negro em uma sociedade não-idealizada.

Para tanto, a presença de um narrador negro é extremamente importante na apreensão dos sentidos que embasam o imaginário de negro americano. Contextualizado no momento atual, o narrador ao mesmo tempo desconstroi e legitima percepções sobre ‘americanidade’ e ‘afro-americanidade’. Criam-se, portanto, situações risíveis no choque entre narrativas conflitantes que tanto sustentam como subvertem estereótipos de brancos e negros americanos.

Ao se reportar à juventude, Chris Rock interpreta suas experiências vivenciadas e lhes atribui sentidos por meio da narrativa. Consequentemente, o lugar discursivo que esse narrador ocupa é de grande importância na análise dos sentidos atribuídos à negritude e americanidade na série.

Por vezes, o narrador rememora acontecimentos históricos significativos antigos e atuais e os associa ironicamente àquilo que vivenciara na adolescência. Esses eventos são incorporados na forma de comentários e imagens e ora fazem menção ao processo de dessegregação racial, ora se referem a elementos banais do cotidiano dos americanos. Assim, no primeiro caso, o narrador alude, por exemplo, às manifestações do Black Power e dos Panteras Negras, ao discurso de Martin Luther King Junior, às greves e linchamentos. No segundo caso, relembra rumores sobre celebridades americanas, cenas de filmes, músicas etc.

A justaposição entre os acontecimentos passados e recentes na história dos Estados Unidos assume um papel fundamental na narrativa porque ao contar a história, o narrador, já na profissão de comediante, encontra-se inserido em um cenário peculiar que também mobiliza sentidos para o enredo.

No período entre 2005 e 2009, quando a série era produzida, os Estados Unidos vivenciavam o segundo mandato presidencial de George Bush e a subsequente presidência de Barack Obama (2008), o primeiro presidente americano afro-descendente. No ano de 2005, o furacão Katrina acarretou a destruição

massiva de cidades do sul do país, onde se concentrava uma população de maioria negra. Tal fato incitou controvérsias acerca da questão racial perante à lentidão da ajuda governamental às famílias afetadas. Os americanos enfrentavam, também, as consequências de uma recessão econômica entre os anos de 2007 e 2009, expressas na redução dos empregos e da renda familiar. Em suma, trata-se de um período instável para a nação americana.

Dentro desse contexto, o comediante Chris Rock assume um papel providencial na narrativa da série porque “amarra” os fatos de forma a integrar as diferentes temporalidades e conferir sentidos à identidade do adolescente, Chris, e de si próprio. Partindo da visão de Bruner (2004), podemos considerar que o ato de narrar constroi a realidade do personagem. Conforme o autor, o ato de narrar uma experiência pessoal não significa apenas descrever os acontecimentos vivenciados, mas desempenhar um exercício cognitivo de autoconhecimento10 (idem: 692).

Isto é, a narrativa não se desenvolve como forma de retratar uma realidade, como se o real fosse apreensível. Ao contrário, a própria narrativa é uma forma de compor o que se entende por realidade. Por esse viés, como veremos adiante, o lugar discursivo do narrador corrobora percepções acerca de negritude que acabam por sugerir uma visão crítica e atípica de afro-americanismo no meio televisivo.

Com base nessas considerações preliminares, prosseguiremos, no próximo capítulo, com uma análise discursiva de três episódios de Everybody hates Chris, precedida de uma contextualização acerca da problemática a ser desenvolvida.

10 Tradução nossa adaptada para o trecho: “When somebody tells you his life (...) it is always a

cognitive achievement rather than a through-the-clear-crystal recital of something univocally given” (BRUNER, 2004:692).

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