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DOIS RIOS: LITERATURA E SAGRADO

1.2 SACRAMENTO E TRANSPARÊNCIA: O SAGRADO SE FAZ CARNE E CHÃO

Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho, São Jerônimo, nem são Tomás de Aquino, nem São Francisco de Assis –

Pra chegar a Deus

Formigas me mostraram Ele. (Eu tenho doutorado em formigas.) (BARROS, 2010, p. 392)

O poema explicita de forma direta sua independência à toda e qualquer tradição religiosa. A relação com o sagrado não precisou ser mediada pela instituição religiosa, o eu-poético consegue chegar a Deus através das formigas. Mais significativo ainda, é o fato de ser negado abertamente a “ajuda” de santos, teólogos e figuras bíblicas para entrar em contato com Deus. O poema é de uma franqueza impressionante, é a afirmação veemente de que o sagrado está acima das instituições religiosas, o transcendente está lançado em todas as coisas, na profanidade da vida, inclusive, nas formigas. Por outro lado, este mesmo poema, além de ser uma negação ao sagrado institucionalizado, ele se lança como abertura para o encontro do sagrado em meio ao mundo profano, na natureza, na imanência da vida. Materializa-se nestes versos um dizer poético que derrama um olhar sacramental sobre todas as coisas, condensado na figura da formiga que está no poema como ser que é habitado por Deus e o leva a Deus.

43 Não há tal embrujo em Servilha.

Tudo é solar e sem mistério e a superstição do servilhano é um manso animal doméstico, com quem se convive, carrega nos braços; mais bem é mascote, é como um gato ou um cachorro que quando incômodo se enxote, se insulta quando necessário, puro totem, nu de religião, nu de ocultismo, metafísica, teologia trazida ao chão; que se obedece porque sim, e que, bicho de casa, servo

(seja uma Virgem, um sinal-da-cruz) Não morde, é íntimo, é um gesto. (MELO NETO, 2008, p. 626)

O poema cabralino tece uma imagem da experiência religiosa do povo servilhano que toma como exemplo para tecer, dentro do poema, a teologia cabralina do chão. O espaço solar de Servilha não deixa oculto mistérios, a luminosidade torna qualquer “embrujo” impossível diante da excessiva claridade servilhana que torna tudo “um manso animal doméstico”. Não há, como se pode pensar a primeira vista, a negação do sagrado. Pelo contrário, há o “puro totem”, ou seja, há uma criação de um objeto sagrado a ser adorado e que passa a regular a convivência assim como na interpretação freudiana em que o totem passa a ser a ligação mais direta e restrita do homem com o animal sagrado que é domesticado por este mesmo homem, assim como se mostra no poema: “é mascote,/ é como um gato ou um cachorro”. Percebe-se que o sagrado para o povo servilhano não é um tabu – “não há religião” – mas um “puro totem”, momento em o sagrado ainda não era um interdito, não tinha sido capturado pelo sistema religioso.

O sagrado para o servilhano não é mais o animal terrível, inalcançável, “totalmente outro”, recuperando o dizer de Rudoff Otto, mas algo íntimo, da classe, da horda, que faz parte do convívio de forma a ser “bicho de casa, servo”. Deixando transparecer uma experiência do sagrado que remete a toda discussão que vínhamos travando, no sentido de que o sagrado se faz como uma experiência diluída na imanência, próxima ao homem, “nu de ocultismo, metafísica”, uma experiência do sagrado trazida ao chão, uma “teologia trazida ao chão”.

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Os dois poemas ora apresentados reservam ricas tensões que possibilitarão um aprofundamento naquilo que vamos chamar de um sagrado menor e um sagrado traste. Dentro de uma compreensão mais afinada no interior da questão, as vezes conflitante, entre sagrado e profano, se faz necessária a recuperação de dois conceitos migrados da teologia da libertação e da história das religiões eliadiana, que são os conceitos de transparência e sacramento. Ambos iluminam, até certo ponto, nossa interpretação sobre as poéticas cabralina e manoelina em sua materialização do sagrado no corpo da profanidade.

