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LEITURA CERRADA

2.2 Síntese da Leitura

Da leitura cerrada e atenta desses dois capítulos tomados como amostra exemplar da obra, depreende-se que não é possível classificar o texto exatamente como um action-story, por conta da constante mistura da narração com digressões, pensamentos, considerações, juízos, pensamentos. Essas impressões do autor, no entanto, na maioria das vezes funcionam para ampliar a natureza do relato, e nesse sentido, embora não sejam action-story, por outro lado, se aproximam da noção de reportagem na esfera do Jornalismo Literário.

Cabe perceber que a liberdade de construção da narrativa de Graciliano impõe dificuldades de enquadrá-lo perfeitamente na categoria de livro-reportagem-depoimento. Uma pretensão

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equivocada e que passa longe do objetivo desse trabalho. Afinal, em suma, trata-se de um artista cuja necessidade expressiva irá sempre sobrepujar a tentativa de encerrá-lo sumariamente num sistema de conceitos. Como afirma Bosi (1995), “a verdade de um grande texto começa quando as classificações acabam”.

Uma observação de Lima (2009), sobre o livro Os sertões, de certa forma, encontra ressonância em relação a Memórias do Cárcere:

Não importa muito, do ponto de vista da observação de um processo no tempo histórico, que Os sertões não seja um livro-reportagem no sentido estrito do termo. Importa que tenha exibido algumas importantes possibilidades ao tratamento jornalístico (LIMA, 2009, p. 217).

Mas o fato de Memórias do Cárcere não se encaixar estritamente ao conceito de livro-reportagem-depoimento não quer dizer necessariamente que a obra de Graciliano não tenha parentescos com jornalismo, e com a noção de reportar.

Como ilustração final, vejamos um episódio do capítulo dezesseis, da terceira parte. O escritor, em Recife, embarca no navio Manaus, de onde será enviado para o Rio de Janeiro, em meio a uma multidão de presos, entulhados num porão. Os detalhes, o cuidado com que descreve não apenas o ambiente, mas trata do drama psicológico, evidencia a riqueza desse relato não apenas do ponto de vista histórico, também não apenas no sentido de reportar um fato revelador, mas essencialmente por reverberar um drama humano universal: do homem subjugado pelo próprio homem.

Alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e pacotes, alinhamo-nos, e, entre filas e guardas, invadimos um navio atracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da polpa, mergulhamos numa escadinha. Tinha-me atarantado e era o último da fila.

Ao pisar o primeiro degrau, senti um objeto roçar-me as costas: voltei-me, dei de cara com um negro fornido que me dirigia uma pistola para-bellum. Busquei evitar o contato, desviei-me; o tipo avançou a arma, encostou-me ao peito o cano longo, o dedo no gatilho. Certaencostou-mente não dispararia à toa: a exposição besta de força tinha por fim causar medo, radicalmente não diferia das ameaças

do general. Ridículo e vergonhoso. Um instante duvidei dos meus olhos, julguei-me vítima de alucinação. O ferro tocava-me as costelas, impelia-me, os bugalhos vermelhos do miserável endureciam-se, estúpidos. Em casos semelhantes a surpresa nem nos deixa conhecer o perigo: experimentamos raiva fria e impotente, desejamos fugir à humilhação e nenhuma saída aparece. Temos de morder os beiços e baixar a cabeça, engolir a afronta. (...) Avancei, um bolo na garganta, o coração a estalar, venci a pequena distância que me separava dos companheiros.

Chegamos ao fim da escada, paramos à entrada de um porão, mas durante minutos não compreendi onde me achava. Espaço vago, de limites imprecisos, envolto em sombra leitosa. Lá fora anoitecera; ali duvidaríamos se era dia ou noite. Havia luzes toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca. Detive-me, piscando os olhos, tentado habituar a vista. Erguendo a cabeça, via-me no fundo de um poço, enxergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano inclinado, próximo, onde se aglomeravam polícias e um negro continuava-me a dirigir a pistola. Era como se fôssemos gado e nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. Resvaláramos até ali, não podíamos recuar, obrigavam-nos ao mergulho. Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião de nossos proprietários, necessitando creolina.

Os vaqueiros, armados e fardados, se impacientavam.

