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Neste capítulo pretendemos estudar os saberes e práticas dos sujeitos entrevistados pela pesquisa. Pensar o grau de teoria incluído na prática dos Dentistas Práticos, ou inversamente, quanto de senso comum havia contido nas técnicas desenvolvidas pelos Dentistas Formados.

A análise de como se procediam as relações entre os saberes e práticas, também permite entender como o objeto de trabalho odontológico foi apreendido e produzido.

Segundo Gonçalves, a criação dos instrumentos de trabalho partem do saber, considerado como fio condutor das técnicas que se desdobram a partir dele. Podemos considerar as práticas como resultantes de operações do saber (1994, p.63).

À medida que as ciências positivas estruturaram e fundamentaram as práticas em saúde, o objeto de trabalho em saúde passou a ser pensado de forma radicalmente racional e otimista, com um grau de confiança que levou a entender seu objeto não mais como técnico e sim completamente científico ( GONÇALVES, 1994).

Novaes H. entende os “‘modos de fazer’ do homem na construção de seu cotidiano, como uma dimensão fecunda nos processos de reconhecimento e compreensão do real” (1998, p. 141).

[...] é preciso reconhecer que a teoria não conduz, ou pelo menos não imediatamente, à prática, e a prática não cria, ou pelo menos não diretamente a teoria [...] (KOYRÉ,1973,p.397 apud NOVAES,H., 1998, p.143).

O belo ensaio histórico “Sobre a Técnica” tecido por Ricardo Novaes, parte da origem grega da palavra técnica. Segundo o autor, a técnica significa “ordem de produção”, “um engedramento, uma criação de modos de fazer, engenho e arte” (1996, p. 25).

Neste estudo, a história foi utilizada como instrumento de compreensão da técnica, e seus significados nas sociedades humanas: compreendida como valor humano inferior, desde o trabalho manual dos escravos, ou transformada em sobre valor através do capitalismo, e, chegando ao século XX, com a superioridade da ciência e a desvalorização de todo o modo de fazer empírico (idem, 1996).

O autor ressalta contudo que a ciência aplicada às práticas em saúde, não isentam tais práticas de iatrogenia, e que o desenvolvimento científico é fundado também em valores culturais (criados pelo homem).

A Etiologia da Cárie

Considerando o saber como importante fio condutor das práticas, conclui-se que as atividades do trabalhador são subordinadas às suas concepções que, por sua vez, possuem determinantes ou padrões de normatividade sociais.

A clínica, na definição de Carvalho (1917), era a aplicação prática dos estudos de patologia e terapêutica respectivos. É o que encontrou-se no Manual Odontológico1, no volume em que este autor tratou da Clínica Odontológica.

1 O Manual Odontológico foi um livro publicado em 1880. Teve muito êxito e foi reeditado várias vezes.

Utilizaremos como fonte de pesquisa das práticas da época pela sua importância histórica e por conter uma vasta compilação de dados. Este livro foi baseado nos livros do professor Harris de Baltimore. Era composto por uma série de 4 volumes: 1° Anatomia, Phisiologia, Histologia, Pathologia Geral e Hygiene Geral; 2° Pathologia Dentária e Therapeutica Appplicada, 3° Prothese Dentaria e 4 ° Clínica Odontológica. Os três primeiros escritos por Coelho e Souza e o último escrito por Carvalho.

Assim é que, sendo alterado um orgão qualquer do corpo humano ou tornando-se anormal uma funcção qualquer do corpo humano, o clínico terá que determinar a natureza do estado morbido em questão, pondo em jogo para isto seus conhecimentos de pathologia; de posse desse reconhecimento, elle lançará mão dos recursos que a therapeutica lhe offerece para levar de novo saúde ao orgão doente ou normalisar o funccionamento do apparelho que se achava perturbado, debellando por esta fórma a molestia.” 2

(CARVALHO,1917, p.1,2).

O autor considerou que os estudos preparatórios do candidato a cirurgião dentista deveriam proporcionar essa base sólida de aquisição de conhecimentos que permitiriam ao clínico exercer com sucesso sua profissão.

Preconizou, também, que o Cirurgião Dentista evitasse estender sua atuação para a região gengivo-dentária, quando então, na sua opinião, haveria a necessidade de uma especialidade à parte.

[...] não é necessário extender os dominios do dentista, porquanto as affecções dos orgãos desta região, já que exigem, e mesmo pela dificuldade de execução que estas apresentam em muitos casos, são sufficientes, ellas só, para absorverem toda a attenção e occuparem toda a actividade de um profissional, podendo por isso o tratamento exclusivo destas affecções constitui uma especialidade a parte (idem,p.2).

