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Recentemente, uma comissão de deputados federais criada para investigar os conflitos no campo – a CPI da Terra – aprovou um relatório, elaborado por políticos ligados à União Democrática Ruralista, que sugere a aprovação de dispositivos legais que equiparem as invasões de terras por grupos de sem-terra a crimes hediondos. Nunca é demais ter em mente que a própria Lei de Crimes Hediondos foi aprovada graças a pressão midiática que se seguiu ao seqüestro e morte da filha de Glória Perez, autora de novelas globais. A sugestão da bancada ruralista remonta àqueles “contextos jurídicos primitivos” de que fala Benjamin, onde a pena de morte era “decretada também no caso de delitos contra a propriedade, em relação aos quais parece totalmente ‘desproporcional’”.169 Sob a perspectiva do ensaio benjaminiano, esta desproporcionalidade ganha contornos mais nítidos: não se trata de coibir uma ação contrária ao ordenamento, já que a ação do Movimento dos Sem-Terra ao invadir fazendas improdutivas persegue um fim jurídico (neste caso até mesmo constitucional), a função social da propriedade; antes, é a própria ação humana que está sendo combatida. Talvez, diz Benjamin, “deva se levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito. Possibilidade de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas pela sua própria existência fora da alçada do direito”.170

Mas a desproporcionalidade se explica ainda melhor se levarmos em conta que ela se dá em defesa da propriedade. Pois, em nenhum outro instituto jurídico, fica tão nítida a função de interdição e de separação – o traçar de limites é material. A desproporcionalidade – ou melhor dizendo, excepcionalidade, já que se trata de igualar as invasões do MST a, entre outros, atos terroristas contra o Estado – não é casual: ela permeia todo o nosso Código Penal, cujas sanções mais graves, excetuado aquelas relacionadas aos crimes contra a vida, são impostas aos delitos contra o patrimônio (privado, pois as punições a crimes contra a coisa pública são esdrúxulas). Esta posição central da propriedade privada talvez se dê pelo fato de que ela concentra, como uma espécie de arquifenômeno originário, toda a

169 BENJAMIN, Walter. Crítica da violência/Crítica do Poder. p. 166. 170 Idem, p. 162.

estrutura do Direito, a saber, a separação. Toda a noção moderna – e não só capitalista, já que teoria e prática socialistas, repetidas vezes, repousaram sobre o mesmo fundamento – de propriedade fundamenta-se sobre a divisão: sujeito possuidor e objeto possuído, homem- sujeito e natureza-objeto. De fato, o capitalismo tem o seu pontapé inicial com os cercamentos de terra, dividindo os homens entre proprietários e proletários – os últimos por sua vez, donos somente de sua força de trabalho, isto é, de uma parte cindida de si mesmos. Porém, a separação mais brutal que a propriedade provoca é interna ao próprio homem: “a propriedade privada”, diz o jovem Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, tão caros a Benjamin, é “a expressão sensível de que o homem se torna simultaneamente objetivo para si e simultaneamente se torna antes um objeto estranho e não-humano, que sua externação de vida é sua exteriorização de vida, sua efetivação, a negação da efetivação, uma efetividade estranha”.171

No percurso deste texto, buscamos ressaltar o quanto a estratégia da apropriação incorporadora (ou apropriação desapropriativa) estava calcada em um paradoxo de múltiplas facetas: a traduzibilidade da natureza na técnica, a metafísica do ser nacional, a viagem enquanto busca especular de si, etc. Porém, tentamos sublinhar várias linhas de fuga que as experiências antropófagas abriram, como se no jogo incessante da apropriação, a própria máquina, ou dispositivo, da propriedade deixasse desnudo o seu fundamento, a saber, a sua ausência de fundamento, aquela verdade “bem clarinha” de Macunaíma. Se a “Carta pras Icamiabas” é a tentativa, por parte do anti-herói, de integrar-se à civilização da máquina, de adquirir a sua identidade, criar um próprio para si, isto só se dá ao capturar o seu mais impróprio – o seu ócio, “Ai que priguiça....” – na forma da Glória – e vimos como Maria Augusta Fonseca vê no “AAA” da Carta a cifra do mote de Macunaíma.

