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UM LEGADO AO SUL SOCIAL E AOS SABERES TRADICIONAIS: Plurinacionalidade, Democracia Intercultural e Pluralismo Jurídico no novo constitucionalismo

1 SABERES TRADICIONAIS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E COLONIALIDADE 1.1 PROPRIEDADE INTELECTUAL E SABERES TRADICIONAIS ASSOCIADOS:

2 NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SABERES TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE: diálogos para uma possível

2.2 UM LEGADO AO SUL SOCIAL E AOS SABERES TRADICIONAIS: Plurinacionalidade, Democracia Intercultural e Pluralismo Jurídico no novo constitucionalismo

da Bolívia

Compreender a dimensão e o sentido do que uma Constituição traduz é, indubitavelmente, uma tarefa árdua e demanda uma visão holística. É, pois, observar os fatores reais de poder e as circunstâcias históricas, políticas, econômicas e sociais que propiciaram o nascimento de determinada Carta normativa. Nesse sentido,

Una forma de comenzar a examinar el contenido de las nuevas Constituiciones lationoamericanas consiste en preguntarse cuál es la principal pregunta que ellas se formulan o, más diretamente, cuál es el principal mal que ellas vienen a remediar. La pregunta puede ser pertinente ya que, cuando mirarmos atrás, uma y outra vez, nos

encontramos conque el constitucionalismo siempre apareció associado a la necessidade de poner fin a um certo mal: se dictaba entonces uma nueva Constituición como Contribuición institucional clave a una empresa social más vasta, orientada a remover a la sociedade de la peculiar situación de crisis por la que atravesaba. (GARGARELLA, COURTIS, 2015, p. 60)

Se para Gargarella e Courtis o surgimento de novas constituições fundamentam-se na necessidade de remediar males e remover situações de crises, o novo constitucionalismo latino- americano se propõe, então, a remediar os males dos seculares anos de colonização e exploração, e ainda das novas formas de colonialidade implantadas sob as formas da globalização, do neoliberalismo, etc. Nesse ínterim, o presente subcapítulo se propõe a analisar o novo constitucionalismo estabelecido na Bolívia no ano de 2009, sobretudo acerca do fundamento da plurinacionalidade, como parâmetro basilar no projeto de descolonização e empoderamento dos povos, do qual emana todos os demais direitos e diretrizes do país, refletindo ao fim, as possíveis contribuições para a tutela dos saberes tradicionais e biodiversidade associada.

Salutar anotar que sob a égide do novo constitucionalismo latino-americano o fundamento da plurinacionalidade está presente em ambas constituições do ciclo derradeiro – Equador e Bolívia. Entretanto, em que pese aquele traga no seio da Constituição ordens de um Estado plurinacional, esse fundamento não se verifica com ênfase, e seus mecanismos de concretização são deficitários. Ao revés, o caso boliviano traz a plurinacionalidade e elementos de concretude eminentemente visíveis e palpáveis, razão pela qual adotou-se como parâmetro para fomentar as contribuições à problemática do presente trabalho. Nesse sentido, entente Santamaría

Dentro del primer caso, en el que sólo se enuncia princípios y se reconoce em términos generales la plurinacionalidad, está lá Constituición del Ecuador, que tiene um serio déficit de innovación institucional para la concreción del estado plurinacional. Em el segundo caso, de reconocer la representación plurinacional, que sin duda es um avance enorme em relación al estado liberal, tenemos la Constituición de Bolívia, que por ejemplo, ha creado la Corte Costitucional Plurinacional [...]. (SANTAMARÍA, 2015, p. 169)

Transcorrida a justificativa de delimitação, torna-se imprescindível abordar o cenário político-social em que se deu o desenvolvimento do novo constitucionalismo boliviano para compreensão da dimensão do que representa esse movimento. De toda sorte, como já densamente trabalhado no subcapítulo anterior, o novo constitucionalismo latino-americano de um modo geral traduz-se em um projeto de superação das mazelas gestacionadas pelo histórico colonial do continente e de resgate das antigas raízes e sujeitos outrora negados e ocultados.

Segundo Hebert Klein, a Bolívia é formada etnicamente por 55% de ameríndios, 15% de origem europeia e 30% de mestiços (KLEIN, 2004). Durante todo o curso da história a Bolívia foi governada e dominada pela minoria étnica branca, de origem europeia, que marginalizava e ocultava os povos originários. Esse ranço histórico começa a tomar novos contornos a partir do século XXI, sobretudo entre os anos de 2000 e 2005, período que ficou marcado por intensas insurgências populacionais em face a diversas medidas neoliberais tomadas pelo governo, que precedem e são percussoras da formulação do novo constitucionalismo latino-americano na Bolívia.

