• Nenhum resultado encontrado

SÓ A POESIA SALVA

No documento Hilda Hilst: até a última letra (páginas 30-38)

A palavra poesia deriva do verbo grego poein, que significa compor, fazer,

criar. De sua conjugação, surge a poiésis, a coisa criada, o trabalho poético.

O mesmo vocábulo, no latim, ganha o sentido mais aproximado do que enten- demos como verso, criação do poetes – aquele que as justifica e as encarna.

A escrita de Hilda Hilst se dá, sobretudo, no trabalho do poeta, criador por ex- celência. É ele que, habitando o centro de sua poética, está autorizado a nos falar pelo texto, seja em novelas, teatro, poesia e mesmo na crônica. A redundância é apenas aparente, pois não se trata de apontar o exercício criativo que o poeta rea- liza, mas destacar o surgimento de uma persona lírica assim elaborada, destacada

como um sujeito excepcional – no sentido da exceção - em relação aos outros.

No texto de O saber e o sentir: uma leitura de Do desejo, de Hilda Hilst,

Bernardo Amorim relaciona este aspecto à concepção individual e subjetiva

31

que Hilda constrói da poesia, exposta como um “caminho de diferenciação, de contato com um conhecimento mais profundo e autêntico dos elementos essenciais da experiência humana”.35 Este sentido, tão último e impenetrável,

desdobra-se no recurso ao poema como forma irredutível da palavra, que aqui é poética por natureza.

Do poético ao poema, é necessário algum trânsito. Falar do poético signifi- ca entrar na ordem da linguagem mesma, que, por sua vez, reverbera no poema. Octavio Paz, em El arco y la lira, explica que a fala e seu caráter simbolizante são de

natureza poética, pois incidem em uma produção constante de imagens e formas verbais ritmadas. Com isso, pode concluir em algum momento: El habla, el lenguaje social, se concentra en el poema, se articula y levanta. El poema es lenguaje erguido.36

De volta à crônica, a aparição do poema soa algo estranha, na medida em que solicita uma leitura e um envolvimento bastante distintos do texto em pro- sa. Mas a escolha não é arbitrária, tampouco eventual. Trata-se de uma das solu- ções mais utilizadas por Hilda, aparecendo em mais da metade dos textos reuni- dos em Cascos & carícias & outras crônicas. Tal expediente, quando localizado no

percurso de sua obra, revela uma marca autoral que se define por um descrédito generalizado, ao qual apenas a poesia permanece imune.

“O poeta é sempre um profeta. Há muito eu me disse: Em direção a muitas vidas/ Muitas mortes/ Meu caminho de agora.” Quando Hilda assim encerra a crônica Decola ou Degola37, coloca em questão algo mais que o deslocamento

estrutural do texto em direção ao verso: o que é possível dizer da poesia neste lugar, em que ironicamente sobressai como forma essencial e insubstituível?

Ela nos fala na crônica intitulada In dog we trust ou mundo-cão do truste: “Mi-

nha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço, para encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você, leitor.”38

O que sobra desta afirmação é a reação do poeta frente ao caos. A poesia no jornal reage, descola-se da ignorância e do horror para fundar novas instâncias – sem saída, resta-lhe apagar a repetição de um gesto sem fundamento, páginas e páginas do mesmo exercício.

32

Com esta inclinação, o que Hilda faz é também criar no jornal um espaço de reedição para sua obra poética, atualizando a dimensão de seus poemas em uma nova sequência. Ficção rasurada, o deslocamento atinge em cheio a autora, que se vê obrigada a enveredar uma releitura de si mesma, por força da poesia.

Em um dos raríssimos estudos sobre a produção cronística de Hilda, Carlos Bione também reconhece o privilégio oferecido às escolhas poéticas, ao afirmar que “mesmo nas crônicas, podemos perceber uma tensão constante entre o fac- tual da atividade do cronista e o voo da palavra poética”.39 O resultado desta

relação é a abertura de toda e qualquer escrita em oportunidade para o poema. Também isso, então, adentra a escrita e se torna finito. Em meados de 1995, Hilda decide encerrar a produção de crônicas para o jornal, sob o pretexto de que não gostava de escrever por encomenda. Além disso, quer se dedicar ao últi- mo livro, peça chave de seu projeto literário: escrever tudo.

