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Síntese do caso: Por uma sobrevivência

5.2 Sofia e Ariel

5.2.1 Síntese do caso: Por uma sobrevivência

O trabalho com Sofia e Ariel em muitos momentos se assemelhou a uma clínica do trauma em termos ferenczianos e também winnicotianos. No que se refere ao primeiro autor, este dialoga bastante com os pressupostos winnicotianos aludidos anteriormente ao afirmar que: “o ‘choque’ é equivalente à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do Si mesmo (Ferenczi, 1992/1934, p. 109).

Além disso, Ferenczi (1992/1934) faz uma revisão da “Interpretação dos Sonhos” de Freud, ampliando o olhar psicanalítico a partir de tais pressupostos. E com isso o autor traz novas contribuições à clínica na perspectiva do traumático. Ele explora e amplia duas noções freudianas importantes relacionadas ao trauma: a figurabilidade e a repetição. A primeira, está relacionada às imagens criadas a partir de um trabalho psíquico em torno de algo que ainda não possuía formas. Sendo assim, a figuração trata-se de um primeiro trabalho psíquico no intuito de transformar o trauma em imagem e ao mesmo tempo iniciar um movimento de sua elaboração.

Tenho a impressão de que quando Sofia me contava que costumava “inventar histórias” de Ariel para suas outras filhas (e para si mesma), ela parecia estar realizando esse trabalho de figuração. Neste ínterim, lembro de ela ter me contado, justamente, uma das

histórias que envolviam algo da morte e perda recente de seu pai e também das experiências ainda inomináveis que viveu e estava vivendo quando estava no hospital. Em tal história, o Ariel “fugia do hospital assim pelado”. Talvez aqui nesta imagem ela estivesse fazendo aparecer um pouco de sua raiva do pai, o qual “fugiu” do hospital, desistindo do tratamento para ir de encontro com a morte. Ademais, também parecia estar tentando elaborar (e comunicar) junto com isso, a sua própria vontade de ter fugido da UTI adulto (quando lá esteve) e da UTIN com Ariel assim pelado, descaracterizado e tão difícil de ser reconhecido como seu.

Jô Gondar (2016) ao refletir sobre o trauma em Ferenczi e sobre o aspecto da repetição, afirma que, para o autor, a compulsão à repetição não é vista como negativa. Pelo contrário, ela é algo que possibilita o advento de uma criatividade e curabilidade no que se refere ao trauma. Sendo assim, em cada flashback há um enfraquecimento e desgaste dos “choques”. E com isso, penso na reinternação de Ariel no hospital, a qual parece ter sido (re)vivida por ela deste modo. Quando me disse que “fez a mala e foi ao hospital decidida a reinternar com o bebê”, acredito que estava fazendo este movimento de um flashback. E talvez tenha sido o único modo possível de dar um “start” como ela mesma se referiu à segunda internação. Afinal, ela estava às voltas de questões traumáticas tão impensáveis que este foi um meio possível de esmaecer um pouco da crueldade e concretude do trauma. Ou, dito de outro modo, nas palavras de Jô Gondar quando alude ao trabalho de Ferenczi em relação ao sonho:

A repetição no sonho deixa de ser uma reprodução cega, porque nesse caso as cenas traumáticas são produzidas pelo próprio sujeito, implicando uma mudança da passividade para a atividade. É como se através dos sonhos o sujeito produzisse ativamente o trauma, com o intuito de dominá-lo e liquidá-lo. Trata-se de uma atitude paradoxal que acontece não apenas na atividade onírica, mas também nos comportamentos autodestrutivos que podem sobrevir àqueles que vivenciaram traumas: o sujeito aplica em si mesmo o próprio veneno que procura evitar. (Gondar, 2016, p. 17)

Em retrospectiva à história de Sofia com Ariel cabe mencionar que sua gestação já tinha sido bastante complicada em termos de aceitação, algo que ocorreu antes da prematuridade do bebê. Além do fato de que ela não estava planejando engravidar novamente, ela também planejara “não mais engravidar”. E com isso tinha outros planos de vida, tendo inclusive se desfeito das coisas que já tinha em casa para um futuro bebê. Além disso, ela também se referia à descoberta da gravidez como para além de um mero “susto” de quem não estava planejando. Ela descreve este momento como de “depressão” em sua vida. É

importante considerar o fato de que é bastante comum, em circunstâncias naturais, uma mãe ter dificuldade de aceitar um novo bebê e de sentir-se mãe logo que ele nasce. No entanto, no caso de Sofia temos esta questão junto com outras complicações. Estas passam por suas dificuldades mais intensas na gestação, o parto imensamente traumático em que ela quase fora a óbito e a internação de seu bebê prematuro na UTIN.