Como ponto de partida é imprescindível ter a ciência de que a Bolívia é tida como um dos países com maior índice de miserabilidade na América Latina, e muito disso, ou isso, é decorrente dos fatores históricos de poder que se perpetuam no tempo e apontam no presente e futuro. Enzo Bello infere que após séculos de exploração das classes inferiores pelos governantes que se sucederam, das elites senhoris e militares, o neoliberalismo que aportou no país trouxe a adoção de diversas políticas desestatizantes e privatizantes, sobretudo dos recursos naturais do país – a água, o gás e o petróleo. Essas políticas e/ou medidas neoliberais adotadas pelo governo da época possibilitaram a entrada de transnacionais no país, excluindo parcela relevante da população ao acesso a esses recursos naturais antes estatais, e agora privatizados (BELLO, 2012, p. 106).

Esse cenário foi terreno fértil para a insurgência dos povos contra essa opressão, que jogava a população ainda mais na condição de miserabilidade, privando-os do acesso ao básico, aos recursos naturais. Dessa forma, a Bolívia foi palco de inúmeros conflitos em contraposição as opressões neoliberais.

Uma dessas medidas neoliberais e que afetou gravemente a população foi a privatização do sistema de abastecimento de água em Cochabamba para a empresa estadunidense Bechtel Enterprise Holdings, no ano de 2000, que em um consórcio de empresas inaugurou a “Águas de Tunari”. Essa medida foi uma articulação entre o Banco Mundial e o governo boliviano (GLADSTONE, 2015). As cláusulas contratuais garantiam vantagens inúmeras, dentre as quais a indexação das tarifas de cobrança ao dólar americano, e a possibilidade de aumentar a qualquer tempo os valores de tais tarifas. O resultado da gestão do sistema de abastecimento da Água de Tunari foi a inacessibilidade do recurso natural a ampla maioria da população, o que desencadeou o que ficou conhecido como a “Guerra da Água”.

As militâncias dos movimentos exigiam o rompimento do contrato de concessão, sem, contudo, obter resultado do Governo. Em razão disso, em 04 de Abril, no que ficou conhecido como a “batalha-final” as manifestações tomaram conta da cidade e de diversos outros pontos,

inclusive com a ocupação da sede da Aguas de Tunari (GLADSTONE, 2015). Após dias de guerra e intensa reprimenda, o governo boliviano cede às reivindicações dos movimentos e rompendo com o contrato de concessão e privatização da água.

De outro lado, em 2003, no governo de Gonzalo Lozada, outra medida neoliberal foi o estopim para o levante dos movimentos sociais. Dessa vez, os recursos naturais “em cheque” eram a venda do gás natural boliviano aos Estados Unidos e dos hidrocarbonetos. As manifestações exigiam a saída do presidente, a revogação do decreto de hidrocarbonetos, a recuperação do gás para os bolivianos e a não repressão aos grupos sociais mobilizados.

Ao longo do violento conflito que se desenvolveu, notadamente conhecido como a “Guerra do Gás”, foi elaborada a “Agenda de Outubro” em que se construiu uma ampla plataforma de reivindicações dos movimentos e a nacionalização dos recursos naturais, além, da realização de uma Assembleia Constituinte. Diante da instabilidade gerada o então presidente foge do país e renuncia ao cargo, assumindo Carlos Mesa, que implementou algumas reformas políticas (GLADSTONE, 2015).

No entanto, o governo de Carlos Mesa não aceita e recusa a nacionalização dos hidrocarbonetos, e a instabilidade e a as lutas populares são retomadas já em 2005. A grandiosidade das manifestações que tomaram conta do país, requerendo a nacionalização dos hidrocarbonetos e a convocatória de uma Assembleia Constituinte levaram à renúncia do presidente, tendo sido convocada novas eleições para dezembro de 2005, culminando com a eleição de Evo Morales, primeiro presidente de descendência indígena a assumir o comando do país.

Disso tudo é possível depreender que o que esses movimentos e lutas tem em comum é o fortalecimento dos arranjos e grupos étnicos diversos do país em prol de um objetivo comum, o bem do seu povo em face ao neoliberalismo, capitalismo, exploração, miséria, em última instância à colonialidade. Essas lutas evidenciaram a coesão social e fomentaram o fortalecimento e união desses povos.