Para o sagrado tornar-se perceptível ao olho carnal do homem, é preciso que ele se materialize em um objeto, assim como vimos quando abordamos o conceito de hierofania. O objeto, a coisa, o ser que materializa o sagrado no ato hierofanico é aquilo que a antropologia da religião chamou de sacramento:

O objeto natural ou o ser revestido de uma dimensão nova, a sacralidade. Nesse objeto ou nesse ser encarna-se o “totalmente outro” que nele se torna o conteúdo revelado. É aqui que nos encontramos no cerne do mistério. Aqui o sagrado não é mais entendido como realidade absoluta em si, mas enquanto realidade manifestada e conteúdo revelado pelo objeto ou pelo ser mediador, por meio do qual ele se manifesta e se limita encarnando-se. (RIES, 2017, p. 75)

É o sacramento que torna o sagrado perceptível aos olhos humanos, e nesta comunhão entre realidade sagrada e realidade profana que o sacramento opera, o sagrado deixa de ser uma realidade absoluta e totalmente transcendente e passa a ser uma realidade materializada e dependente, até certo ponto, da dimensão profana. Então, é pelo sacramento, que a antiga concepção opositora entre e sagrado e profano é superada, tornando as fronteiras entre um e outro mais tênue e indistinguível:

Permanece sempre o fato paradoxal – quer dizer, ininteligível – de o sagrado se manifestar e, consequentemente, se limitar e deixar assim de ser absoluto (...). Deus mesmo aceita limitar-se e historicizar-se se encarnando em Jesus Cristo. (RIES, 2017, p. 75)

É só a partir do sacramento, ou seja, da historicização do sagrado que a separação entre sagrado e profano sofre uma ruptura e a aproximação dos opostos se estabelece, porém, é neste “limitar-se” que ainda perdura a compreensão de que

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o sagrado não se rebaixa ao profano, mesmo encarnando-se na humanidade de Cristo, ainda reserva uma diferença abismal, pois, o sacramento, nesta perspectiva, não seria uma coisa diluída em todas as outras coisas, mas algo separado, que permanece junto, mas se diferencia pois está revestida da potência sagrada e por isso se separa qualitativamente das demais coisas profanas que estão circundantes:

Pela irrupção do sagrado, o elemento mediador é constituído em sua dimensão sacral. Ao revestir de sacralidade um ser ou um objeto, a irrupção do divino o constitui mediador. Graças a essa operação, o objeto ou o ser é separado do mundo profano. (RIES, 2017, p. 75)

Mesmo com o pensamento da antropologia e da história das religiões avançando na aproximação entre sagrado e profano e na compreensão de que o sacramento se materializa num elemento pertencente ao mundo profano, porém, a interpretação recai novamente na distinção de que o sacramento é separado pela potência sagrada das demais coisas ordinárias e isto, segundo Ries, reforça mais a cisão entre sagrado e profano. O elemento profano que se mostra como sacramento serve apenas como mediador, ou seja, caímos mais uma vez no lugar em que o objeto profano é apenas receptáculo para algo de outra natureza, que se faz distinto dos outros seres.

A interpretação de que o sacramento é o elemento que diferencia, em meio à imanência, o mundo sagrado do profano é invertida na perspectiva da teologia da libertação de Leonardo Boff. Ainda que esta não seja uma das principais e mais conhecidas preocupações desta perspectiva teológica, os textos que versam sobre a sacramentalidade da vida nos apontam para as raízes mais profundas desta teologia, nascida, como veremos, a partir de uma experiência concreta e histórica com sagrado, mais especificamente, com a experiência cristã do sagrado.

O sacramento, para Boff, contrariamente à tradição que viu no sacramento algo que resgata o homem de sua imanência e o arremessa para a transcendência que estaria para além do seu imediato, é uma experiência que devolve o mundo a Deus e ao homem, ou seja, quanto mais mundana uma coisa é, mais potência sacramental terá:

Quanto mais profundamente o homem se relaciona com o mundo e com as coisas de seu mundo, mais aparece a sacramentalidade. Tudo é sacramento ou pode tornar-se. Depende do homem e de seu

46 olhar. Se ele olhar humanamente, relacionando-se, deixando que o mundo entre dentro dele e se torne o seu mundo, nesta mesma medida o mundo revela a sua sacramentalidade. (BOFF, 1975, p. 24)