Neste ínterim, trago o que Mathelin (1999) traz sobre o trabalho do psicanalista em neonatologia. Ela diz que, neste contexto, o trabalho da psicanálise envolve realizar um trabalho conjunto que não considere apenas salvar a vida do bebê. Trata-se de um trabalho que envolva também “salvar o seu desejo de viver e a capacidade de amar de seus pais” (Mathelin, 1999, p. 22). A autora também discorre sobre um caso que inaugurou seu trabalho no âmbito de neonatologia. Trata-se de uma mãe que não quis levar o filho embora diante da alta hospitalar. Em tal circunstância a psicanalista fora chamada pela equipe, em função de desconfiarem que esta mãe estava louca. Entretanto, ela apenas se via impossibilitada de assumir o seu filho. Deste modo, o trabalho com aquela díade estava incompleto. O bebê estava salvo fisicamente. E a parte psíquica? Como ficava no meio de tudo isso?

Parece que questões semelhantes puderam ser observadas na relação de Sofia com Ariel em dois momentos distintos. Um foi o seu estranhamento e medo quando o bebê foi transferido de sala. Ela falava de um medo de que ele tivesse morrido. Mas me parece que também tinha certo medo de que ele tivesse sobrevivido e que agora o trabalho fosse com ela. Isso, me parece, era algo que lhe dava, paradoxalmente, tristeza e alegria. E talvez por isso sentira tanto incômodo pelas “risadas” da equipe de técnicas em enfermagem diante de seu sofrimento. Também foi este o modo como Sofia vivenciou a alta de seu bebê. Ao receber a notícia da alta sentiu-se paralisada, porém nesta circunstância a médica pôde reconhecer (no sentido ferencziano) o seu trauma e deu alta ao bebê em outro dia.

Outro aspecto importante a ser destacado da vivência desta díade é o fato de que Sofia também estava se recuperando de uma vivência de internação em UTI. E de uma experiência de quase morte, segundo ela. Deste modo, parecia que desejava se afastar um pouco desta realidade para seguir vivendo. E o Ariel a aproximava destas coisas, o que pode ter complexificado ainda mais o seu envolvimento com ele nos primeiros dias. E deste modo, esta dificuldade se estendeu para além da questão que por si só já seria tão difícil de administrar: Reconhecer-se enquanto mãe de um bebê tão frágil, com a pele fina e magrinho como ela o descrevera nos primeiros dias. Isto também vai ao encontro do que Mathelin (1999) afirma ao dizer que “os bebês se constroem, em parte, graças à possibilidade de devaneio das mães” (Mathelin, 1999, p. 23).

Posto isso, reflito sobre a dificuldade de Sofia viver este devaneio, em muitos momentos, com Ariel. E deste modo, penso que a capacidade de criar o mundo pela parte dele foi atravessada por esta dificuldade materna. Estou me referindo aqui ao que Winnicott descreve sobre a criatividade no bebê:

A criatividade é, portanto, a manutenção através da vida de algo que pertence à experiência infantil: a capacidade de criar o mundo. Para o bebê, isso não é difícil; se a mãe for capaz de se adaptar às necessidades do bebê, ele não vai perceber o fato de que o mundo estava lá antes que ele tivesse sido concebido ou concebesse o mundo. O princípio da realidade é o fato da existência do mundo, independentemente de o bebê tê-lo criado ou não. (Winnicott, 1970/1986, p. 32)

Winnicott (1970/1986) segue esta discussão com uma máxima: Ser antes de Fazer. E afirma que somente após o bebê tornar-se um existente estabelecido é que poderá procurar e encontrar um objeto como um ato criativo: “E então, finalmente, a criança domina até mesmo os instintos, sem perda de identidade do self” (Winnicott, 1970/1986, p. 33).

A partir disso, me coloco a pensar acerca da possibilidade de alguns momentos de UTIN terem sido vividos no sentido winnicottiano de uma agonia impensável (Winnicott, 1969/1994) tanto para a mãe quanto para o bebê. Faço uma alusão a isto ao relembrar que quando ela tenta descrever o que viveu no hospital como um “pause” talvez estivesse se referindo a algo próximo de um colapso. Saliento que às vezes ela se sentia tão perdida que não sabia o que fazer. E em tais momentos, parecia convocar o Ariel a reagir. Talvez fizesse isso porque ela própria estava paralisada. Em tais momentos, buscava aconselhá-lo a ser obediente com a equipe e tentava prepará-lo no sentido de se acostumar a não ter colo em sua ausência. Para isso, às vezes evitava pegá-lo quando chegava na UTIN também. Deste modo, penso que em tais circunstâncias ocorreu uma inversão. Parecia que Sofia queria que o Ariel se adaptasse ao ambiente e não o ambiente a ele. Neste mesmo raciocínio parecia perceber a experiência de ambos na UTIN com uma certa inversão em sua posição materna também. Inicialmente, ela tinha a tendência de pensar que a ameaça para o filho seria a sua presença e não a sua ausência. Além disso, parecia se sentir mais perigosa que os procedimentos dolorosos que Ariel precisava fazer. E a partir de tais pontos, trago o que Winnicott refere sobre a definição de um colapso: “O ego organiza defesas contra o colapso da organização do ego e é esta organização a ameaçada. Mas o ego não pode se organizar contra o fracasso ambiental, na medida em que a dependência é um fato da vida” (Winnicott, 1969/1994, p. 71)

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