Evo Morales em seus primeiros anos de governo anunciou a nacionalização dos hidrocarbonetos, enfrentou resistência e tentativa de golpe, e efetuou a convocatória para Assembléia Constituinte já em 2006. Assim

Como se pode observar, o quadro político que possibilita essa realidade advém de uma progressiva efervescência dos movimentos sociais que se forjam como atores centrais frente ao sistema estabelecido e representam sujeitos capazes de gerar maior tensionamento do conflito social. Assim, a Assembleia Constituinte tomou um lugar fundante na luta política, possibilitando converter-se em um fator de aglutinação das

diferentes forças e movimentos que pleiteavam mudanças. (GLADSTONE, 2015, p.105)

Diferentes blocos trouxeram suas pautas e anseios para discussões na Assembleia Constituinte, resultando na elaboração de uma nova Constituição, a qual foi aprovada em 2009 e referendada pela população boliviana. A partir de então, a Bolívia passa a ser o “Estado Plurinacional da Bolívia”, com objetivos claros de remediar os males dos seculares anos de colonização e exploração, e ainda das novas formas de colonialidade implantadas sob as facetas da globalização, do neoliberalismo, do capitalismo, do sistema-mundo-global, a partir da valorização das raízes originárias e peculiaridades do país.

“Pluralidade” é a palavra de ordem da Carta Constitucional de 2009 da Bolívia. A plurinacionalidade que inaugura a denominação do Estado boliviano já no preâmbulo irradia efeitos a todos os âmbitos estatais e possui uma peculiar e notável significado, relevância e compreensão no aporte epistemológico desta constituição vanguardista. Boaventura de Souza Santos afirma que a ideia de plurinacionalidade é marcada tanto pelas identidades culturais quanto pela demanda de nacionalização dos recursos naturais - o que de fato embasou as lutas que culminaram na formação da nova Carta Constitucional e na refundação do Estado boliviano, e segue afirmando que “al adoptar ambas demandas, el movimento indígena funda su acción em la idea de que solamente un Estado plurinacional puede ‘hacer’nación ante el extranjero (venas cerradas) y, al mismo tempo, hacer ‘nación’ contra el colonialismo interno” (SANTOS, 2015, p. 191).

Outrossim, em linhas breves, a partir de uma interpretação fria do termo, a plurinacionalidade implicaria em reconhecer os diversos povos originários que constituem o país como nacionalidades e/ou nações independentes dentro da Bolívia. Entretanto, a plurinacionalidade implica consequências que vão muito além dessa sucinta leitura. É pois, redefinir a linguagem acerca dos direitos humanos, ou melhor, é uma proposta de emancipação dos Direitos Humanos originalmente formulados na base ocidental. Para Boaventura de Souza Santos a plurinacionalidade observada a partir dessa releitura dos Direitos Humanos implica no reconhecimento dos Direitos coletivos dos povos e grupos sociais (SANTOS, 2015, p.189). Em igual sentido, Bartolomé Claveró afirma que “o que está sendo colocado, em definitiva, é uma nova antropologia para os direitos humanos, uma antropologia de base mais humana que aquela que representaram até agora tanto o direito constitucional quanto o direito internacional” (CLAVERÓ, 2015, p.125).

Por conseguinte, a um Estado dito plurinacional impõe-se o dever de reconhecer direitos – coletivos - e tornar os povos e nacões protagonistas – sujeitos coletivos - no cenário

político social, com autodeterminação e/ou livre determinação, para além da simples expectativa de meros sujeitos de direitos. A plurinacionalidade exige uma compreensão ampla de seu significado, transcendendo seus limites terminológicos. Nesse diapasão, Raquel Fajardo entende que

Los pueblos indígenas son reconocidos no sólo como “culturas diversas” sino como naciones originarias o nacionalidades com autodeterminación o libre determinación. Esto es, sujetos políticos colectivos com derecho a definir su destino, gobernarse em autonomias, y participar em los nuevos pactos de Estado, el que se configura así como um “Estado plurinacional”. Al definirse cmo un Estado plurinacional, resultado de um pacto de pueblos, no es un Estado ajeno el que “reconoce” derechos a los indígenas, sino que los colectivos indígenas mismos se yerguen como sujetos constituyentes y, como tales y junto com otros pueblos, tienen poder de definir el nuevo modelo de Estado y las relaciones entre los pueblos que lo conforman. (FAJARDO, 2015, 46- 47).

