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Síntese dos planos e relatórios de gestão: o otimismo da vontade e o pessimismo da razão

CAPS i e CAPS I; e 1.500 vagas para o curso Atenção à Crise em Saúde

4.1.5. Síntese dos planos e relatórios de gestão: o otimismo da vontade e o pessimismo da razão

Nesses 15 anos de aprovação da Lei 10.216 identificamos avanços da política pública da saúde mental. Começamos pela ampliação da rede pública de atenção à saúde mental, de base territorial, a partir do financiamento da esfera Federal. Como já afirmamos, as primeiras experiências municipais de construção de serviços de base territorial, no final dos anos de 1980, não contavam com o financiamento da esfera Federal. Na década de 1990, de forma tímida, o governo Federal vai se colocando em cena para financiamento de procedimentos realizados em serviços extra-hospitalares, existentes na esfera municipal e estadual e, a partir da aprovação da lei, se coloca de forma mais expressiva para o financiamento e construção de serviços extra- hospitalares, por meio de portarias, o que possibilitou a ampliação da rede assistencial em saúde mental.

A aprovação da Lei 10.216/2001 possibilitou também a expansão da linha de atuação da saúde mental para atender demandas específicas, como por exemplo, a atenção ao usuário de álcool e outras drogas e à criança e adolescente. Na realidade, a necessidade de atender demandas específicas vinha sendo alvo de reflexão antes da aprovação da lei, mas a aprovação da mesma ganha força. No caso da criança e do adolescente, o tema ganha espaço na pauta da política de saúde mental153. A III CNSM realizada em 2001

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Delgado (2011), afirma que o debate da Reforma Psiquiátrica realizado na década de 1990 não incluiu a atenção em saúde mental das crianças e adolescente, a despeito de toda discussão e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ou seja, não houve articulação entre a política de saúde mental e de criança e adolescente.

192 e a IV realizada em 2010 colocam em pauta a necessidade de: criar mecanismos para responder a violência contra a criança e o adolescente; proteger as crianças em situação de rua sujeitas ao uso de Crack e outras drogas (com ênfase no crack); garantir os direitos humanos dessas crianças; questionar sobre o peso das medidas sócio- educativas (BRASIL, 2010b). Em 2003 surgem as primeiras normativas específicas de CAPSi, materializando a atenção a criança e adolescente como uma nova linha de

atuação. Nesse mesmo ano aprovou-se o Plano Estratégico para Expansão

dos Centros de Atenção Psicossocial para a Infância e Adolescência, prevendo a implantação de 70 unidades até final de 2004, o que garantiu a destinação de recursos fundo a fundo e extrateto para implantação e custeio de CAPSi (BORGES; BAPTISTA, 2008).

Da análise dos planos e relatórios de gestão, vimos que, tal como demonstrado nos números do Saúde Mental em Dados (documento publicado pelo Ministério da Saúde), após 15 anos de aprovação da lei 10.216, houve expansão de serviços extra-hospitalares, que já vinham de experiências bem sucedidas, como Centros de Convivência, CAPS e Serviços Residenciais Terapêuticos e para, além disso, instituíram-se diferentes dispositivos assistenciais, como Unidade de acolhimento, Consultório na Rua, Núcleo de apoio à ESF. Tais dispositivos compõem estratégias de atenção em diferentes níveis de complexidade, o que representa avanço na atenção à saúde mental.

Observa-se que, ainda que de forma ineficiente, houve um esforço para constituição de um programa de formação permanente em saúde mental, contemplando profissionais da área de saúde mental com ensino médio, como o Projeto de ormação “ aminhos do uidado”, voltados para os ACS, à formação superior, como os cursos de Residências em Psiquiatria e Multiprofissionais, voltados para os profissionais de nível superior.

Constata-se ainda a prioridade para construção de CAPS, que se tornou central no conjunto de dispositivos assistenciais, constituindo-se em diversas modalidades, com destaque nos últimos anos para os CAPSad e CAPSi instituídos em resposta a um quadro epidemiológico que vem se agravando nos últimos anos.

193 Houve redução de leitos em hospitais psiquiátricos, em maior proporção nos hospitais públicos e, em menor nos hospitais privados conveniados ao SUS, fato esse que provocou mudança no perfil dos hospitais psiquiátricos. Entretanto, não se conquistou de forma satisfatória a abertura de leitos em hospitais gerais para responder as urgências hospitalares (em atenção à crise) e, muito menos se garantiu a distribuição desses leitos nas regiões de saúde, ocasionando vazios assistenciais que não se limitam à assistência hospitalar, mas se estende aos demais níveis de atenção. Nessa mesma direção não se garantiu satisfatoriamente serviços de urgência e emergência psiquiátrica na rede de atenção à saúde mental.

