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O Sítio do Picapau Amarelo: a confluência dos tempos de Monteiro Lobato.

A CONFLUÊNCIA DOS TEMPOS DE MONTEIRO LOBATO.

O. B 63 O adorador da “Serena Forma” 64 abandona o trabalho de artista e assume a

4.3.2. O Sítio do Picapau Amarelo: a confluência dos tempos de Monteiro Lobato.

Quais os elementos do fabulário brasileiro de Monteiro Lobato? Como tramou as experiências e as expectativas na literatura infantil? Concatenou as dimensões temporais? A cisão entre o pretérito e o porvir resiste? Os tempos (passado, presente e

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194 futuro) confluem? Nesse caso, há uma síntese, já que as dimensões mesclam-se. Ou acomodou estratos do tempo? Como estratos há uma dialética sem síntese: as divisões subsistem (estratos mais novos ou mais antigos) e os tempos seguem não reconciliados. Acaso aquém e além da síntese?

O escritor iniciou as estórias infantis de modo acidental: Toledo Malta contou-lhe a “história dum peixinho que por haver passado algum tempo fora da água desaprendeu a arte de nadar e de volta ao rio afogou-se” certa tarde na editora. Monteiro Lobato, então envolvido a imaginar o conto, escreveu a “História do peixinho que

morreu afogado”, publicando-a em diário ignorado. Em entrevista à Revista do Globo, em janeiro de 1945, afirmou que “depois resolveu ampliar a história, misturando-a com

cenas da fazenda onde passara a infância” e lembrou-se “da mulata Joaquina, ex-escrava

de seu pai, que aos domingos ia mariscar num riozinho do campo e que trazia às vezes até cobras-d’água e baratões aquáticos...”47. Surgiram, assim, as aventuras de Reinações de Narizinho. Comenta o sucesso do negócio:

- “Neste pau tem mel”, pensei comigo – termina Monteiro – “e era natural

que me dedicasse ao gênero. Escrevi, então, a história dum leitão malandro chamado Rabicó, e ao sabor da fantasia foram nascendo os outros personagens: Pedrinho, Quindim, o rinoceronte, o Burro Falante, a Emília. Todo Natal eu punha um ou dois livros novos com o prazer com que uma galinha põe um ovo. E afirmo que jamais pretendi ser pioneiro de qualquer coisa; sempre quis apenas ganhar a vida...”.48

O entrevistado declarou alguns assuntos acerca da escritura dos textos destinados aos meninos e meninas. Dois livros todo natal corroboram o valor comercial

dos textos; a “História do peixinho que morreu afogado”, nunca encontrado, é indício de

escritos lobatianos ainda não analisados e sumidos nas gazetas, além de mostra das constantes revisões das histórias; escreveu brincando e “ao sabor da fantasia”, não situando ensinamentos morais e cívicos acima do lúdico das aventuras; elaborou memórias de outrora na contextura dos textos. O último item será investigado, em razão de estabelecer conexões entre tempos.

Monteiro Lobato favoreceu essa leitura em entrevistas. “Como nasceu a

Dona Benta?”, interrogou Silveira Peixoto da Gazeta-Magazine. O autor de A menina do narizinho arrebitado informou:

47

LOBATO, Monteiro. Um mundo sem roupa suja... In:______. Prefácios e entrevistas. São Paulo: Globo, 2009. p.228. Entrevista de Justino Martins para a Revista do Globo em janeiro de 1945. 48

195 - Eu andava no Colégio Paulista, em Taubaté. Nos colégios os “maiores” nunca dão confiança aos “menores”, e estes, por isso e outras razões, acham que aqueles são mesmo “importantes” – e vivem com os olhos neles. Ora, havia lá um rapaz chamado Pedro de Castro. Era um dos “maiores”, e tinha a seu favor a particularidade de ser de Macaé ou Pati do Alferes. Num colégio, o fato de um sujeito ser de uma terra que os outros não conhecem é bastante para dar-lhe um prestígio extraordinário. Eu era dos “menores”...