Não é meramente reconhecer pluralidade de nações e direitos formalmente, é, pois, chamar ao palco como protagonistas da história em curso, para exercer seus direitos, construir direitos, decidir, opinar, participar ativamente do Estado. Gladstone afirma que essa pluralidade afirma a alteridade dos povos latino-americanos, e não se trata de mera retórica de igualdade constitucional entre os diferentes, diferenciando-se de um enfoque multicultural presente em outros processos constitucionais no curso da história, é, pois, o resultado da demanda das lutas populares que teve interferência no processo de uma construção social e em alternativas de superação das receitas imperialistas de cunho liberal (GLADSTONE, 2015, p. 120).

Disso depreende-se que a plurinacionalidade traz a possibilidade de novas conformações e/ou uma verdadeira refundação do Estado, mas sobretudo, importa reflexos nas formas de relações com o outro e com a natureza. Nesse sentido, Santamaría afirma que a plurinacionalidade não está imbricada com o Estado, mas sim com o espaço onde se desenvolve um ou vários povos, e que esse espaço/território inclui não somente o espaço físico, mas a água, a natureza, a vida, a biodiversidade, tudo o que a mãe terra nos fornece, e nesse sentido existem tantas nacionalidades quantas nações/povos existirem dentro de um Estado (SANTAMARÍA, 2015, p.165). Sob essa perspectiva é dado aos povos originários – e tradicionais – a possibilidade e o direito de autodeterminar-se, de atuar e decidir ativamente nas questões que lhes importam, especialmente, falando-se de saberes tradicionais e biodiversidade associada a plurinacionalidade constitui ferramenta apta a fornecer elementos de salvaguarda.

Ademais, a plurinacionalidade importa na formação mais realista da cidadania, pelo que, segundo Bartolomé Clavero “é a plurinacionalidade que pode caracterizar, se for levado à sério, um novo paradigma constitucional” (CLAVERÓ, 2015, p.112). E como tal, pode ressignificar

o diálogo acerca dos mecanismos e instrumentos jurídicos-políticos de tutela dos saberes tradicionais e biodiversidade associada, permitindo que se assegurem os direitos humanos intergeracionais à vida e ao meio ambiente ecologicamente saudável e sustentável para as presentes e futuras gerações. Claveró ainda afirma que

[...] é necessário acrescentar de imediato que a plurinacionalidade não se esgota nessa matriz de reconhecimento de direitos políticos de povos indígenas e de sua conseguinte articulação dentro do Estado, em cujo caso dificilmente poderia representar todo um novo paradigma do constitucionalismo e não apenas uma nova variante constitucional. A própria expressão de Estado plurinacional transformou-se em chave de algo mais, bastante mais, do que o substantivo e o adjetivo literalmente significam um Estado reconhecidamente formado por uma pluralidade de nações. (CLAVERO, 2015, p.115)

A chave de algo mais a que o autor se refere é a concepção de que a plurinacionalidade não importa apenas no reconhecimento passivo da diversidade dos povos e de nacionalidades diversas. É na verdade, também, a declaração pública do desejo e anseio de incorporação perspectivas diferentes com relação à sociedade e a natureza. Ou seja, importa dizer que se a visão ou cosmovisão dos povos originários, indígenas, é relevante constitucionalmente ao passo que são reconhecidos como sujeitos de Direito por título próprio, depreende-se que “essa visão caracteristicamente indígena oferece uma postura mais favorável aos direitos todos, tanto aos próprios quanto aos alheios, o constitucionalismo pode convir em adotá-la [...] (CLAVERO, 2015, p116).

A plurinacionalidade implica, portanto, não só no protagonismo e autodeterminação dos povos enquanto nações ou nacionalidades independentes, mas também no reconhecimento e valorização constitucional das cosmovisões e visões indígenas e povos originários e suas relações com a natureza enquanto elemento de benefício e imprescindibilidade aos direitos de todos. A plurinacionalidade é indubitavelmente a característica formadora da Constituição e do Estado da Bolívia mais inovadora e paradigmática até então elaborada, da qual se irradiam os demais direitos e garantias. É o elemento de empoderamento social e a força propulsora de mudanças em face ao neoliberalismo, ao colonialismo, às forças do capitalismo, do sistema- mundo-global.

