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3 COMUNICAÇÃO E SAÚDE

3.2 A SAÚDE

Traçar uma epistemologia da saúde implica em recorrer à história. Por mais de seis décadas, um conceito de saúde amplamente aceito tem sido o da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado na carta de princípios de sete de abril de 1948 (desde então, o Dia Mundial da Saúde): “Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade” (SCLIAR, 2007, p. 37).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 definiu o conceito de saúde incorporando diversas dimensões; para se ter saúde, seria preciso ter acesso a um conjunto de fatores como “alimentação [grifo nosso], moradia, emprego, lazer, educação” etc. (CONASS, 2011, p. 22).

Ainda na Constituição Federal (1988), no artigo 196, a saúde é apresentada como sendo um

direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Tanto na definição da OMS quanto na Constituição Federal, saúde é um conceito amplo e pode parecer inatingível. Desse modo, cabe pontuar como o significado de saúde evoluiu ao longo dos tempos até a atualidade, discutindo esse caráter de integralidade, que envolve também a alimentação, apresentado nas “falas oficiais” [grifo nosso] das instituições e governos.

Segundo Albuquerque e Oliveira (2002), as concepções trazidas desde a pré- história sobre saúde e doença foram modificadas a partir de Hipócrates, médico grego (460-377 a.C.), considerado o pai da medicina ocidental14. Para Scliar (2007), a concepção de saúde e de doença tem, no Oriente, até os dias atuais, similaridade com a concepção hipocrática – quando as forças vitais funcionam de forma harmoniosa, há saúde; caso contrário, emerge a doença. Desse modo, as medidas terapêuticas (acupuntura, ioga etc.) têm por objetivo restaurar o fluxo normal de energia (“chi”, na China; “prana”, na Índia) no corpo.

Já no século XVII, surge o modelo biomédico. Albuquerque e Oliveira (2002) relatam que a orientação científica da Idade Moderna, naquele momento da História, estava baseada numa visão mecanicista e reducionista do homem e da natureza, traduzindo a realidade do mundo conforme a metáfora de funcionamento de uma máquina. Do mesmo jeito que se montavam e desmontavam as máquinas, os seres vivos poderiam ser estudados por suas partes constituintes (os órgãos).

No século XIX, dois acontecimentos históricos influenciaram o modo de pensar o processo saúde-doença. Corrêa (2010) aponta que o primeiro foi a “revolução pasteuriana”, e o segundo foi o desenvolvimento da epidemiologia e medicina social. Louis Pasteur [1822-1895], Robert Koch [1843-1910], entre outros cientistas, começaram a observar e identificar através do microscópio os agentes etiológicos de doenças infecciosas, alcançando a produção de soros e vacinas. No Brasil, diversos cientistas voltaram-se para a microbiologia; entre eles, Oswaldo Cruz, que fez estágio no Instituto Pasteur (CORRÊA, 2010).

14 Segundo Albuquerque e Oliveira (2002), Hipócrates criou um novo conceito de saúde, defendendo

que as doenças não eram originadas por demônios ou por deuses, mas por causas naturais que obedeciam a leis também naturais. Para ele, o bem-estar estava sob a influência do ambiente (ar, água, locais que a pessoa frequentava, alimentação etc.).

De acordo com Azeredo (2011), na mesma época, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche [1844-1900] discutia a concepção de saúde, partindo da compreensão de que não há um padrão definitivo para um homem saudável e de que o corpo está em permanente combate entre forças. O sinalizador da saúde seria o desejo de vida, a capacidade de dizer sim à vida, de enfrentar os combates físicos. Negar a natureza trágica e caótica da vida promoveria a degeneração das forças vitais, uma vez que não haveria como retirar do ser humano todos os seus fatores de imprecisão e movimento.

No pensamento nietzschiano, ainda segundo Azeredo (2011), a “grande saúde” representava um estado de disposição plena para a vida. Um corpo doente não impedia a saúde. Não se tratava de ser forte ou fraco, mas de dizer sim à vida diante da dor, da alegria, da angústia, do desconhecido.

Década depois de Nietzsche, após a Segunda Guerra Mundial, há uma retomada da ênfase na dicotomia saúde-doença. Amorim (2014) destaca que, se no séc. XIX os governos tinham começado a considerar a saúde a partir de uma vertente política, já que a produtividade das fábricas dependia de trabalhadores saudáveis, depois da Segunda Guerra, tornou-se necessário que os países unissem esforços para a promoção da saúde.

Assim, nessa segunda metade do século XX, o foco passou a ser a adoção de comportamentos saudáveis. Albuquerque e Oliveira (2002) exemplificam que era preciso deixar de fumar, ter cuidados com a alimentação [grifo nosso], praticar exercício físico, gerenciar o estresse, dormir o número necessário de horas de sono e fazer um check up regular do estado de saúde.