- Ele não dava confiança...

- Eu vivia a olhá-lo como quem vê um tipo importantíssimo. Esse Pedro de Castro costumava falar em sua avó, de nome Benta. Achei curioso o nome e mais tarde, quando precisei batizar a vovó de Narizinho, foi a avó do Pedro de Castro quem me forneceu o nome...

- E nasceu Dona Benta! Mas a Tia Nastácia? Qual a sua história?

- Tive em casa uma Anastácia, ama do meu filho Edgar. Uma preta alta, muito boa, muito resmunguenta, hábil quituteira... Tal qual a Anastácia, ou a Tia Nastácia dos livros.49

Na ocasião, Silveira Peixoto também indagou sobre o Visconde de Sabugosa, embora desta vez Dona Ester de Morais, irmã do escritor, tenha tomado a fala:

- Naqueles tempos, na fazenda, as crianças costumavam brincar com bonecos de sabugo. Tomávamos um sabugo de milho e o vestíamos como se fosse uma boneca. Nos chuchus púnhamos umas pernas de palitos e ficavam sendo os “cavalos” e os “porquinhos”... Quando aos sábados o Juca vinha do colégio, nós preparávamos uma poção de coisas para recebê-lo; alinhávamos as bonecas de sabugo...

- Mas eu largava tudo e ia pescar! – aparteia Lobato.

- É verdade... – diz dona Ester. – Mas os tais bonecos de sabugo...

- ...devem ter influído na criação do Visconde de Sabugosa... – concluo.

- É. Podem ter sido a matriz dessa ideia. E também a Emília deve ser produto de uma reminiscência desses tempos... – concorda Lobato.

- Mas e o rinoceronte? Por que pôs um rinoceronte no sítio da Dona Benta? Um animal que não é brasileiro...

- Exatamente por isso. Para fazer uma coisa diferente. Resolvi arranjar um bicho contrário ao cachorrinho ou ao coelhinho clássicos. Mas na realidade eu não introduzi deliberadamente um rinoceronte em minhas histórias. Aquele rinoceronte fugiu certa vez de um circo do Rio de Janeiro, afundou no mato e foi parar no sítio de Dona Benta. De lá entrou muito naturalmente nos livros. Coisa muito mais do rinoceronte do que minha.50 No excerto acima, a memória vacila. Monteiro Lobato comunicou como a ama do seu filho serviu de molde à “Tia Nastácia dos livros”, inclusive com o mesmo nome; na entrevista de 1945, no entanto, lembrou da mulata Joaquina, ex-escrava da família. Na feitura do Visconde de Sabugosa e da Emília, as dúvidas surgem: “Podem

ter sido a matriz dessa ideia” e a boneca “deve ser produto de uma reminiscência desses

49 LOBATO, Monteiro. Entrevista com Silveira Peixoto, da Gazeta-Magazine. In:______. Prefácios e entrevistas. São Paulo: Globo, 2009. pp.160-161. Final dos anos 1930.

196 tempos...”. O engano no rememorar o transcorrido não deve ser censurado, afinal é

normal, e não sabemos os motivos corretos do “nascimento” dos heróis. Na última entrevista do escritor, assim informou ao ser interrogado “como surgiram as suas principais personagens, principalmente as de suas obras infantis?”:

LOBATO – Essa pergunta é muito difícil de ser respondida, porque eu não me lembro mais. Faz tanto tempo que elas surgiram que eu não me lembro mais. Eu me lembro que tem uma Emília, que é muito engraçadinha, mas não me lembro como ela surgiu. Tudo isso são águas passadas. De maneira que eu queria que aqui o radialista, o radiólogo, o rádio não sei o quê fizesse uma pergunta menos pessoal, menos próxima. Isso está muito esquisito.51

Monteiro Lobato acaso tomou as reminiscências de outrora e as integrou ao universo da literatura infantil. Nesse caso, então, o passado não encerra o anacrônico, o arcaico ou o atrasado. Não há este feitio. O passado é o transcorrido, mas atualizado na escritura. É elemento lavrado nos textos. É útil à literatura. É uma de suas fontes. O escritor criou da experiência.