Outro destaque deve ser dado para a cobertura do Programa de Volta para Casa, que não se constituiu na política de saúde mental enquanto indicador a ser alcançado. A despeito de sabermos da existência de pessoas com sofrimento psíquico em instituição de longa permanência, o Ministério da Saúde não dispõe de dados estatísticos para monitorar e avaliar o percentual de cobertura do programa.

A análise do plano e Relatório de Gestão da Saúde no período revela que até 2011 não havia registro de ação programada para o enfrentamento às drogas na política de Saúde Mental. Entretanto, com o aumento do consumo de crack, a partir de 2008, e a visibilidade dada pela mídia, o tema “drogas” vai tomando relevância no cenário político nacional e na gestão da política de saúde mental. E, em 2010, o Ministério da Saúde garante a definição de ação orçamentária para investimento em ações de combate ao crack e outras drogas, o que representa avanço para a política de Saúde Mental. Assim, a suposta “epidemia do crac ” possibilitou a visibilidade dos gastos na área da sa de mental, que permanecem subfinanciada. A partir da visibilidade dada, é possível monitorar o direcionamento dos recursos.

É importante destacar que apesar da centralidade dada às ações de combate ao crack na política de saúde mental, está não é a droga mais consumida pela população brasileira. Essa constatação foi possível por meio da pesquisa

194 realizada pela Fiocruz em 2013154. A pesquisa constatou que o consumo de crack e/ou similares, considerando todas as capitais e o Distrito Federal, atinge a 0,81% da população, o que representaria cerca de 370 mil usuários regulares. A região de maior proporção de consumo da droga é a nordeste (1,29%) seguida do sul (1,05%), enquanto o menor consumo é a região sudeste, com 0,56%.

A proporção estimada da população que referiu o uso de drogas ilícitas (com exceção da maconha) foi de 2,28%, o que representa em números absolutos mais de um milhão de pessoas no Brasil (1.035.291), demonstrando que a droga mais consumida no país não é o crack. Em algumas regiões a diferença de consumo entre o crack e/ou similares e as demais drogas ilícitas variam de 20% a mais de 50%, como é o caso da região centro-oeste, onde o consumo de drogas ilícitas é de 2,07% da população e o consumo de crack de 0,98%. No caso da região sul o crack representa 1,05% de consumo e as drogas ilícitas 2,03%, significando uma diferença de 52%. Ou seja, a pesquisa realizada pela FIOCRUZ possibilitou a desconstrução da imagem da epidemia do crack.

Entretanto, em nome do combate ao crack, tem se fortalecido instituições conservadoras de natureza confessional e privadas lucrativas (CTs), como também clínicas psiquiátricas. Essas instituições retualizam na área das drogas, a instituição hospitalar descrita por Foucault (1972), anterior aos hospitais psiquiátricos da era moderna. Foucault (1972) descreve essas instituições asilares como espaço de pobres, espúria da sociedade, que devem ser recolhidos dos espaços sociais e cuidados por autoridades religiosas. Ao longo do século XXI surgem novas formas de institucionalização. Ou seja, a difusão do crack e a insuficiência de dispositivos assistenciais para responder à complexidade do problema, que demandam intervenção na área da saúde e demais áreas assistenciais (Assistência Social, Educação, Esporte, Lazer, Habitação, entre outras), fortaleceram práticas manicomiais de internações

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Ver Pesquisa Nacional Sobre o Uso do Crack disponível em: http://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20o% 20Uso%20de%20Crack.pdf.

195 compulsórias ou de internações em comunidades terapêuticas de cunho religioso com propostas de intervenção antagônicas à lógica antimanicomial.

Entretanto, com a definição da Rede de Atenção Psicossocial como uma das cinco redes de atenção definida pelo Decreto 7.508155, a saúde mental, com status de área prioritária do Ministério da Saúde, avança na definição da necessidade dos serviços nos vários níveis de atenção à saúde mental156. Ademais, o desenho descobre os vazios assistenciais e impõem aos gestores empenho na firmação do pacto pela saúde mental com definição de recursos. Os planos e relatórios de gestão destacam três questões que permeiam o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica, a partir da aprovação da Lei 10.216/01:

1- A edição de um conjunto de legislação que garantiu a reversão dos gastos das ações hospitalares para as ações extra-hospitalares e, nesse sentido, torna-se visível a intervenção do Estado no ordenamento econômico, para efetuar mudanças frente à expressão concreta da luta de classe. Nesse caso, a luta antimanicomial X Indústria da loucura. 2- A instabilidade desse ordenamento à medida que a correlação de forças

se modifica no interior da luta de classes. Aqui destacamos os momentos de avanços e retrocessos no processo de implantação da política expressa pela dificuldade de aplicar as leis, decretos e portarias em seus termos. Exemplo disso é o difícil processo de implantação dos SRTs e do PVC, da insuficiência de CAPS, da prevalência de leitos privados em detrimento de leitos públicos, entre outros.

