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3.4 – Sítio do Maracujá, mais outra morada: a traição

Novamente, todos partiram em direção ao Sítio do Maracujá, lugar, segundo o narrador, de “situação especial de proteção”, pois, “se acontecesse algum perigo, de repente todos podiam fugir e esconder-se nas abas dos talhados que formavam grandes locas, como se fossem salões naturais”. Porém, chegando lá, as dificuldades começaram a aparecer. Todos os dias, chegavam mais pessoas famintas, pedindo ajuda ao Beato Lourenço. Mas foi quando Severino Tavares chegou que o povo obteve informações sobre o que havia ocorrido: mais de cento e cinquenta moças órfãs estavam sob a guarda dos militares que, mais tarde, as usariam como domésticas em Fortaleza.

O povo passara todo o ano de 1937 no Sítio. No Natal, a Força libertou Zaías e Eleutério que se juntaram ao seu povo. O Sítio do Maracujá pertencia ao coronel Pedro Batista. O povo lá vivia, mas não plantava. Até o dia em que o Beato foi conversar com o coronel, pedindo-lhe autorização para fazê-lo. Esta foi dada. Como forma de gratidão, o beato pedira que trezentos homens o fizessem

[...] a limpa e a conservação do que fosse necessário nas plantações dele. O coronel ficou radiante e admirou aquela união em torno do trabalho, aquele exemplo de gratidão e amizade. Tudo aconteceu dentro dos cuidados necessários para não despertar suspeitas dos vizinhos” (op.cit.,p.376).

Tudo prosperava. Porém, Sebastião Marinho achava arriscado todos permanecerem no Sítio, pois, no Crato e no Juazeiro as pessoas já sabiam que eles estavam lá, e o seguinte boato já circulava: “que havia mais de mil fanáticos com armas nas mãos embalados e decididos a invadir Crato e Juazeiro, tomar o mando das autoridades, expulsar a Força do Caldeirão e restaurar a Pátria do Sertão, sob a bandeira da santa cruz do deserto. No governo seria colocado o beato José Lourenço como substituto de Padre Cícero” (op.cit.,p.378). Assim, para Sebastião Marinho, o melhor seria procurar o capitão para esclarecer o boato, pois, se assim não procedesse, era “a mesma coisa que cruzar os braços e esperar a morte”.

O narrador ficou assustado com as palavras do compadre: “palavreado assim autoritário com ressonância na ordem da obediência metia medo”. Mas, ele completou, “assim mesmo, no final das contas, quem deveria dar as ordens de comando e execução do decidido era o beato Lourenço, o guia de todos” (op.cit.,p.377).

O povo da cidade também vivia assombrado com a possibilidade de um ataque do povo do beato. Capitão Tourinho espalhava que ele havia formado um bando de salteadores que já tinham roubado sua fazenda no Juazeiro.

Outro boato que Sebastião Marinho ouvira foi o de que Severino Tavares, “homem arribado de outras perseguições”, estava sendo procurado pela Tropa. Como precaução, ele queria que Severino partisse de lá imediatamente, pois temia que os militares viessem atrás dele e acabassem prejudicando a todos. Em tom de ameaça, Sebastião disse ao beato que se ele não partisse, iria chamar a

Tropa para pegá-lo. O beato, que estava meio doente, disse: “- Tá certo, meu filho, você pode ir buscar a Tropa, mas será que é só para Severino? Será que não é para todos nós? (op.cit., p.383).

Mesmo assim, Sebastião, em companhia de Pedro Vieira, partiu. Todos ficaram apreensivos. A pedido do narrador, Zaías foi para Mata Cavalos, lugar no qual Severino estava escondido, para avisá-lo.

Sobre a atitude de Sebastião, o narrador questiona:

[...] não sei que demônio se encostou na sua razão de homem sensato, transformando-o num inimigo do conselheiro Severino Tavares. [...] será que outros interesses se escondiam por trás de tudo aquilo? (op.cit.,p.385).