O passado não é um meio de instrução moral e cívica nos textos destinados às crianças. É recurso lúdico, muitas vezes. O gato Felix narra a descoberta da América desta maneira:

- Meu avô veio justamente no navio de Christovão Colombo, que se chamava Santa Maria. Veio no porão e durante toda a viagem não viu coisa nenhuma a não serem ratos. Havia mais ratos no Santa Maria do que há pulgas num cachorro, e emquanto lá em cima os marinheiros luctavam com as ondas e as tempestades, meu avô luctava com a rataria. Caçou mais de mil. Chegou a se enfarar de rato a ponto de não poder ver nem um pellinho de camondongo. Afinal o navio parou e elle sahiu do porão e foi lá para cima e viu um lindo sol e um lindo mar e bem na frente uma terra cheia de palmeiras.

- Então era o Brasil, disse Emília. Aqui é que é a terra das palmeiras.

- Não seja bôba, disse Narizinho. Não atrapalhe. O gato Felix continuou.

- Via a terra cheia de palmeiras e na praia uma porção de indios nús.

- Nús? exclamou Emília. Que gente sem vergonha...

- Sim, nús, e armados de arcos e flechas, e a olharem para o navio como se tivesse vendo uma coisa do outo mundo. Era a primeira vez que um navio apparecia por alli.

- Imaginem se elles vissem o trem de ferro... observou a boneca.

- Colombo então, continuou o gato, resolveu desembarcar e saber que terra era aquella, porquê estava na duvida se seria realmente a America ou outra qualquer. Entrou num bote e foi para a praia. Pulou do bote e chamou os indios.

51 LOBATO, Monteiro. A última entrevista. In:______. Conferências, artigos e crônicas. São Paulo: Globo, 2010. pp.239-240. Cabe lembrar, nesse momento Monteiro Lobato findava os esforços nas companhias de petróleo, motivo de seu encarceramento em 1942. O escritor, então, evitou assuntos controversos ou pessoais, com receio das consequências.

197 Os indios não se mexeram do lugar, mas o cacique deles criou coragem e adiantou-se e chegou perto de Colombo.

- Meus cumprimentos, disse Colombo, com toda a amabillidade, fazendo uma cortesia com o chapéu de plumas.

- Bemvindo seja! respondeu o indio, sem tirar o chapéu porque não usava chapéu.

Colombo então perguntou:

- Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal America que eu ando procurando?

- Perfeitamente, respondeu o indio. Isto por aqui é a America que você anda procurando. E você já sei quem é. Você é o tal Christovão Colombo, não?

Colombo fico admiradissimo da esperteza do índio e disse: - Realmente, sou o tal. Mas como você adivinhou?

- Pelo jeito, respondeu o indio. Assim que você botou o pé na praia eu senti uma batida na paquêra e disse cá commigo:

É o sêo Christovão que está chegando, até aposto!

Colombo adiantou-se e apertou a mão do indio. Em seguida o indio virou-se para os outros que estavam lá longe e gritou:

- Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Christovão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui para diante é vida nova – e vae ser um turum-bamba damnado...

Neste ponto da historia o Visconde botou a cabeça fóra da lata e disse:

- Não acreditem! A descoberta da America não foi assim, foi muito differente. Eu li toda a historia de Colombo num livrão grande de dona Benta e posso affirmar que o gato Felix está inventando.