A ação profissional do dentista deveria limitar-se a uma afecção, a cárie, e apenas as conseqüências da doença estritamente presentes no órgão dentário.

Estes dados lembram a tese de Canguilhem (1982) quando analisou os conceitos de saúde e doença, normal e patológico, construídos pelo pensamento médico no século XIX.

2 Quando utilizarmos citações retiradas do Manual Odontológico manteremos a ortografia utilizada na época,

Comprovando os postulados do autor, parece que aos clínicos da época interessava prioritariamente estudar a Patologia, definida a priori como anormalidade: a cárie dentária, razão primeira e última de ser do cirurgião dentista.

A convicção de poder restaurar cientificamente o normal é tal, que acaba por anular o patológico. A doença deixa de ser objeto de angústia para o homem são, e torna-se objeto de estudo para o teórico da saúde (CANGUILHEM,1982, p.22,23).

Ao final de seu livro, Freitas (2001) propõe discutir a história social da cárie através de quatro blocos, cada um com diferente material de análise histórica: através do uso da Estatística, a partir dos referenciais teóricos da Epidemiologia, pelos modelos de explicação da etiologia da cárie, e através da análise da história da cárie descrevendo os rumos de compreensão da doença contidos na sociedade. Estes tipos de estudos permitem compreender o embasamento teórico que poderiam possuir as práticas odontológicas de acordo com seu momento histórico.

Partindo da explicação básica da etiologia da cárie proposta por Miller (1890), quando define o papel dos microorganismos num modelo causal, Freitas afirma que esta teoria não foi capaz de influenciar a clínica odontológica, no sentido de mudar sua prática essencialmente artesanal (2001, p.56).

Contrariamente ao que postula Freitas acima, Ring (1986) afirma que:

[...] o descobrimento de Miller propiciou melhoras na prática geral da odontologia: uma profilaxia bucal ativa tanto por parte do dentista como do paciente; um cuidado mais intenso com a esterilização; e , mais tarde, o desenvolvimento das modernas técnicas de preparação de cavidades, pelo grande G.V. Black. Também aprofundou imensamente o campo das efermidades da polpa ( endodontia ) e a patologia bucal, proporcionando um sólido estímulo para

investigação das outras esferas da ciência odontológica (Ring,1986,p.271).

A técnica de extensão preventiva proposta por Black (de estender as margens da restauração preventivamente), pode ser considerada uma resposta concreta na prática clínica proveniente da teoria de Miller. Porém nem sempre novos conhecimentos incorporados à tecnologia trazem resultados exclusivamente positivos. A luz dos conhecimentos atuais sabemos o que pode representar de negativo, em termos de conservação de tecidos, a técnica de extensão preventiva. E assim se apresenta uma contradição, pois considerando que baseavam-se prioritariamente no senso comum, talvez esta tecnologia dificilmente tenha sido aplicada pelos Práticos.

Segundo Ring (1986) a profilaxia ou a higiene bucal foram as técnicas mais imediatamente fortalecidas após as descobertas microbiológicas de Miller (1890). Mas não podemos deixar de levar em consideração que centenas de anos antes da descoberta do microorganismo específico causador da cárie dental, já encontramos referências às técnicas de higiene bucal.

Para compreendermos como a teoria microbiológica modificou a prática odontológica, não devemos esquecer que é necessário estar presente condições para que uma descoberta possa ser difundida. Mas pode-se concluir que nem sempre apenas sinais positivos vem agregados às descobertas científicas quando aplicadas às práticas, apesar de o argumento científico ter sido sempre um grande poder de legitimação das profissões.

Não se trata de negar a importância que houve e há na elaboração científica como suporte para a incorporação de tecnologias odontológicas eficazes, muito pelo contrário. Porém pretende-se desvendar como estes saberes puderam servir de fio condutor para as

práticas realizadas, e que ligações havia com a institucionalização, legalização e legitimação da profissão.

Outro viés que poderia ser percorrido quando pensamos na influência que uma descoberta deste porte pode ter para uma profissão, se direciona à tipologia de análise realizada por Maria Helena Machado (1995) sobre a profissão médica, onde a autora utiliza autores como Larson e Fredison.

Maria Helena Machado explanou sobre a importância da era bacteriológica para a medicina. A medicina teve que demonstrar a sua superioridade técnica para garantir o “controle autônomo sobre seu mercado potencial”, e isto para os autores só pôde ser possível neste século com a bacteriologia. Houve uma ruptura qualitativa, o que permitiu à medicina a adesão e a confiança da clientela. Para a cirurgia, o progresso foi considerado mais imediato através das técnicas de assepsia, do que para a medicina interna, onde encontrou-se maiores dificuldades de aplicação direta dos descobrimentos microbiológicos (1995, p.50).