Na série de teses e ensaios dos anos 1940 e 1950 onde Oswald de Andrade procura dar bases históricas e filosóficas às teses antropófagas, a reflexão sobre o ócio adquire enorme relevância. Para ele, o homem não tem fundamento, antes se caracteriza por um falta:

o homem, longe de ser um animal superior, nem chega a ser um animal (...) sofre de um déficit essencial e permanente e é isso que o diversifica dos outros animais do planeta. O seu déficit é completo. (...) Enquanto um elefante está formado e pronto para a vida adulta em dois anos,

171 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução e notas de Jesus Ranieri. São Paulo:

enquanto uma vaca se emprenha e pare também em dois anos, sendo que seus primeiros passos são facilmente conseguidos na saída do útero materno – o homem é o animal que mais demonstra uma imensa incapacidade inicial, exigindo, para existir, esforços e recursos de que prescindem todos os outros.172

Ou seja, na base do homem está um impróprio, uma ausência de determinação, uma abertura – para o nada, o que quer dizer, também, para o todo. Na dialética hegeliana que construiu na tese A crise da filosofia messiânica, a “Idade do Ócio” é tanto o ponto de partida (“homem natural”-tese), quanto o ponto de chegada (“homem natural tecnizado”- síntese), passando pela absorção das conquistas da antítese, o “homem civilizado”, que se caracteriza pelo “negócio que é a negação do ócio”173. Por sua vez, o “Sacerdócio, que é ócio sagrado” busca canalizar a ausência de fundamento do homem, capturá-lo em uma esfera separada: “O ócio fora também, em todas as religiões, tido como um dom supremo, particularmente pelo sacerdócio, detentor do ócio sagrado que distingue e enobrece os mediadores de Deus”.174 Dito de outro modo: para Oswald de Andrade, a atividade humana não tem fundamento – ou melhor, para se fundamentar, apropria-se de sua ausência de fundamento. Agamben tem insistido na íntima conexão da propriedade e do bando com a sacralidade: o sagrado não se apresenta para ele como algo ambíguo ou ambivalente, mas simplesmente a aura com que se reveste aquilo que é excluído e que, por sua exclusão, é incluído e possibilita toda inclusão. A função do sacrifício reside em acobertar o hiato que é a humanidade, fornecendo-se como fundamento da comunidade humana:

comunque si interpreti la funzione sacrificiale, l’essenziale è, in ogni caso, che il fare della communità umana è, qui, fondato in un altro suo fare; che, cioè, come isegna l’etimologia, ogni facere è sacrum facere. Al centro del sacrificio sta, infatti, semplicemente un fare determinato che, come tal, viene separato e colpito da esclusione, diventa sacer ed è, per ciò stesso, investito da una serie di divieti e di prescrizione rituali. Il fare interdetto, colpito da sacertà, non è, però, sempliemente escluso: piuttosto esso è, d’ora in poi, acesibilie soltanto per certe persone e secondo regole determinate. In questo modo, esso fornisce alla società e alla sua infondata legislazione la finzione di un inizio: cio che è escluso dalla comunità è, in realtà, ciò su cui si fonda l’intera vita della comunità ed è assunto come un

172 ANDRADE, Oswald de. Estética e política. p. 277-279. (grifo nosso) 173 ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. p. 128.

passato immemoriale da essa. Ogni inizio è, in verità, iniziazione, ogni conditum è un abs-conditum”175.

A vida não é sacrificada porque é sagrada; antes, ela se torna um “valor absoluto”, uma onipotência, por ser objeto do sacrifício. Do mesmo modo, a criação de um próprio (o advento de uma identidade) implica que este se separe do impróprio; todavia, o impróprio não existia como tal antes de operada a separação; ao invés, o fundamento só se torna impróprio por ser separado: só existe trabalho porque há neg-ócio; só existe religião porque há sacer(d)ócio. A propriedade e a identidade são construídas a partir da separação (na forma da negação ou sacralização) deste não-ter-finalidade, deste impróprio que é o ócio. Assim, não é à toa que Araripe Jr., recorrendo à Cidade Antiga, conectou a propriedade à religião – esfera, por excelência, da separação:

A coisa é tudo, a pessoa quase nada. (...)

Fustel de Coulanges (...) explicou esse fenômeno pela eliminação do indivíduo em proveito da religião doméstica, cuja força consistia em inibir toda expansão pessoal ligando a família inteira ao altar, à terra, e aos produtos destinados à manutenção do culto transmitido com todos os seus aparelhos, de pais a filhos.

A diuturnidade dos tempos e as revoluções políticas modificaram profundamente as formas derivadas desse modo de conceber o direito; mas a superstição ficou; e o sentimento, pelo menos religioso da propriedade como base da personalidade, ainda trabalha poderosamente nos recessos da consciência jurídica dos legisladores.176

Se, na origem do Direito Público europeu, na origem da propriedade portuguesa sobre o Brasil, está um encontro originário, uma contingência (co-tangere), esta ausência de fundamento é o que deve a todo o momento ser negado, ou canalizado, inserido-o em uma esfera sagrada.

175

AGAMBEN, Giorgio. *Se. L’Assoluto e l’ “Ereignis”. In: La potenza del pensiero: saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza, 2005. p. 188.

176 ARARIPE Jr., T. A. A propriedade. In: Araripe Júnior: Teoria, crítica e história literária. p. 97-98. O

texto, uma resenha de A propriedade de José de Alencar, foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, a 11 de setembro de 1900.