- Não está inventado nada! Berrou Emilia. Foi assim mesmo. O livro não esteve lá e não pode saber mais que o avô de sêo Felix, que esteve presente e viu tudo.52

O recreio sobreleva os critérios de verdade do Visconde, já que a história deve entreter e divertir. Não é coletânea de vícios e virtudes ou contos pátrios. Narrativas enfadadas e entediantes não convencem. O gato Felix não conclui as aventuras de sua vida de modo satisfatório e Emília reclama: “- Não valeu a pena vir de tão longe para contar uma historia tão sem pé nem cabeça. Eu, que nunca sahi daqui,

sou capaz de contar uma muito mais bonita”53. No dia seguinte, a boneca conta uma

história de “rei e principes e fadas...”, isto é, visa entreter os ouvintes. O gato Felix,

então, é inserido num concurso de histórias.

O passado não é demarcado, além disso. Felix inicia sua história deste

modo: “- Houve em França um gato muito illustre, que era escudeiro do marquez de

Carabás, tão ilustre que não ha no mundo inteiro uma creança que não saiba a historia

delle”. E continua a história do Gato de Botas “que se casou com uma linda gata

amarela e teve muitos filhos. Esses filhos tiveram outros filhos. Estes outros filhos tiveram novos filhos, e veio vindo, veio vindo aquella gataria que não acabava mais até

52 LOBATO, Monteiro. O Gato Felix. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927. pp.4-6. 53 Ibidem, p.14.

198 que nasci eu”54. Não há nesses livros indícios de data, mesmo em ocasiões necessárias:

no convite ao “GRANDE CIRCO DE ESCAVALINHO” há somente “HOJE”55, sem maior exatidão. Determinar momentos (dias, meses, anos) talvez não seja crucial no andamento das aventuras e no entendimento da criança. Monteiro Lobato acaso intuiu que recortar é limitar o universo criado e as conexões entre tempos e espaços?

N’A menina do narizinho arrebitado, Lúcia acorda do sonho, isto é, sua estada no Reino das Águas Claras, ainda à beira do ribeirão que passa pelos fundos do

pomar. “Que pena! Tudo aquillo não passara dum lindo sonho...”56, informa o narrador. O modelo é Aventuras de Alice no país das maravilhas: “Acorde, Alice querida!”, disse sua irmã. “Mas que sono comprido você dormiu!”57. O início das histórias é semelhante:

Certa vez, estando a menina à beirado rio, em companhia da boneca, sentiu os olhos pesados e uma grande lombeira pelo corpo. Estirou-se na relva e logo dormiu, embalada pelo murmurinho do ribeirão. E estava já a sonhar um lindo sonho quando sentiu cócegas no rosto. Arregalou os olhos e, com grande assombro, viu de pé na ponta do nariz um peixinho vestido.58

Dessa maneira, em A menina do narizinho arrebitado. Em Aventuras de Alice no país das maravilhas:

Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que estava lendo, mas não tinha figuras nem diálogos, “e de que serve um livro”, pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?”.

Assim, refletia com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor a fazia se sentir sonolenta e burra) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de se levantar e colher as flores, quando de repente um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo por ela.59 O estado entre a vigília e o sono criou os sonhos das meninas. Há dois itens relevantes neste cotejo. Certa vez, Monteiro Lobato afirmou ter Lewis Carroll realizado

“o milagre de fixar com palavras um movimentadíssimo sonho de criança”. “Um sonho com a rigorosa lógica dos sonhos, que é um ilogismo incompreensível”60, acrescentou.

54 LOBATO, Monteiro. O Gato Felix. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927. p.4.

55 Idem. O circo de escavalinho. Illustrações de Belmonte. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927. p.8.

56 Idem. A menina do narizinho arrebitado. Livro de figuras por Monteiro Lobato com desenhos de Voltolino. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1920. p.43.

57 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. Ilustrações originais de John Tenniel; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.146.

58 LOBATO, Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. Livro de figuras por Monteiro Lobato com desenhos de Voltolino. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1920. pp.4-5.

59 CARROLL, Op. cit., p.13.

60 LOBATO, Monteiro. Alice in Wonderland. In:______. Fragmentos, opiniões e miscelânea . São Paulo: Globo, 2010. p.154.