A compreensão de Boff sobre sacramento subverte a ordem anterior, na perspectiva do teólogo da libertação a sacramentalidade está para a total adesão do homem ao seu mundo circundante, um mergulho na materialidade, que é, por sua própria natureza, o próprio Deus encarnado. O sacramento é a devolução ao homem da divindade de sua matéria. É em sua materialidade, em sua profanidade, que o homem se encontra com sua dimensão sagrada. Então, não seria mais sagrado e profano antagônicos, antes, estariam tão intimamente ligados e indivisíveis que não haveria mais distinção qualitativa entre ambos. O profano seria a carne do sagrado, o modo de ser do próprio sagrado e não apenas uma via para a manifestação de uma realidade outra.

O sacramento insere dentro de si uma experiência total. O mundo não é só dividido entre em in-manência e trans-cendência. Existe uma outra categoria inter-mediária, a trans-parência, que acolhe em si tanto in-manência quanto a trans-cendência. Estas duas não são realidades opostas. Uma à frente da outra. Excluindo-se. Mas são realidades que com-mungam e se em-com-tram entre si. Elas se per- meiam, con-catenam, se co-municam e con-vivem uma na outra. A trans-parência quer dizer exatamente isso: o trans-cendente se torna presente no in-manente, fazendo que este se torne trans-parente para a realidade daquele. O trans-cendente irrompendo dentro do in- manente trans-figura o in-manente. Torna-o trans-parente. (BOFF, 1975, p. 29)

A sacramentalidade dissipa a divisão entre imanência e transcendência, os polos, antes opostos, tornam-se uma mesma realidade que se torna possível através daquilo que Boff denominará de “trans-parência”. A trans-parência é a negação de todo mistério, no sentido de que o divino seria algo distante e incapturável, através da sacramentalidade o sagrado se torna transparente, visível, possível aos olhos humanos pois a divindade se faz mundo e no mundo.

A visão da vida sob o prisma teológico-libertador cunhado por Boff propõe que o sacramento é uma experiência com o sagrado encontrado na radicalidade da realidade. O mundo imanente não mais é um desterro, algo estranho, maldito, impuro, torna-se, em todas as coisas, a carne do sagrado. Por isso a trans-parência rompe o conflito gerado pela separação do mundo sagrado e profano e instaura uma

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nova estrutura em que toda experiência de Deus no sacramento não é apenas uma mediação, mas a encarnação do próprio Deus.

O rompimento da estrita separação entre sagrado e profano corresponde ao questionamento do dualismo entre transcendência e imanência pela incorporação de uma categoria intermediária: a transparência. Esta categoria participa de ambos os mundos, transcendente e imanente, sem se fixar em nenhum deles. A transparência, categoria-chave do pensar sacramental, permite entender como nesta forma de compreensão do mundo o sagrado e o profano tem suas barreiras diluídas. (JESUS, 2010, p. 103)

Neste sentido, a história humana deixa transparecer e encarna o sagrado na materialidade da vida, desde que vista a partir do olhar sacramental, que não separa o sagrado do profano. O pensar sacramental permite compreender e comtemplar o sentido profundo que há na ordinariedade e cotidianidade da vida. O sagrado é, então, os trastes e os Severinos.

Retomando os poemas citados anteriormente, vemos que a negação metafísica presente em “El embrujo de Servilha”, de João Cabral de Melo Neto e o êxtase da formiga em Manoel de Barros são modos de compreensão do sagrado que se aproximam e, até certo ponto, (re)significam este conceito. É importante pensar que a ausência de mistério cabralina, com o sagrado solar do povo servilhano e o caminho místico encontrado nas formigas que “levam a Deus” de Manoel de Barros, subvertem a ordem de compreensão entre sagrado e profano, pondo esta fronteira a baixo e percebendo na existência mesma destas coisas um modo do sagrado que torna-se visível, palpável, encarnado. Mas mais que isto, haverá um movimento mais radical, nestas poéticas, o sagrado chega a ser a coisa em si, não é mais apenas transparência do divino, mas o traste e o Severino tornam- se o próprio divino.

1.3 A FIGURA DO POBRE COMO CHAVE HERMENÊUTICA DA