3- O terceiro relaciona-se aos dois primeiros. Vemos ao longo dos anos recentes, um acirramento do histórico embate entre os setores responsáveis pela implantação da política pública sobre drogas. Ministério da Saúde e Secretaria Nacional Álcool e Drogas ora se articulam, ora polarizam em termos das ações que o Estado brasileiro

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São elas: rede cegonha; rede de atenção às urgências e emergências; rede de atenção psicossocial; rede de cuidados à pessoa com deficiência; e, rede de atenção às pessoas com doenças crônicas.

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No Espírito Santo foi construído, no espaço dos Colegiados Intergestores Regionais, o mapa com a necessidade dos serviços de atenção à saúde mental, que se apresenta de forma discrepante do atual mapa da rede. Serviços existente X necessidade de serviços.

196 deve desenvolver nesse campo. Desses embates acompanhamos o tensionamento que as Comunidade Terapêuticas trazem para o interior do campo da saúde. Rechaçada pelo então coordenador de saúde mental Tykanori, vimos a inclusão das Comunidades Terapêuticas na RAPS. Com elas, a explícita entrada de um modelo de tratamento que nega os pressupostos da Reforma Psiquiátrica, evidenciando a disputa pelo fundo público para financiamento das ações que negam a direção buscada pela Reforma Psiquiátrica brasileira, o que implica na retomada da lógica manicomial que se quer superar.

Tal realidade nos remete a nossa questão inicial. Para onde está indo o dinheiro da saúde mental? Vimos parte desse processo a partir dos relatórios de gestão, agora vamos aos gastos. Como nosso objeto é o financiamento da Política de Saúde Mental considerando o momento particular por que passa a Política de Saúde no Brasil, no próximo capítulo refletiremos sobre a configuração dos gastos em saúde mental no Brasil.

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5. Os gastos em Saúde Mental: desfiando os nós

[...] “estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender” ( larisse Lispector)

O objetivo desse capítulo é apontar para onde se direciona os recursos destinados à saúde mental. Iniciamos esse capítulo com a afirmação de que a saúde mental não avançou em relação ao aumento percentual do montante de recursos destinados à saúde, entretanto avançou em relação a reversão dos gastos (de ações hospitalares para extra-hospitalares), bem como na definição de ação orçamentária, possibilitando maior visibilidade no monitoramento dos gastos em saúde mental. Nossa mirada englobará os últimos 15 anos (entre os governos FHC [2001] e Dilma/Temer [2016]).

Os gastos da Saúde Mental em relação aos gastos totais em saúde variaram no período estudado entre 2,4% (em 2001) e 1,6% (em 2016) (Tabela 3, Gráfico 3). No primeiro governo Dilma, os gastos com saúde mental foram decrescentes com registro dos menores percentuais (2,6 em 2011; 2,3 em 2012; 2,1 em 2013, 1,9 em 2014), mesma tendência foi observada em seu segundo mandato e mantida no governo Temer (2,3 em 2015 e 1,6 em 2016). Ou seja, o gasto com saúde mental, além de não ter alcançado a meta proposta pela coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde para o quadriênio 2007-2010 de 4,5% do orçamento da saúde (aproximando-se ao preconizado pela OMS), reduziu o valor em 0,8% o gasto, se comparado com o último governo Lula (2,7%). Essa tendência segue a observada na área da saúde (redução de 2,8% entre 2015 e 2016). Desse modo, nossa reflexão ganha maior relevância. Isso porque, o decréscimo dos gastos em saúde mental em relação aos gastos com saúde ocorreu pari passu à implementação do Plano “ rac é Possível encer”, ou seja, realocação dos gastos – reduzidos – entre velhas e novas rubricas.