Hilda permaneceu no sítio até o fim da vida, onde passava a maior parte do tempo na companhia de seus mais de 60 cães. Com a máquina de escrever no colo, como gostava, escrevia coisas esparsas, por insistência dos amigos. Como o conto breve intitulado O Koisa, que narra a perspectiva de um caroço de azei-

tona dentro de uma empada. Segundo ela, a maior dificuldade era aprender a ser simples – ou, pelo menos, simples para os outros, já que para ela estava tudo muito claro.

De toda forma, se fácil ou se difícil, não sairemos ilesos. Talvez por outros motivos, diferentes daqueles dos nos 70, em que saltava aos olhos o desejo da jovem escritora em transgredir normas linguísticas e sociais. Hoje podemos ler Hilda como Hilda e nela encontrar o tempo necessário para enviar a mensagem: Fui atingida.

34

NOTAS

1. HILST, Hilda. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro. 25 de dez. de

1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel. 2. Id.

3. CALVINO, Italo. “Exatidão”, in Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia

das Letras, 2008, pp. 69-94. 4. Id., p. 78.

5.

6. HILST, Hilda. Sab(ilda). TopMagazine. 2002-2004. Entrevista concedida a Melissa Crocetti.

Disponível em: http://melissacrocetti.wordpress.com/2010/07/15/sabilda-entrevista-com- -a-escritora-hilda-hilst/

7. HILST, Hilda. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro. 25 de dez. de

1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel.

8. Posteriormente, os três primeiros livros de Hilda foram reeditados, a partir de 2000, pela Editora Globo.

9. HILST, Hilda. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro. 25 de dez. de

1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel.

10. HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2003. p.27-28.

11. BIONE, Carlos E. A escrita crônica de Hilda Hilst. 215 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. p. 36.

12. ROSENFELD, Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. In: HILST, Hilda. Fluxo- -floema. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.13.

13. BATAILLE, George. La part maudite précédé de La notion de déspense. Paris: Les Éditions de

Minuit, 1990.

14. HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001. p.15

15. HILST, Hilda. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro. 25 de dez. de

1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel.

16. FUENTES, José Luis Mora. “A rameira e a santa”. Cult, n. 12. P. 14-15. São Paulo, 1998.

17. HILST, Hilda. “Foi atingido?”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São

Paulo: Globo, 2007. p. 90.

18. HILST, Hilda. “O arquiteto dessas armadilhas”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-

1995). 2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 119.

19. HILST, Hilda. “A vida? Essa monstruosidade de irrealidades”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 189.

20. PÉCORA, Alcir. “Nota do organizador”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995).

2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 19. [Observação: Alcir Pécora é organizador das obras de Hilda Hilst em suas reedições e edições inéditas pela Editora Globo, a partir de 2000.) 21. Id.

22. HILST, Hilda. “A alma de volta”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São

Paulo: Globo, 2007. p. 29.

23. PAZ, Octavio. El arco y la lira. 3.ed. México: Editora FCE, 1972. p.34.

24. Id.

25. HILST, Hilda. “In God we trust ou Mundo-cão do truste”. In: Cascos & Carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2 ed. São Paulo: Globo, 2007, p.243

35

26. HILST, Hilda. “Foi atingido?”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São

Paulo: Globo, 2007. p. 92.

27. PÉCORA, Alcir. “Nota do organizador”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995).

2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 21.

28. HILST, Hilda. “A vida? Essa monstruosidade de irrealidades”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 189.

29. HILST, Hilda. “Deixou de ser mico?”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995).

2.ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 100.

30. CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In: CANDIDO, Antonio (org.). A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo. Campinas:Editora da Unicamp,

1992. p. 13.

31. PAZ, Octavio. Op. cit. p. 15.

32. PEREIRA, Wellington. Crônica: a arte do fútil e do útil. Salvador: Calandra, 2004. p. 140.

33. BENJAMIN, Walter. “Desempacotando minha biblioteca”. In: Rua de mão única: obras escolhi- das. v.2. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1987.

34. HILST, Hilda. “Só para raros”. In: Cascos & carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2.ed. São

Paulo: Globo, 2007. p. 136.

35. AMORIM, Bernardo. O saber e o sentir: uma leitura de Do desejo, de Hilda Hilst. 180 f. Dissertação

(Mestrado em Letras – Literatura Brasileira). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. p. 65-66.