Já Capra (2004, p. 301) ressalta que

a doença física pode ser contrabalançada por uma atitude mental positiva e por um apoio social, de modo que o estado global seja de bem-estar. Por outro lado, problemas emocionais ou o isolamento social podem fazer uma pessoa sentir-se doente, apesar de seu bom estado físico. Essas múltiplas dimensões da saúde afetam-se mutuamente, de um modo geral; a sensação de estar saudável ocorre quando tais dimensões estão bem equilibradas e integradas. A experiência de doença resulta de modelos de desordem que podem se manifestar em vários níveis do organismo, assim

como nas várias interações entre o organismo e os sistemas mais vastos em que ele está inserido.

A saúde, portanto, estaria ligada a uma experiência de bem-estar resultante de um equilíbrio dinâmico que envolve os aspectos físicos e psicológicos do organismo, assim como suas interações com o meio ambiente natural e social [grifo nosso].

Em 1986, ocorre a primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Ottawa (capital do Canadá), onde foi aprovada a carta de Ottawa. Neste documento, a promoção da saúde é então considerada uma responsabilidade tanto do indivíduo, pois exige dele estilos de vida saudável [grifo nosso], quanto do setor da saúde, que deve propiciar condições e recursos essenciais à saúde (educação, alimentação [grifo nosso], recursos econômicos, equidade etc.). Assim, a promoção da saúde cruza-se, “oficialmente”, com o conceito de estilo de vida (AMORIM, 2014).

A noção de estilo de vida foi colocada como o fator mais relevante para preservar e/ou prejudicar a saúde humana (mais importante do que os fatores biológicos, ambientais ou de organização dos serviços de saúde), uma vez que os estilos de vida estão fora do controle dos serviços de saúde e dependem das escolhas das pessoas. Assim, a concepção de que a saúde depende, em maior grau, das decisões individuais – e, com isso, é responsabilidade de cada indivíduo – se converteu numa ideia dominante particularmente desde os anos 90, quando o Banco Mundial e a Organização Pan-Americana da Saúde/OMS respaldaram essa postura (ROJAS-RAJS; SOTO, 2013).

A referência mais atual para o conceito de saúde repousa no trabalho do pesquisador Naomar de Almeida Filho, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, que, em 2011, lançou o livro O que é saúde?. Com ele, a discussão relativiza tanto a definição da OMS quanto as teorias dos comportamentos saudáveis de cada indivíduo. O autor deixa claro que há várias “saúdes” (p. 145). Em programa de entrevista veiculado no Canal Saúde (2012), no qual o livro é debatido entre Almeida Filho e a também pesquisadora Dina Czeresnia, o autor aponta que o

conceito da OMS cria uma falsa ideia de que é possível explicar saúde a partir de uma simples definição. Dina argumenta que, em certo sentido, a OMS teve o mérito de ampliar a ideia de saúde para além do campo da medicina. No entanto, concordando com Almeida Filho, a pesquisadora também entende que não há uma única definição de saúde. Além disso, para ela, a conceituação da OMS apresenta outro problema: o entendimento de saúde como um bem-estar absoluto, como se fosse possível ter uma sensação perene de satisfação.

Czeresnia (2012) afirma ser a saúde uma capacidade de lidar com as dificuldades. Almeida Filho (2012) também destaca que todos são doentes e sadios; que vive-se um equilíbrio instável entre as forças da vida e da morte, dentro de infinitos modos de ser sadio. Czeresnia (2012) complementa a fala do autor, apontando que se busca quantificar, medir o quanto se está saudável ou não. Mas não é possível tornar a saúde algo estável – ela está no registro da instabilidade, do movimento. Na visão de Czeresnia (2012):

Saber lidar com a perda e com as transformações é fundamental para ser saudável. Uma palavra muito boa para falar em saúde é a criatividade. Ser criativo é esta possibilidade de criar novas formas de vida, criar novos recursos, novas condições, para lidar com as condições que mudam. E isso não acontece sem tensão, perturbação, algum sofrimento, dor.

Almeida Filho (2012) destaca ainda que a palavra saúde também é usada para designar práticas que se transformam em serviços. Desse modo, há todo um campo de serviços de saúde para lidar com a doença. Assim, surge uma economia da saúde em torno dos desejos das pessoas por serviços e produtos. “Nesse sentido, afirmar que a saúde é algo que todos já temos não é algo bom mercadologicamente”, reflete o autor. Somente dentro da noção de “falta de”, de busca de um ideal de saúde a economia da saúde pode prosperar. O resultado dessa economia é visto na infinidade de objetos e produtos destinados à saúde. Pensando no objeto de estudo dessa dissertação, é possível complementar que, dentre estes produtos, estão itens como suplementos alimentares, alimentos funcionais e uma enorme gama de “produtos naturais” ditos benéficos à saúde.