Dessa forma, é possível inferir que a plurinacionalidade a partir dessas perspectivas pode fomentar diálogos e elementos para formação de um instrumento de tutela aos saberes tradicionais frente ao aparato colonial-capitalista-jurídico do Acordo Trips vinculada a biopiratadia, e da fragilidade da CDB. Isso porque, todos esses reflexos advindos da plurinacionalidade discutidos até o momento, somados aos direitos coletivos assegurados formalmente e materialmente na Constituição “permitem resolver o atenuar injustiças

estructurales o injusticias históricas y fundamentan acciones afirmativas necessárias para libertar comunidades o pueblos de la sistemática opresión o para garantizar la sustentabildad de comunidades colectivamente inseguras” (SANTOS, 2015, p. 205).

De toda sorte, a plurinacionalidade ainda trará imbricações em direitos supervenientes e que igualmente podem fornecer um aporte para a problemática deste estudo. Assim, ao tratar acerca da temática Magalhães e Weill prelecionam que

A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente. O Estado Plurinacional reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes. (MAGALHÃES, WEIL, 2015)

Seguindo a discussão dos autores, a forma de democracia adotada pela Constituição da Bolívia é outro elemento que merece atenção, e igualmente, faz jus a palavra de ordem da pluralidade. Já no artigo 11 da Carta há a expressa adoção da prática democrática permeada pelas nuances da interculturalidade, estabelecendo que a República da Bolívia adota para seu governo a forma democrática participativa, representativa e a comunitária. Essa inovadora forma de democracia plural e intercultural é, consoante Santos, “una de las formulaciones constitucionales sobre democracia más avanzadas del mundo” (SANTOS, 2015, p. 203).

A democracia plural estabelece uma relação direta com o exercício efetivo de uma cidadania material e da soberania popular a partir da intervenção concreta dos povos na realidade do país. Nesse sentido

[...] el Estado plurinacional supone la construcción de um Estado radicalmente democrático: recuperar y fortalecer el Estado y la sociedade para garantizar el ejercicio pleno de la soberania popular. La plurinacionalidade supone el reconocimiento a las autoridades de los pueblos y nacionalidades, elegidas de acuerdo a sus usos y costumbres, dentro del Estado unitário, en igualdad de condiciones con los demás sectores de la sociedade. De ahí que la plurinacionalidad reconoce y valora las distintas formas de democracia existentes en el país: la democracia comunitária, la democracia deliberativa; la democracia participativa nutren y complementan a la democracia representativa, promovendo um verdadeiro ejercicio democrático intercultural. (MAMANI, 2014, p. 07)

As inovações abrangem não só a pluralidade de formas democráticas, visto que, a democracia representativa – e tradicional, foi acrescida de uma peculiaridade quando da promulgação da nova Constituição. Com intuito de reafirmar o caráter eminentemente

democrático e a soberania popular, a democracia representativa vem acompanhada do Órgão Eleitoral Plurinacional (art.245 e seguintes), cuja competência é controlar e supervisionar os processos de representação política.

A democracia direta e participativa é exercida por ferramentas como o referendo, e a nova Constituição inovou ao trazer a previsão de mecanismos como a iniciativa legislativa cidadã, a revogação de mandato, as assembleias e os cabildos, as reuniões públicas. E, ainda, de tom relevante à tutela dos saberes ancestrais e biodiversidade associada, sob a influência da Convenção 169 da OIT, prevê o mecanismo da consulta prévia aos povos indígenas originários campesinos para tomada de decisão acerca da ingerência do Estado sobre seus territórios ou quaisquer outras matérias que lhes afetem.

De outra banda, a democracia comunitária está direcionada às práticas dos povos e comunidades indígena, povos originários, os quais passam a ter as formas de organização e procedimentos próprios de exercício da democracia. Por essa via, as comunidades e povos originários passam a eleger seus representantes/autoridades pelos seus próprios métodos, costumes e procedimentos, os quais poderão ser indicados para eleição dos representantes indígenas a nível departamental.

Outrossim, a democracia comunitária se assevera por intermédio do autogoverno, ou da autodeterminação dos povos. Sobre isso, a Lei de Regime Eleitoral (Lei nº 026), da Bolívia, editada em 2010, reafirma a condição do exercício da democracia comunitária mediante o autogoverno: deliberação, representação, e exercício de direitos coletivos segundo as normas e procedimentos próprios das nacionalidades.

Nesse sentido, a democracia comunitária passou a assumir um duplo caráter: a do seu autogoverno e este, aquele que será seu representante nos órgãos departamentais e demais instâncias do governo. No anexo I é possível vislumbrar os representantes indígenas eleitos