(...) Arrisquei alguns passos, maquinalmente, parei meio sufocado por um cheiro acre, forte, desagradável, começando a perceber em redor um indeciso fervilhar.

Antes que isso se precisasse, confuso burburinho anunciou a multidão que ali se achava. Agora já não éramos pequeno rebanho a escorregar num declive:

constituíamos boiada numerosa; à ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral. Certamente a perturbação visual durou um instante, mas ali de pé, sobraçando a valise, a abanar-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor, afastar o cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco, um pensamento me assaltou, fez-me perder a noção do tempo. Que homens eram aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em cima, embaixo, à frente, à retaguarda, à esquerda, à direita?

(...) O homem louro, tranquilo, gordinho, se levantou da rede, acolhedor, fumando cachimbo, disse-nos palavras que não entendi. Impossível fixar atenção em qualquer ponto, a memória se embotava, observações imperfeitas se atabalhoavam desconexas, deixando largos espaços obscuros (RAMOS, 2004, p. 123-125).

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A riqueza dessa cena se dá por quatro motivos principais: 1) pelo episódio em si, que revela um fato, mostra como presos políticos eram tratados no regime Vargas; 2) pela riqueza descritiva do espaço e da ação, marcado por impressões sensoriais cuidadosas, sons cheiros, imagens; 3) pela tensão psicológica, a angústia do homem vítima de um poder totalitário; 4) pelo conflito inerente ao episódio narrativo.

O primeiro ponto, que mostra o tratamento desumano praticado pelo regime Vargas, em que tratavam pessoas como se fossem bichos, pode ser evidenciado em trechos onde as comparações quase se aproximam do zoomorfismo: “Era como se fôssemos gado e nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida”. Ou ainda: “Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião de nossos proprietários necessitando creolina. Os vaqueiros, armados e fardados, se impacientavam”.

E mais adiante: “constituíamos boiada numerosa; à ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral”.

O segundo ponto, a descrição cuidadosa da dimensão sensorial, que pode ser verificada nas seguintes construções: a) tátil: “senti um objeto roçar-me as costas”, ou: “O ferro tocava-me as costelas”; e também: “a abanar-tocava-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor”; b) visualidade: “Lá fora anoitecera;

ali duvidaríamos se era dia ou noite. Havia luzes toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca”, e também: “aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em cima, embaixo, à frente, à retaguarda, à esquerda”; entre outras. C) olfato: “parei meio sufocado por um cheiro acre, forte, desagradável”; e também:

“cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco”; d) audição: “confuso burburinho anunciou a multidão que ali se achava”.

O terceiro ponto trata da dimensão psicológica, da interioridade do narrador-personagem. Já na primeira cena desse episódio, temos uma tensão: “Um instante duvidei dos meus olhos, julguei-me vítima de alucinação”. Ou ainda: “experimentamos raiva fria e impotente, desejamos fugir à humilhação e nenhuma saída aparece. Temos de morder os beiços e baixar a cabeça, engolir a afronta”. E também aqui, perpassando outro ponto que subjaz à obra a tensão entre escrita e da memória: “disse-nos palavras

que não entendi. Impossível fixar atenção em qualquer ponto, a memória se embotava, observações imperfeitas se atabalhoavam desconexas, deixando largos espaços obscuros”.

O quarto e último ponto, no âmbito da narrativa do próprio episódio, mostra uma trama se desenvolvendo, começa do lado de fora, mais solar: “entre filas e guardas, invadimos um navio atracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da polpa, mergulhamos numa escadinha”. Depois passa já por uma cena tensa, onde o soldado negro lhe crava o cano da arma nas costas. No terceiro ponto, a cena vai ganhando tensão, com as alusões ao caráter animalesco, onde “o rebanho” é submetido ao poder dos “vaqueiros”.

Até se estabilizar, com os homens abandonados na escuridão leitosa.

Por outro lado, há uma frase que expressa o caráter dúbio da visão de mundo de Graciliano, marcada por uma relação conflituosa entre um pessimismo corrosivo e uma esperança irracional. Ao mesmo tempo em que via-se “no fundo de um poço”, Graciliano “enxergava estrelas altas”.

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