36. PAZ, Octavio. Op. cit. p. 35.

37. HILST, Hilda. “Decola ou degola”. In: Cascos & carícias & outras crônicas. (1992-1995). 2.ed.

São Paulo: Globo, 2007. p. 95.

38. HILST, Hilda. “In God we trust ou Mundo-cão do truste”. In: Cascos & Carícias & outras crônicas : (1992-1995). 2 ed. São Paulo: Globo, 2007, p.243

39. BIONE, Carlos Eduardo. A escrita crônica de Hilda Hilst. 215 f. Dissertação (Mestrado em Te-

oria da Literatura). Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 2007. p. 106.

36

BIBLIOGRAFIA

Obras de Hilda Hilst

• HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001. 107 p.

• _____. Cascos & carícias & outras crônicas. (1992-1995). 2.ed. São Paulo: Glo-

bo, 2007. 414 p.

• _____. Estar sendo. Ter sido. 2. ed. São Paulo: Globo, 2006. 156 p.

• _____. Fluxo-floema. São Paulo : Globo, 2003. 272 p.

• _____. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2001. 144 p.

• _____. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002. 222 p.

• _____. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004. 178 p.

Sobre Hilda Hilst

• AMORIM, Bernardo. O saber e o sentir: uma leitura de Do desejo, de Hilda Hilst.

180 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Literatura Brasileira). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004. • BIONE, Carlos Eduardo. A escrita crônica de Hilda Hilst. 215 f. Dissertação

(Mestrado em Teoria da Literatura). Programa de Pós-Graduação em Lite- ratura, Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 2007.

• FUENTES, José Luis Mora. “A rameira e a santa”. Cult, n. 12. p. 14-15. São

Paulo, 1998.

• HILST, Hilda. A loucura une toda a minha obra. Folha de S. Paulo online, 12

janeiro 2002. Entrevista concedida a Cassiano Elek Machado. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u20450.shtml>. Acessoem: 18 junho 2011.

• _____. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro. 25

dezembro 1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel.

• SILVA, Reginaldo Oliveira. Uma superfície de gelo ancorada no riso: recepção e

fluxo do grotesco, em Hilda Hilst. 220 f. Tese (Doutorado em Literatura e Cultura). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008. Disponível em: < http://www.cchla.ufpb.br/posletras/images/teses2008/Reginaldo. pdf>. Acesso em: 19 junho 2011.

• _____. Sab(ilda). TopMagazine. 2002-2004. Entrevista concedida a Melissa Cro-

cetti. Disponível em: <http://melissacrocetti.wordpress.com/2010/07/15/ sabilda-entrevista-com-a-escritora-hilda-hilst/>. Acesso em: 18 junho 2011.

37

• ROSENFELD, Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. In:

HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.13-18.

Sobre a crônica

• BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980.

• CANDIDO, Antonio (et al.). “A vida ao rés-do-chão”. In: A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo. Campinas:Editora da

Unicamp, 1992.

• COELHO, Marcelo. Notícias sobre a crônica. In: Jornalismo e literatura: a sedu- ção da palavra. São Paulo: Escrituras Editora. Col. Ensaios transversais, 2002.

• MELO, José Marques de. A opinião no jornalismo brasileiro. 2ª ed. rev. Petró-

polis: Vozes, 1994.

• MICHELLINE, Érica. A crônica no universo jornalístico e literário. Contemporâ- nea, Rio de Janeiro, n.4, 2004. Disponível em: <http://www.contemporanea.

uerj.br/pdf/ed_04/contemporanea_n04_10_EricaMiche.pdf> Acesso em: 18 junho 2011.

• PEREIRA, Wellington. Crônica: a arte do fútil e do útil. Salvador: Calandra,

2004. 186 p.

• SÁ, Jorge de. A crônica. 3 ed. São Paulo: Atica, 1987. 94 p.

Geral

• ANTELO, Raul. “Introdução”. In: RIO, João do. A alma encantadora das ruas.

São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 09-26.

• BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro : Record, 2002.

488 p.

• CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo : Compa-

nhia das Letras, 2008. 3 ed. 141 p.

• PAZ, Octavio. El arco y la lira. 3.ed. México: Editora FCE, 1972. 307 p.

NENHUM DE NÓS QUER MORRER. QUEREMOS FICAR, AINDA QUE SEJA A

No documento Hilda Hilst: até a última letra (páginas 30-38)

Documentos relacionados