Analisando a área de diagnóstico odontológico onde poderíamos encontrar aplicações da descoberta de Miller (1890), encontramos até hoje grandes dificuldades na aplicabilidade prática de testes bacteriológicos com fins de diagnóstico em odontologia, não sendo utilizados corriqueiramente na clínica. Freitas chega a afirmar que “a odontologia é uma especialidade médica que nunca se caracterizou por uma grande capacidade diagnóstica.” (2001, p. 99). Ainda, segundo o autor, a grande inovação recente em termos de diagnóstico, teria sido a identificação de manchas brancas.

Mesmo considerando que a descoberta da especificidade da etiologia da cárie não tenha levado a grandes mudanças imediatas em termos de diagnóstico clínico, fortaleceu a formação especializada do Cirurgião Dentista.

Magitot, em 1867 (WEYNE,1993 APUD FREITAS,2001, p.60), portanto antes de Miller, foi o pesquisador que, através de experimentos, associou o açúcar à dissolução do esmalte. A partir de então, os estudos levantados por Freitas como importantes para a compreensão da relação açúcar/cárie, virão a acontecer somente a partir da década de 1950. Lembrando o autor do famoso estudo de Vipeholm com doentes mentais em 1954 (2001,p.61).

Fatores ligados ao hospedeiro, segundo Freitas, foram os menos exaustivamente estudados na odontologia, mesmo tendo sido os que forneceram a terapêutica preventiva mais eficaz como o uso do flúor (2001, p.69). Por volta do início da década de 1960 é

identificado o processo de maturação do esmalte (idem, p.68). Com sua famosa tríade, Keyes em 1960, sistematizando os conhecimentos sobre a

etiologia da cárie dos trabalhos da época, propôs inovadoramente uma explicação multicausal da doença. Para Freitas é a partir deste modelo que as abordagens socialmente ordenadas começam a aparecer ( 2001, p.46 ).

A partir de então trabalhos levando em conta variáveis sociais, começam a surgir. O trabalho de um autor brasileiro circunscrito à época e citado na análise de Freitas, é o de Viegas em 1960, que concluía sobre a impossibilidade de associar nível sócio-econômico e cárie (2001, p.75) .

Estes dados apontam para um inexpressivo aporte de trabalhos direcionados a assuntos odontológicos envolvendo o social por volta da década de 1960.

Presume-se que estes conhecimentos estivessem organizados e compilados para serem ministrados aos futuros dentistas nos currículos formais dos cursos de odontologia. Voltemos, portanto, mais uma vez às propostas curriculares presentes no capítulo 1.

Considerando que o conteúdo de etiologia da cárie como incluído no campo disciplinar de patologia, e assim seria pré requisito para o estudo de higiene, verificamos que durante todo o período de 1945 – 1966 a disciplina de patologia foi ministrada posteriormente a de higiene. A proposta curricular era organizada de tal forma que o aluno aprendia métodos de higiene, sem estudar anteriormente patologia. Como contra-senso, encontramos apenas no tempo do Instituto (1933), a disciplina de patologia sendo oferecida

previamente ao estudo de higiene.3

Este fato demonstra que as trajetórias dos processos de formação instistucionalizada não seguem necessariamente uma racionalidade ascendente ou isenta de erros.

Outra opção que encontramos para verificar como estes saberes poderiam estar se circundando às práticas, foi a busca na imprensa escrita leiga de artigos que pudessem referir-se ao tema. Nesta busca, encontramos um artigo datado de janeiro de 1950, que objetivava oferecer explicações para a cárie dentária. Este artigo pode ser destacado como sinalizador dos saberes científicos que circulavam e eram divulgados no município.

O artigo não encontrava-se creditado a um autor, presume-se que tenha sido elaborado pela equipe editorial do jornal. Foi baseado em estudos norte americanos, e correlacionou as causas de desenvolvimento da cárie, ao modo como a civilização moderna vive. Mas avançou pouco na compreensão do fator social, dentro da rede de causalidade. A explicação oferecida entre alimentação e cárie foi baseada em experimentos com animais. Esboçou uma explicação multicausal e propôs como forma de intervenção preventiva coletiva, o uso de flúor nas águas de abastecimento. Este artigo foi encontrado e transcrito do jornal A Nação datado de 27/10/1950.