Já em Santa Fé, Sebastião disse ao coronel Bené Félix que o povo do Caldeirão, a mando de Severino Tavares, iria invadir a cidade. Imediatamente, Félix partiu para o Crato, para obter mais informações sobre este suposto ataque. Sebastião, acompanhado de Pedro Vieira, depois que falou com o capitão, acabaram presos. Sem entender a atitude do capitão, Sebastião foi, de livre e espontânea vontade, levar os soldados até o Sítio do Maracujá. Porém, havia um homem do Caldeirão que estava acompanhando os passos dos dois e, vendo-os serem presos, correu de volta para avisar o que acontecera.

Ao saberem do que estava por vir, Bernardino lembrou o que o beato disse a todos sobre tal ocorrência em Baixa Dantas: “quando o perigo rondava a Baixa da Anta, um dia ele me chamou e disse: se é de morrer o exército, que morra um e fique o exército” (op.cit.,p.389).

A situação era semelhante. Porém, o melhor agora seria tentarem se defender. O beato, ainda “doente das tripas”, aprovou a idéia. Severino Tavares seria o homem, com ajuda de mais vinte, que iria defender todo o povo. Munidos de enxadas, foices, machados foram, então, de encontro à Tropa. Durante o confronto, alguns foram mortos, Severino morreu com uma punhalada dada pelo capitão que, logo em seguida, levou um golpe de foice que lhe foi fatal.

Retomando um comentário feito pelo narrador no início do romance em que ele pergunta: “Herói precisa morrer, o senhor não acha?”. O melhor exemplo desse perfil recai sobre o personagem Severino Tavares. Levando em conta sua

história, podemos entendê-lo como a perfeita personificação do herói da epopéia, aquele que jamais é um indivíduo e, por isso mesmo, representa o destino de uma comunidade.

Ao ver a comunidade em perigo, sofrendo a violência dos militares, Severino Tavares despoja-se de tudo quanto poderia conferir-lhe individualidade e sai, com mais alguns homens, para impedir que o povo do beato sofra, em prol de um destino comum. Essa atitude demonstra a perfeita integração em Severino e o mundo, o sistema de valores encarnado por ele não se constitui motivo de conflito, de tal modo que ele não apresenta dúvidas, mas convicções.

O beato era amado e respeitado pelo seu povo. Entretanto, com Bernardino, e apenas com ele, é visto pelos critérios e valorações próprios do mundo da intimidade. Se, antes, a ligação produzida pelas relações sociais universalizava e dava significação às ações particulares do beato, muitas vezes negativas, quando avaliadas pela perspectiva oficial, agora Bernardino o vê a partir de outra perspectiva.

Mas sabemos que, nas relações íntimas, os indivíduos não aparecem apenas iluminados pela luz sem mácula das melhores intenções e dos seus mais belos gestos. Ao contrário, o que termina por se revelar, na duvidosa penumbra da intimidade, são as vilanias humanas, que se escondem à luz do sol: o desejo inconfessável, a hipocrisia do arrependimento, enfim, todas as pequenas e grandes misérias que o ser humano é capaz de cometer e imaginar.

Pedro Moreno, ex-cangaceiro que era liderado por Severino, viu-se obrigado a não deixar que os já mortos fossem reconhecidos pela Tropa, por isso, como “último recurso”, aconselhou Quinzeiro, junto com ele, à arrancar a face dos defuntos do Caldeirão:

Pedro Moreno arrojou-se todo junto ao corpo do conselheiro, segurou firme suas orelhas, cortou e as puxou para cima o couro e um chiado estranho acompanhou o sangue que espirrava por todos os lados. Quinzeiro cavou uma cova funda junta a um pé de minguiriba, enquanto Pedro Moreno apanhava todos os couros dos rostos e jogava dentro da cova, enterrando-os (op.cit.,p.403).

Sabendo do que havia ocorrido, o beato disse ao narrador que todos deveriam partir imediatamente:

- Mestre, no Caldeirão, sem a gente ter feito nada de mal ou de errado, eles invadiram e destruíram tudo, imagine agora que houve essa matança. A desgraça vem por aí soprada pelo próprio vento como tempestade. Reúna o povo, mestre. Que todos fujam para onde quiserem. Eu vou para Pernambuco com o Valdevino (op.cit.,p.404).