O Ministério da Saúde também não atendeu às deliberações das III e IV Conferências Nacionais de Saúde Mental (2001 e 2010), para que assegurasse a manutenção e a ampliação progressiva do financiamento da rede extra- hospitalar, não se limitando à realocação de recursos do componente hospitalar. Ou seja, entre a pressão das forças políticas presentes nas

198 Conferências – e a luta por mais recursos para a Saúde Mental – e a implementação de um orçamento marcado por cortes nas políticas sociais – e a defesa de superavit primário -, a saúde mental vem perdendo recursos. Demonstraremos, ao longo de nossa análise, que o avanço na construção da rede de atenção à saúde mental se limitou à reversão dos gastos da rede hospitalar para a rede extra-hospitalar.

Em termos de percentual dos gastos em saúde mental em relação aos gastos em saúde, o Brasil seguiu um parâmetro de investimento adotado por países em desenvolvimento que, em geral, não ultrapassam um percentual em média de 2,4% (países desenvolvidos investem um percentual de 5% dos recursos da saúde na saúde mental, segundo dados da OMS de 2013). Mas, mesmo não cumprindo suas metas, a questão é saber quais foram os gastos da saúde mental ao longo dos últimos 15 anos.

Estruturamos nossa análise em cinco eixos: a) gastos em saúde mental x gastos totais em saúde; b) propostas inscritas no relatório das Conferências Nacionais de Saúde Mental sobre financiamento, destacando as não alcançadas; c) o processo de inversão dos gastos hospitalares e extra- hospitalares; d) detalhamento dos gastos hospitalares e extra-hospitalares, e; e) ações orçamentárias programadas e executadas.

O item gastos em saúde mental x gastos totais em saúde é um dado presente no Saúde Mental em Dados 4, lançado em de 2007157. Nessa publicação, a Coordenação de Saúde Mental destaca que o percentual da Saúde Mental em relação ao orçamento da Saúde correspondeu a 2,17% (em 1997), passando a 2,19% em 2002 (percentual que posteriormente será revisado em publicações posteriores) (BRASIL, 2007).

Na tabela 3 e gráfico 3 (página 179) apresentamos os dados sistematizados entre 2001-16.

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No Saúde Mental em dados anteriores essa informação não constava, apenas destacando a análise dos gastos em saúde mental hospitalar e extra-hospitalar.

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Tabela 3 – Gastos do programa Saúde Mental em relação aos gastos do Ministério da Saúde com ações e serviços públicos de saúde

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Gasto Federal em Ações e Serviços Públicos de Saúde (em bilhões) 71,79 71,57 62,22 69,53 70,43 76,32 79,94 81,39 89,31 96,36 92,89 98,67 98,31 99,02 105,18 102,10 Percentual gasto Programa de Saúde Mental/ Gastos ASPS 2,4% 2,5% 2,4% 2,3% 2,3% 2,3% 2,7% 2,7% 2,5% 2,7% 2,6% 2,3% 2,1% 1,9% 2,3% 1,6% Fontes: Subsecretaria de Planejamento e Orçamento/SPO/MS, DATASUS, Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras

Drogas/DAPES/SAS/MS (Valor em bilhões de reais)

¹ Valor atualizado com base no IGP-DI de 2001 de 3,19; 2002 de 2,89; 2003 de 2,29; 2004 de 2,12; 2005 de 1,89; 2006 de 1,87; 2007 de 1,80; 2008 de 1,67; 2009 de 1,53; 2010 de 1,55; 2011 de 1,39; 2012 de 1,33; 2013 de 1,23; 2014 de 1,16; 2015 de 1,12. Base de cálculo 01/16.

200 O percentual de gastos com o Programa de Saúde Mental (GSM), em relação aos recursos destinados à saúde, oscilou entre 2001 e 2010, com tendência crescente até 2010 chegando a 2,7% do montante dos recursos destinado à saúde. A partir de 2010 a tendência foi decrescente, com queda em 2014, pequena recuperação em 2015, fechando 2016 com queda acentuada (1,6%). A despeito do relatório de gestão de 2007-2010 propor que até 2010 o percentual de gastos para a saúde mental chegasse a 4,55% do orçamento geral da saúde, o orçamento destinado à saúde mental não ultrapassou o percentual de 2,7% (média de 2,25 e mediana de 2,3). Enquanto os gastos com saúde cresceu 42,22%, no período, os gastos com saúde mental decresceram 5,20%.

Estamos de acordo que é necessária uma melhora significativa do percentual destinado à saúde mental atendendo a recomendação da OMS, que define um percentual de 5%, desempenho esse que só se observa em alguns dos países europeus. Considerando a recomendação da OMS, o Ministério da Saúde deveria dobrar o percentual destinado à saúde mental.

Gráfico 3 – Valores nominais dos gastos hospitalar e extra-hospitalar com Saúde Mental